segunda-feira, dezembro 31, 2007

 

Ano-Novo




Receita de Ano Novo
Carlos Drummond de Andrade


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

[poema extraído do site:
http://www.releituras.com/drummond_dezembro.asp]

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domingo, dezembro 30, 2007

 

É sempre bom lembrar...


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No livro “Todas as letras”, Gil comenta algumas de suas composições. Dentre elas, “Copo vazio”, gravada pelo Chico, no disco “Sinal fechado” (1974); por ele, no CD “Gil luminoso – Voz & violão” (1999), e por Zizi Possi, acompanhada ao violão de Hélio Delmiro, no 3° volume do seu songbook (2004). Ficam, aqui, as três versões, além do comentário:

Chico Buarque estava sendo hipercensurado naquele momento, e quis responder a isso fazendo um disco só com músicas de colegas. Por isso pediu a Paulinho da Viola, a Caetano, a mim e a outros que compusessem para ele.

Eu estava em casa, sentado no sofá, já de madrugada. Tinha tomado um copo de vinho no jantar, e o copo tinha ficado na mesa. Pensando no que é que eu ia fazer pro Chico, eu de repente vi o copo vazio e concentrei o olhar nele para dali extrair emanações de imagens e significados, a princípio como se para nada obter, mas logo constatando: ‘O copo está vazio, mas tem ar dentro’. Disso me vieram idéias acerca das camadas de solidificação e rarefação que vão se sucedendo nas coisas – e disso, a música.

A letra faz uma viagem ao mundo das coisas sutis, transcendentes, mas suas primeiras frases são muito significativas em termos do que estava acontecendo: regime de exceção, censura, o Chico privado de sua liberdade artística plena etc. Embora não fosse essa a intenção principal, as dificuldades da situação contingencial estavam necessariamente metaforizadas, e qualquer crítica à canção em termos de fuga da realidade esbarraria no fato de que, ao contrário, a letra parte da realidade e não foge dela; foge com ela, se for o caso...

[texto extraído do livro “Gilberto Gil: Todas as Letras” – Organização Carlos Rennó, Cia das Letras, 1996, p. 157.]
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Copo vazio
Gilberto Gil
1974


É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar

É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar

É sempre bom lembrar
Guardar de cor
Que o ar vazio de um rosto sombrio
Está cheio de dor

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar

Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa a metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar

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quinta-feira, dezembro 27, 2007

 

Cale-se!



Aproveitando o gancho de um post anterior, sobre “A voz do dono e o dono da voz” (Chico Buarque/1981), transcrevo notas do site do Chico e comentário do próprio Gil, co-autor da música, no livro “Todas as letras” (1996), sobre “Cálice”, gravada no disco Chico Buarque (1978), com participação de Milton Nascimento (nostalgia pura... de arrepiar!):
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Nota sobre “Cálice”
Por Humberto Werneck
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Nem sempre, porém, os problemas eram apenas com a censura, como ficou demonstrado no caso de Cálice. A música foi composta por Chico e Gilberto Gil, no clima pesado de uma Sexta-feira Santa, para o show Phono 73, que a gravadora Phonogram (ex Philips, e depois Polygram) organizou no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, em maio de 1973. Como a censura havia proibido a letra, os dois autores decidiram cantar apenas a melodia, pontuando-a com a palavra cálice - mas nem mesmo isto foi possível. Segundo o relato do Jornal da Tarde, ‘a Phonogram resolveu cortar o som dos microfones de Chico, para evitar que a música, mesmo sem a letra, fosse apresentada.’
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Nota sobre “Cálice”
Por Jairo Severiano & Zuza Homem de Mello
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Este é mais um exemplo de letra contra a censura, predominante entre nossos compositores à época (1973) em que a canção foi criada. Na verdade, “Cálice” destinava-se a um grande evento promovido pela PolyGram, que reuniria em duplas os maiores nomes de seu elenco, e no qual deveria ser cantada por Gilberto Gil e Chico Buarque. No livro Todas as letras, Gil narra em detalhes a história da canção, a começar pelo encontro inicial dos dois no apartamento em que Chico morava, na Lagoa Rodrigo de Freitas, ocasião em que lhe mostrou os versos que fizera na véspera, uma sexta-feira da Paixão. Tratava-se do refrão (“Pai, afasta de mim este cálice / de vinho tinto de sangue”), uma óbvia alusão à agonia de Jesus no Calvário, cuja ambigüidade (cálice / cale-se) foi imediatamente percebida por Chico. Gil levara-lhe ainda a primeira estrofe (“Como beber dessa bebida amarga / tragar a dor, engolir a labuta / mesmo calada a boca, resta o peito / silêncio na cidade não se escuta / de que vale ser filho da santa / melhor seria ser filho da outra...”), lembrando a “bebida amarga”, uma bebida italiana chamada Fernet, que o dono da casa muito apreciava e sempre lhe oferecia, enquanto “o silêncio na cidade não se escuta” significava que “no barulho da cidade não é possível escutar o silêncio”, ou “não adianta querer o silêncio porque não há silêncio”, ou seja, metaforicamente: “não há censura, a censura é uma quimera”, pois “mesmo calada a boca, resta o peito, resta a cuca”. Deste e mais outro encontro, dias depois, saíram a melodia e as demais estrofes, quatro no total, sendo a primeira e a terceira (“De muito gorda a porca já não anda...”) de Gil, a segunda (“Como é difícil acordar calado...”) e a quarta (“Talvez o mundo não seja pequeno...”) de Chico. No dia do show, quando os dois começaram a cantar “Cálice” desligaram o microfone. “Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la”, conclui Gil. Irritadíssimo com o microfone desligado, Chico tentava outro mais próximo, que era cortado em seguida, e assim, numa cena tragicômica, foram todos sendo “calados”, impedindo-o de cantar “Cálice” até o fim. Liberada cinco anos depois, a canção foi incluída no elepê anual de Chico, com ele declarando que aquele não era o tipo de música que compunha na época (estava trabalhando no repertório de “Ópera do Malandro”), mas teria que ser registrado, pois sua tardia liberação (juntamente com “Apesar de Você” e “Tanto Mar”) não pagava o prejuízo da proibição. Na gravação, as estrofes de Gilberto Gil, que estava trocando a PolyGram pela WEA, são interpretadas por Milton Nascimento, fazendo o coro o MPB 4, em dramático arranjo de Magro.

Fonte: Livro 85 anos de Música Brasileira, Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34.

© Copyright Humberto Werneck in Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989.


A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla.

Era Semana Santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra). Eu pensei em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, me sentei no tatame, onde eu dormia na época, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar. Como era Sexta-Feira da Paixão, a idéia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida escrevi a primeira estrofe, que eu comecei lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que me oferecia sempre que eu ia a sua casa.

No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, e eu já lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, eu cheguei ao ‘cálice’, no ato ele percebeu a ambigüidade que a palavra, cantada, adquiria, e a associou com ‘cale-se’, introduzindo na canção o sentido da censura. Depois eu tinhatrazido só o refrão melodizado, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de idéias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro.

Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a seqüência. Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele.

Na terceira, o quarto verso e os dois finais já foram influenciados pela idéia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, aliás, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: ‘silêncio na cidade não se escuta’, quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, ‘mesmo calada a boca, resta o peito’ e ‘mesmo calado o peito, resta a cuca’: se cortam uma coisa, aparece outra.

Aí, no dia em que nós fomos apresentar a música no show, desligaram o microfone logo depois de termos começado a cantá-Ia. Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à Censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-Ia.

[texto e foto (abaixo) extraídos do livro “Gilberto Gil: Todas as Letras” – Organização Carlos Rennó, Cia das Letras, 1996, p. 139.]
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Gilberto Gil com Chico Buarque, durante show na década de 70, em plena era da ditadura.
O tema da censura, presente em “Cálice”, seria também de “Copo vazio”, composta por Gil, para Chico, em 1974.

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..Cálice
Gilberto Gil & Chico Buarque/1973


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça


Nota sobre “Apesar de você”
Por Humberto Werneck


No início de 1970 Chico volta ao Brasil em meio a um estardalhaço (organizado por recomendação de Vinícius), que incluía especial para a Globo, show no Sucata e o lançamento do LP Chico Buarque Vol 4. Mas o Brasil não era aquele descrito nas cartas de André Midani. A tortura e desaparecimento de pessoas contrárias ao regime do general Médici eram uma constante. O ufanismo do ditador (“Ninguém segura este país”) aderia aos carros (“Brasil, ame-o ou deixe-o”, quando não “Ame-o, ou morra!”), e a algumas canções populares (“Ninguém segura a juventude do Brasil”), tudo isso no ano que a seleção canarinho conquistaria o tricampeonato mundial. Chico fez “com os nervos mesmo” Apesar de você e enviou para a censura certo de que não passaria. Passou. O compacto com Desalento e Apesar de você atingia a marca de 100 mil cópias quando um jornal insinuou que a música era uma homenagem ao presidente Médici. A gravadora foi invadida, as cópias destruídas.

Num interrogatório quiseram saber de Chico quem era o VOCÊ. “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”, respondeu.

A canção só foi regravada no LP Chico Buarque 1978.
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© Copyright Humberto Werneck in Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989.
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Nota sobre “Apesar de você”
Por Jairo Severiano & Zuza Homem de Mello

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Na Europa havia mais de um ano, Chico Buarque voltou ao Rio em março de 70, influenciado por André Midani, diretor de sua gravadora, que lhe assegurava “estar melhorando a situação no Brasil”. Mas descobrindo ao chegar que, ao contrário, a situação piorara, externou seu desapontamento no samba Apesar de Você que, entre outras coisas, afirmava: “Você vai pagar e é dobrado / cada lágrima rolada / nesse meu penar / apesar de você / amanhã há de ser / outro dia / você vai se dar mal / etc. e tal...” Por incrível que pareça, este desabusado recado à ditadura, propositalmente muito mal disfarçado numa fictícia briga de namorados, passou pela censura e foi lançado por Chico num compacto simples. Resultado: o samba estourou nas rádios e já se aproximava da cifra de cem mil discos vendidos, quando o governo entendeu a mensagem e, imediatamente, proibiu a música, recolheu e destruiu os discos e, para completar, puniu o censor incompetente. Apenas se esqueceu de destruir a matriz, o que possibilitou a reedição do original, depois que a tempestade passou. Daí em diante, e até o final da ditadura, Chico Buarque seria implacavelmente marcado pelos censores, sofrendo suas letras os mais absurdos vetos e rejeições. A situação chegou ao ponto de ele ter que se disfarçar, sob os pseudônimos de Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, para aprovar três composições, uma das quais, Acorda Amor, incluída no elepê Sinal Fechado, em 1974. Descoberta a farsa, porém, a censura criou novas exigências: toda letra apresentada teria que ser acompanhada de cópias da carteira de identidade e do CPF do compositor.
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Fonte: Livro 85 anos de Música Brasileira, Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34.
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Apesar de você
Chico Buarque/1970


Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal


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Tanto mar
Chico Buarque
1975

(primeira versão)*

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

* Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.

1978
(segunda versão)

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim


Nota sobre “Acorda amor”
Por Humberto Werneck
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Depois de Calabar, Chico percebeu que seria difícil passar alguma coisa com o seu nome. O jeito, descobriu, era disfarçar-se num pseudônimo. Nascia Julinho da Adelaide, compositor mais falante que prolífico, autor de três canções: Acorda amor, Jorge Maravilha e Milagre brasileiro. Como a Censura nada tinha contra Julinho, sua criações passavam tranqüilamente. Pouco se sabia a seu respeito até que Chico, em setembro de 1974, entrou na pele da personagem e deu uma longa
entrevista ao teatrólogo Mário Prata e ao jornalista Melchíades Cunha Jr., para a edição paulista de Última Hora.

O texto da entrevista não registra a colaboração do pai de Chico, que garimpou em seus livros a foto de uma mulher negra, muito bonita. Saiu no jornal com a legenda “Adelaide na época de Orfeu Negro e da Brasiliana”. Mas não foi apenas com seu rosto que a mãe de Julinho apareceu na imprensa. Em 1975, a boa senhora começou a fazer palavras cruzadas, que enviava ao cruzadista do Jornal do Brasil, Carlos Silva. Ao encaminhar a primeira, Adelaide de Oliveira Kuntz mandou também uma carta onde ressaltava a importância desse hobby em sua vida – “um agradabilíssimo passatempo e um conforto para quem, como eu, está irremediavelmente condenada a uma cadeira de rodas”. Carlos Silva, um cavalheiro, não apenas publicou a criação como acrescentou uma palavrinha de estímulo: “Seu primeiro problema está muito bom e esperamos que seja o início de ótimas produções.” Chico diz que apesar disso ela ficou um tanto aborrecida com Carlos Silva, que corrigiu o seu problema - trocou “ratificará” por “ratificada”, por exemplo.

Numa carta a Mário Prata, por essa época, Chico explicou que Adelaide se tornou cruzadista ao ficar paralítica, e que ficou paralítica ao perder o filho. Julinho morreu, de fato, naquele ano de 1975, ao ser desmascarado numa reportagem do Jornal do Brasil sobre censura. Depois dessa revelação desmoralizante, a Polícia Federal passou a exigir que as músicas submetidas à sua aprovação fossem acompanhadas de cópia dos documentos do compositor.

Por motivo de falecimento, Julinho da Adelaide não chegou a mandar para Brasília a sua criação número três: O milagre brasileiro (gravada tempos depois por Miúcha).
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© Copyright Humberto Werneck in Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989.

Música gravada no disco “Sinal fechado” (1974). Neste LP/CD Chico interpreta outros compositores com exceção da faixa Acorda amor, de Leonel Paiva & Julinho da Adelaide, nomes criados para burlar a censura.
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Acorda Amor
Leonel Paiva & Julinho da Adelaide/1974

Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição

Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição

São os homens e eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer

Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, clame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
Não esqueça a escova, o sabonete e o violão
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quarta-feira, dezembro 19, 2007

 

Beatriz


Ilustração: Naum Alves de Souza

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Fuçando mais um pouco no site do Chico, encontrei algumas notas sobre a música Beatriz (dele e Edu Lobo), composta pro balé “
O grande circo místico”, em 1982. Transcrevo as notas (que trazem curiosidades) e deixo algumas versões desta linda canção:
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Nota sobre "Beatriz"
Entrevista para a Revista Nossa América

Chico - E só tem graça aceitar uma encomenda quando você pode ser infiel ao que foi encomendado, quando você pode tomar certas liberdades. Quando eu estava fazendo as letras para as músicas de Edu Lobo, no balé O grande circo místico, havia um tema para a equilibrista que eu não conseguia solucionar. No poema de Jorge de Lima, a equilibrista se chamava Agnes, que, aliás, é um belo nome, mas a letra não saía. Então troquei Agnes por Beatriz, transformei a equilibrista em atriz e coloquei-a no sétimo céu, em homenagem à Beatrice Portinari, de Dante. Beatriz carregando minhas obsessões...
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Fonte: Entrevista para a Revista Nossa América, 1989 (entrevista completa)


Nota sobre "Beatriz"
Por Humberto Werneck

Depois de tanto caminho, os dois estão perfeitamente entrosados e o parceiro já não se aflige quando Chico cai no que ele chama de “estado catatônico” - os olhos arregalados para o vazio e um ar distante. São as turbinas da criação entrando em funcionamento, sabe Edu. Houve um momento assim quando trabalhavam na música Beatriz, para O grande circo místico. Subitamente Chico saiu do ar, ficou “catatônico” por uns instantes - e então disparou para casa. No dia seguinte, apareceu com a letra, na qual há requintes que ainda impressionam Edu, como a palavra chão correspondendo à nota mais grave e céu à mais aguda.

© Copyright Humberto Werneck, Gol de letras, em “Chico Buarque Letra e Música”, Cia da Letras, 1989.


Nota sobre "Beatriz"
Por Jairo Severiano & Zuza Homem de Mello

“O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps / resolveu que seu filho também fosse médico / mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes / com ela se casou, fundando a dinastia do Circo Knieps.” Com esses versos Jorge de Lima começava em 1938 o poema surrealista “O Grande Circo Místico”, inspirado num fato real ocorrido na Áustria no século XIX. Quarenta e cinco anos depois, Edu Lobo e Chico Buarque criariam a trilha musical para um bailado homônimo, baseado no poema, atendendo a uma encomenda do Balé Guaíra, do Paraná. No repertório composto, com relevantes arranjos do maestro Chiquinho de Morais, destacou-se a valsa "Beatriz", uma metáfora da vida de atriz, também surrealista e de excepcional qualidade: “Olha / será que é uma estrela / será que é mentira / será que é comédia / será que é divina / a vida da atriz...” De interpretação difícil, em razão de sua extensão vocal, dos intervalos melódicos e das modulações, "Beatriz" ganhou uma gravação definitiva de Milton Nascimento, que afirma: "'Beatriz' é minha." Edu fez a música em tempo relativamente curto, com "a certeza de que ia ficar legal", ao contrário de Chico, que demorou para completar a letra, sendo a composição uma das últimas do bailado a ser concluída. A escolha de Milton para intérprete foi resolvida de imediato pelos autores, pois somente ele, com a naturalidade de que é capaz de fazer a passagem da voz normal para o falsete, poderia gravar "Beatriz". Na hora da gravação, Milton ficou no estúdio apenas com o pianista Cristóvão Bastos e na terceira tomada cantou a versão escolhida. Posteriormente, foram acrescentadas umas pinceladas de cordas pelo arranjador Chiquinho de Morais. Sem jamais ter entrado em paradas de sucesso, "Beatriz" acumulou prestígio ao longo do tempo, impondo-se por sua beleza como um clássico da moderna música brasileira. Do começo ao fim, sua partitura tem um desenvolvimento encantador, no mesmo nível de criação dos grandes compositores de qualquer época ou país. No formato A-A-B-A, a melodia de A parte de uma célula ("será que ela é moça"), aproveitada cinco vezes em movimento harmônico ascendente, com pequenas alterações, destacando-se os acidentes na última, sobre as sílabas "rosto", do verso "o rosto da atriz". Segue-se ainda em A uma sucessão de colcheias ("se ela dança no sétimo céu"), culminando em duas notas longas (semínimas pontuadas na palavra "vida"), que funcionam como uma pausa e, na repetição de A, como preparação para a segunda parte. Em B a tonalidade sobe uma quinta aumentada, pois a modulação que vem de mi bemol passa a si natural. Neste ponto a interpretação se torna ainda mais difícil, tanto por se atingir a nota mais grave da composição, na palavra "chão" (da frase "me ensina a não andar com os pés no chão"), quanto pelos saltos melódicos, acrescidos de outros acidentes primorosamente colocados, como no verso "quantos desastres tem na minha mão". Tempos depois de a música gravada, Edu e Chico descobriram uma coincidência: a nota mais grave da canção cai na palavra "chão" e a mais aguda na palavra "céu"..

[Fonte: Livro “85 anos de Música Brasileira”, Vol. 2, 1ª edição, 1997, Editora 34.]
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Beatriz
Edu Lobo & Chico Buarque/1982

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva para sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida


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Gravação antológica de Milton Nascimento (“O Grande Circo Místico” - 1983)





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Gravação de Cida Moreyra (“Cida Moreyra canta Chico Buarque” - 1993)
Piano: Gil Reyes







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Gravação de Gal Costa (S
ongbook Edu Lobo – vol. 2 - 1995)
Cellos: Jaques Morelenbaum







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Gravação de Edu Lobo & Milton Nascimento (“Meia-noite” - 1996)
Violão: Marco Pereira & Orquestra de Cordas
Arranjo & regência: Cristóvão Bastos
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Gravação de Zizi Possi (Songbook Chico Buarque – vol. 2 - 1999)
Piano & arranjo: Cristóvão Bastos
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Gravação de Zizi Possi (“Puro Prazer” - 1999)
Piano: Jether Garotti Jr.
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Gravação de Mônica Salmaso (“Noites de gala, samba na rua” - 2007)
Piano: Nelson Ayres







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Se alguém souber de mais alguma... (além da gravação da Ana Carolina, postada anteriormente)


 

A voz do dono e o dono da voz


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E por falar em voz(es), encontrei, no site oficial do Chico, uma nota sobre a canção “A voz do dono e o dono da voz” (composta por ele, em 1981, e gravada, no disco “Almanaque”, no mesmo ano):

Nota sobre "A voz do dono e o dono da voz"
Por Humberto Werneck

Nem sempre, porém, os problemas eram apenas com a censura, como ficou demonstrado no caso de Cálice. A música foi composta por Chico e Gilberto Gil, no clima pesado de uma Sexta-feira Santa, para o show Phono 73, que a gravadora Phonogram (ex Philips, e depois Polygram) organizou no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, em maio de 1973. Como a censura havia proibido a letra, os dois autores decidiram cantar apenas a melodia, pontuando-a com a palavra cálice - mas nem mesmo isto foi possível. Segundo o relato do Jornal da Tarde, "a Phonogram resolveu cortar o som dos microfones de Chico, para evitar que a música, mesmo sem a letra, fosse apresentada".

Sucessivos entreveros com a gravadora, a partir daí, levariam o compositor a buscar outro selo em 1980 - ou a voz a buscar outro dono, como disse numa bem-humorada canção de seu primeiro LP na Ariola, Almanaque, de 1981, chamada A voz do dono e o dono da voz: Enfim, a voz firmou contrato / e foi morar com novo algoz.

Mas não deu sorte: no dia em que acabou de gravar Almanaque, a Ariola foi vendida - exatamente para a Polygram. O clima no final do contrato era tão ruim que Chico, durante a gravação de seu último disco na casa, Vida, em 1980, se inquietou com a possibilidade de que a Polygram viesse a guardar, de olho em futuros lançamentos, a sua voz-guia - espécie de rascunho com a voz do cantor, para orientar o trabalho de orquestração. Na tentativa de inviabilizar qualquer eventual projeto nesse sentido, Chico tratou de rechear a fita com palavrões. Estava extremamente tenso, nessa época. Um dia, ao preencher um cheque para o analista, desabafou: "Vou mandar esta conta para a Phonogram".

Houve problemas também, e duradouros, com a Rede Globo.

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..© Copyright Humberto Werneck, Gol de letras, em Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989.


A voz do dono e o dono da voz
Chico Buarque/1981

Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós
Fizeram bodas de acetato - de fato
Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz, a voz resulta um prato
Que gira para todos nós

O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes, Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó

Porém a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes

Enfim, a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar, queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz

Foi revelada na assembléia - atéia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel trocando de traquéia
E o dono foi perdendo a voz

E o dono foi perdendo a linha - que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém

(O que é bom para o dono é bom para a voz)
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“Almanaque” – 1981
Voz: Chico Buarque
Piano elétrico: Francis Hime
Violão: Burner
Guitarra: Toninho Horta
Baixo: Novelli
Trumpete: Márcio Montarroyos
Sax-soprano: Mauro Senise
Órgão: Zé Ribeiro Bertrami
Vibrafone: Pinduca
Bateria: Paulinho Braga
Percussão: Djalma Correa & Papete
Coro: Claudinha Telles, Regina, Soninha Burnier, Beto, Ronaldo & Valdir
Arranjo vocal: Magro



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“Cida Moreyra canta Chico Buarque” – 1993
Voz e piano: Cida Moreyra
Clarineta: Gil Reyes
Percussão: Sérgio Chica
Baixo: Fábio Tagliaferri
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"Songbook Chico Buarque" (vol. 5) – 1999
Voz: Cris Braun
Piano & arranjo: Leandro Braga
Violão: João Lyra
Baixo: Jorjão Carvalho
Cavaquinho: Luciana Rabello
Percussão: Zero


terça-feira, dezembro 18, 2007

 

Na voz do Chico



Pra Graziana, então, na voz do Chico (CD “Chico Buarque” – 1984):
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Mil perdões
Chico Buarque/1983

[Pro filme "Perdoa-me por me traíres", de Braz Chediak]


Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais

Te perdôo
Te perdôo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim

Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)

Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair

Piano, teclados & arranjo: Cristóvão Bastos
Violão: Ricardo Silveira
Baixo acústico: Nico Assumpção
Bateria: Chico Batera
Sax-soprano: Zé Nogueira
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domingo, dezembro 16, 2007

 

A voz de Ana Carolina



A primeira vez que ouvi Ana Carolina foi no songbook do Chico (1999). Encantei-me com sua voz grave (já falei que adoro instrumentos musicais graves: baixo, celo, viola, sax, piano & violão acústicos):
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Mil perdões
Chico Buarque/1983

[Pro filme "Perdoa-me por me traíres", de Braz Chediak]


Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais

Te perdôo
Te perdôo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim

Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)

Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair

Arranjo & piano: Leandro Braga
Guitarra: João Lyra
Baixo: Bororó
Flauta: Andréa Ernest Dias
Cavaquinho: Luciana Rabello
Percussão: Zero


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Outra canção qu’eu gosto muito, na voz dela:

Luiza
Tom Jobim


Rua, espada nua
Bóia no céu, imensa e amarela
Tão redonda a lua
Como flutua
Vem navegando
O azul do firmamento
E num silêncio lento
Um trovador, cheio de estrelas

Escuta agora a canção que eu fiz
Pra te esquecer Luiza
Eu sou apenas um pobre amador
Apaixonado
Um aprendiz do teu amor
Acorda, amor
Que eu sei que embaixo desta neve mora um coração

Vem cá, Luiza, me dá tua mão
O teu desejo é sempre o meu desejo
Vem, me exorciza
Dá-me tua boca
E a rosa louca
Vem me dar um beijo
E um raio de sol
Nos teus cabelos
Como um brilhante que partindo a luz
Explode em sete cores
Revelando, então,
Os sete mil amores
Que eu guardei somente
Pra te dar, Luiza

Esta gravação o Arnaldo pegou na Internet, tempos atrás. Não achou nenhum registro dela. Não sabíamos quando foi e nem onde. Parecia uma coisa meio pirata...

Agora, pesquisando no Dicionário MPB
, descobri qu’ela foi gravada ao vivo, no auditório da Rádio MPB FM, durante o programa "Palco MPB". Posteriormente, lançada no disco "Palco MPB 2", ficaria entre as mais solicitadas da programação da emissora em 2001 e 2002.

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Já a interpretação de Retrato em branco & preto (Tom & Chico), em seu 1° CD, “Ana Carolina” (1999), não me agrada:

Retrato em branco e preto
Tom Jobim & Chico Buarque/1968


Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior

O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto
E que, no entanto,
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retrato
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração

Arranjo & guitarra: Ana Carolina


Mas Beatriz (Edu Lobo & Chico) ficou bem legal:

Beatriz
Edu Lobo & Chico Buarque/1982

[Pro balé “O grande circo místico”]

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva para sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

Arranjo & violão de nylon: Ana Carolina
Violão de aço: Paulo Moska



Eu te amo (Tom & Chico), gravada também no songbook do Chico, ficou assim:

.Eu te amo
Tom Jobim & Chico Buarque/1980


Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

Arranjo & piano: Cristóvão Bastos

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E eu gosto bastante.



domingo, dezembro 02, 2007

 

Jardim de inverno



Vivo sempre com um livro nas mãos, pra cima e pra baixo. Em fila de banco; em sala de espera de consultório médico, dentista, sessão de fisioterapia (e afins); em mesa de padaria e confeitaria; avião (nas raras viagens que faço). Só não leio em carro e ônibus, pois sinto dor de cabeça e mal-estar. Explico isso, porque perdi meu livro “Um baiano romântico e sensual”, de Zélia Gattai e filhos, João & Paloma Amado [Record, 2002], e, junto com ele, um caderno de anotações. O livro é repleto de fotos ótimas, qu’eu selecionei e iria usá-las em mais um post da Zélia, falando do exílio, na Tchecoslováquia. Transcrevo, então, o texto extraído do livro “Jardim de Inverno” [de 1988, reeditado pela Record, em 2005], sem ilustrações, apenas com a foto de Zélia e sua câmara fotográfica em punho:
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“(...) Hóspedes da União de Escritores Tchecos, fomos recebidos no aeroporto, em Praga, por um grupo de escritores, entre eles Jan Drda, nosso amigo e presidente da entidade. Kuchválek, companheiro desde a primeira visita à Tchecoslováquia, nosso tradutor, também lá estava, firme. (...)

Passamos uma semana em Praga antes de nos instalarmos no Castelo dos Escritores, junto a uma pequena cidade, Dobris, a uns quarenta e tantos quilômetros de Praga.”
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História madura

O outono partira, o inverno chegara, a neve caía (...).

No silêncio do castelo imenso e deserto, livre de telefonemas e de visitas, isolados do mundo, Jorge começara a escrever um romance. Ainda em Paris ele me falara nesse projeto: "O livro está maduro em minha cabeça..." Tema palpitante, Os subterrâneos da liberdade contaria da luta do povo brasileiro contra a ditadura do Estado Novo, ditadura cujas conseqüências Jorge sofrera na própria carne, problema que vivera intensamente.

Tratei logo de conseguir uma máquina de escrever, indispensável para o meu trabalho de passar a limpo e tirar cópias dos originais do livro. Mas, ao sentar-me pela primeira vez diante da máquina emprestada, me senti perdida. O danado do teclado, além de ter as letras em posições diferentes daquelas a que eu estava habituada, não possuía til nem cê cedilhado, substituídos por outros acentos estranhos à nossa língua. Até conseguir dominá-Ia eu ia ter que apanhar muito. O pior era que eu só podia trabalhar à noite, depois de adormecer João, já cansada de correr atrás dele o dia todo.

(...) Chovesse ou fizesse sol – e fazia muito frio no início daquele inverno –, eu pulava da cama ao primeiro resmungo de meu filho, habituado a acordar cedo. Rápida, tratava de vesti-lo e saíamos do quarto num passo de gato, evitando fazer barulho para não despertar o pai, muitas vezes varando a noite no trabalho.

Nas andanças com João Jorge por ali tudo, fui tomando intimidade com o castelo, descobrindo seus segredos, seus meandros; já identificava seus habitantes, conhecia mais de perto a cidade.
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Fim de outono

Certa manhã, ainda no fim do outono, ao voltarmos do passeio habitual no bosque, nos deparamos com uma grande movimentação no jardim. Sob o olhar vivo e atento de Marvan, gerente do castelo, homens carregando tábuas, munidos de martelos e pregos, pregavam as tábuas em torno das esculturas de pedra que enfeitavam o jardim. Em três tempos, o enorme touro atacado por cães, os cavalos, a figura de Hércules exibindo sua força e os anjos sobre pedestais nos topos das escadarias desapareceram dentro dos imensos caixões que iam sendo fabricados, com uma rapidez incrível, pelos competentes operários.

De repente tudo ficou triste e desolador com aqueles monstrengos levantados em meio aos canteiros, canteiros ressentidos pelo frio, despidos de plantas e de flores. Não consegui descobrir o que significava aquele rebuliço no jardim; Marvan não falava outra língua a não ser o tcheco, e sua habilidade na mímica não era das mais brilhantes. De Marvan não arrancaria nada, devia bater noutra freguesia se quisesse matar minha curiosidade. Divisei ao longe o velho Otokar Suhy caminhando lentamente, apoiado na bengala, na sua costumeira elegância, de sobretudo preto, chapéu de aba reta, as longas barbas brancas. Otokar Suhy chegava na hora certa. Não tive paciência de esperar que ele se aproximasse; fui ao seu encontro. O velho então me contou que a revolução no jardim se repetia todos os anos, no início do inverno, antes que a neve tombasse; providência tomada a fim de evitar rachaduras nas esculturas, decorrentes do frio e do contato com a neve.

Aposentado, homem fino, o velho Otokar exercera, quando jovem, funções diplomáticas em Paris, o que lhe rendera um francês impecável e maneiras cavalheirescas. O velho escritor – ele escrevia livros infantis – residia em Praga mas costumava passar os meses frios de inverno no Castelo dos Escritores, onde teria calefação garantida. O carvão andava escasso e racionado em todo o país, e quem dependesse do aquecimento de radiadores a carvão não podia contar com calor permanente; já o zámek - castelo, em tcheco – era quase todo equipado com chauffage central. Eu nunca ousei perguntar ao meu fidalgo amigo a sua idade, mas comentava-se que ele já passara, havia muito, dos oitenta anos. Nos encontrávamos em passeios matinais e trocávamos gentilezas. O velho era a minha tábua de salvação, sempre às ordens para servir de intérprete e explicando-me coisas que por vezes me intrigavam.
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"Pane" Marie e sua princesa

Ao longe avistei pane Marie vindo em minha direção. Sorridente ela se aproximava, a cabeça alva protegida do frio por um xale de lã florado, preso sob o queixo. Andava ligeiro – lépida para os seus oitenta anos confessados – entre os canteiros do jardim coberto de neve. Acenou-me com um objeto embrulhado em papel pardo, agitando-o ao alto. Pelo formato do embrulho, deduzi tratar-se do retrato emoldurado da princesa Coloredo Mansfeld – ex-proprietária do castelo de Dobris –, oferecido a pane Marie, sua lavadeira de toda a vida.

Na véspera, pane Marie se referira a ele. Não vou contar vantagem: do que a velha me dissera não havia entendido metade. Pescara uma palavra aqui, outra ali, chegando à conclusão de que ela desejava mostrar-me o tal retrato.

Eu já me hospedara outras vezes no castelo de Dobris, passando curtas temporadas, mas morar mesmo, de residência fixa, era a primeira vez. Num ambiente onde só se falava o tcheco, eu tratava de me esforçar para aprender um idioma, sem, no entanto, lograr grandes progressos. Língua mais complicada, avara em vogais e pródiga em declinações, criava confusão em minha cabeça habituada às línguas latinas, mas isso não me impedia de ir avante. Aprendera uma boa dezena de palavras e decorara frases indispensáveis a um mínimo de entendimento no trato diário com as pessoas. Tornava-me, isso sim, mestra em deduzir e tirar conclusões. Dessa vez, a do bate-papo na véspera com pane Marie, nem me custara esforço compreendê-Ia. Em Dobris, quem não tinha visto ainda o famoso retrato da princesa, conservado pela lavadeira como relíquia, exibido por ela a Deus e ao mundo? De pane Marie me haviam dado o serviço completo, sobretudo me falaram de sua devoção aos ex-patrões. Por isso eu nem estranhara quando, dias antes, ela me levara a pulso à igreja defronte ao castelo. Seu objetivo era mostrar-me no teto do templo os ex-patrões retratados em pintura colorida, cercados de anjos e de rosas. Ao vê-Ia embevecida apontar as figuras do casal de príncipes, pude dar-me conta do enorme e sincero carinho da ex-empregada pelos amos.

Pane Marie foi se chegando e dando bom-dia:

_ Dobry den, pane Amadova.

Pane Amadova: esse tratamento eu já não estranhava, achava até natural, ou melhor, já não achava nada. Atendia com naturalidade. Afinal de contas, sabia que pane significava senhora e Amadova era declinação de Amado. Quanto a dobry queria dizer bom, e den, dia. Fácil.

_ Dobry den, pane Mane - respondi.

A velha fez uma rápida festinha na cabeça de João e em seguida, sem dizer nada, ligeiramente excitada, abriu o embrulho, afastando o papel com toda a delicadeza. Eu acertara: lá estava ela, a princesa, princesa como manda o figurino, de coroa, brocados e rendas, no regaço um cãozinho refestelado, orelhinhas de pé, olhos acesos, em pose adequada para uma foto oficial.

Lavadeira da princesa, de antiga e estreita intimidade com as finas lingeries da patroa, pane Marie merecera não apenas uma cópia do retrato emoldurado como também, oh, suprema honra!, dedicatória de próprio punho. Ela trabalhara para sua ama até o último momento. Chorava, um pranto sentido, ao recordar aquele triste dia em que a vira partir para sempre, rumo à França.

Os príncipes Coloredo Mansfeld haviam dividido as habitações do castelo com os invasores nazistas durante a ocupação da Tchecoslováquia, mas não se dispuseram a compartilhá-Io com os novos intrusos. O governo socialista destinara aos escritores o belo zámek. Lá eles iriam trabalhar, passar os fins de semana e as férias com suas famílias. Inconformados com a invasão de seus domínios, os príncipes preferiram partir, abandonar a propriedade, a ocupar apenas uma ala do castelo, como lhes fora proposto. Partiram levando imensa bagagem e deixando para trás o coração de pane Marie despedaçado.

A velha lavadeira se aposentara, mas costumava dizer que, aposentada ou não, suas mãos nunca mais iriam lavar anáguas de seda nem esfregar fundos de calcinhas que não fossem as de sua princesa.

Vivendo na casa que sempre ocupara, em Dobris, a uma centena de metros do castelo, sempre que podia dava uma passada por lá, vinha matar as saudades. Saudades da casa, certamente, pois tudo fora mudado, nem mesmo a antiga criadagem permanecera. Os novos empregados gostavam da velha, os escritores faziam-lhe muita festa e divertiam-se ouvindo-a contar histórias dos "bons tempos", como costumava dizer.
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O limpa-chaminés

Foi João quem o avistou primeiro e se alvoroçou: montado numa bicicleta, lá vinha um personagem bastante estranho: magro, todo de preto, roupa de malha colante, na cabeça um gorro enterrado, gorro em forma de funil cuja longa ponta tombava de lado. Pendurado no ombro ele trazia um rolo de fio de aço. Atrás de sua bicicleta corriam as crianças dos Prochaska, porteiros do zámek. Excitado, João soltou-se de minha mão e correu, também ele, a incorporar-se ao bando. Tratava-se de um limpa-chaminés, chamado para verificar e desentupir, se fosse o caso, as chaminés do castelo, pois já era tempo de acenderem as lareiras dos salões, únicos lugares onde a calefação central era insuficiente. Perito em galgar telhados, leveza incrível, o homem foi subindo, subindo cada vez mais, até atingir a chaminé principal.

Inédita para mim, a operação me encantava. Ficaria ali acompanhando as manobras até o fim, mas não pude. Os sinos da igreja repicaram e a criançada saiu em carreira desenfreada para o portão da rua, João com eles, em busca de outra atração, talvez mais palpitante do que a do limpa-chaminés. Os sinos da igreja anunciavam a aproximação de um enterro. (...)
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Jardim de inverno

Os domínios de pan Hruby, responsável pela administração do grande e belo parque do castelo de Dobris, situavam-se nos limites entre o jardim e o bosque. Numa singela casinha branca, cortinas de renda sobre os vidros da janela, vasos de flores no parapeito, pan Hruby vivia com a mulher, moça simpática, e dois filhinhos. Um tanque com peixinhos vermelhos separavam sua casa de um amplo e bonito jardim de inverno, destinado ao cultivo de flores em vasos, construção dos templos dos príncipes. Numa estufa rústica, levantada por suas próprias mãos, estendiam-se leiras de verduras e legumes.

O jardineiro era um homem risonho, mas de poucas palavras. Gentil como ele só, não se esforçava, no entanto, para entender meu tcheco arrevesado; respondia às minhas indagações com um sorriso e, quando muito, meneava a cabeça.

Ao voltar dos passeios no bosque, eu costumava passar pelo jardim de inverno e pela estufa. Acompanhava, passo a passo, o desenvolver das plantas nos vasinhos, o surgir dos botões que iam aumentando a cada dia, inchando, estufando até explodirem em flores coloridas. Acompanhava com maior interesse o crescimento lento dos legumes. Ai, que desespero! Como demoravam a tomar corpo as cenouras, os nabos e os rabanetes...

Algumas vezes eu perdia a paciência e tentava convencer o jardineiro a arrancar os legumes da terra antes de estarem completamente formados. Nessas ocasiões ele me compreendia perfeitamente, dizia não com o dedo, me confundia e derrotava. Jamais consegui demover o testarudo de seu princípio: tudo tem seu tempo certo. O jeito era me resignar, e eu me resignava.

Não somente o interesse de acompanhar o desabrochar das flores e o crescimento dos legumes me levava com certa constância às plantações de pan Hruby. Lá dentro, abafada pela ausência do ar puro, em meio a flores se abrindo no calor artificial, eu imaginava coisas, sonhava, procurava me encontrar... Aconteceu mesmo ocorrer-me um dia a idéia de comparar o nosso exílio a um cativeiro, imenso e abafado jardim de inverno. Recordei-me até, num momento de maior nostalgia, de um verso que eu declamara em criança: “A ave presa em gaiola não pode cantar assim / é como a flor que se estiola longe do fresco jardim...” E por que essa tola comparação? O exílio seria mesmo um cativeiro? Seríamos por acaso flores que se estiolavam longe do fresco jardim? Achei graça da maluquice! Voltar para nosso país seria a melhor coisa do mundo, claro que seria. Mas, naquela ocasião, o Brasil não era um fresco jardim. Longe disso.

Essas reflexões só podiam ter uma explicação: saudades, saudades imensas de meu filho que ficara no Brasil, saudades de minha gente, de minha terra. Extravasamento de melancolia contida, única definição para os sentimentos que me ocorriam nos domínios de pan Hruby. Assim me parecia então.
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[trechos extraídos do livro “Jardim de Inverno”, Zélia Gattai, pp. 12-13-14-15-16-18-19-20]
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leira [Do b.-lat. larea]
Substantivo feminino
1. Sulco aberto na terra para receber a semente.
2. Canteiro entre dois regos, por onde corre água; alfobre, tabuleiro.
3. Pequeno campo cultivado.
4. Elevação de terra entre dois sulcos: “Nas leiras, dispostas com simetria agradável, verdejavam .... legumes de todas as castas” (Trindade Coelho, Os Meus Amores, p. 92).
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arrevesado [Part. de arrevesar]
Adjetivo
1. Intrincado, confuso, obscuro.
2. Diz-se de vocábulo de pronúncia difícil.
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arrevesar [De ar-1 + revés + -ar]
Verbo transitivo direto
1. Pôr ao revés, às avessas.
2. Dar sentido contrário a: Ele não disse tal coisa; quem o ouviu arrevesou suas palavras.
3. Tornar confuso, obscuro, intricado.
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menear [De manear, com assimilação]
Verbo transitivo direto
1. Mover de um para outro lado; manear: “A rapariga meneou a cabeça afirmativamente” (Aluísio Azevedo, O Cortiço, p. 204); “Três gregas de alvos pés, pubescentes e esguias, / Torcendo os corpos nus, donde acre aroma escapa, / Dançam meneando véus, flexíveis como enguias.” (Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira, p. 69).
2. Mover com desenvoltura (braços, pernas, quadris); saracotear.
3. Manejar; manusear: menear um pincel.
4. Dirigir, gerir; administrar: menear negócios.
Verbo pronominal
5. Mover-se; mexer-se; agitar-se.
6. Mover-se de um para outro lado; oscilar; manear: “Também lá se meneia o cipreste / Sobre o corpo que à terra desceu.” (Alexandre Herculano, Poesias, p. 80.)
7. Saracotear-se, bambolear(-se). [Conjug.: v. frear. Pret. imperf. ind.: meneava, ... meneáveis, meneavam.]
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estiolar [Do fr. étioler]
Verbo transitivo direto
1. Causar estiolamento (1 e 2) a.
Verbo intransitivo
Verbo pronominal
2. Sofrer estiolamento (1 e 2): “A viúva envelhece de lágrimas e estiola como uma trepadeira queimada” (Fialho d’Almeida, Contos, p. 230).
3. Por extensão Sofrer estiolamento (3); debilitar-se, enfraquecer-se; definhar, finar-se: “Para que não crescesse [o anarquismo], como planta bem regada, e ao contrário se estiolasse, seria necessário que ele próprio se persuadisse, se não já da falsidade da sua idéia, ao menos da inutilidade das suas práticas” (Eça de Queirós, Ecos de Paris, p. 189).
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estiolamento [De estiolar + -mento]
Substantivo masculino
1. Bot. Alteração mórbida das plantas que vegetam em lugar escuro ou são privadas da luz, e que se caracteriza pelo descoramento e amolecimento dos tecidos ao atingirem certo grau de crescimento; ensoamento.
2. Fisiol. Descoramento e enfraquecimento dos indivíduos que vivem privados da influência da luz e do ar puro.
3. Por extensão Definhamento, enfraquecimento, fraqueza.
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Como fundo musical, pensei em colocar Henri Salvador (Arnaldo falou sobre ele, uma vez, num post, no Baú de Tranqueiras) & Rosa Passos, cantando, respectivamente, “Jardin d’hiver” e sua versão, em português, “Jardim”:
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Jardin d'hiver
(Keren Ann Zeidel & Benjamin Biolay)
Intérprete: Henri Salvador
CD: “
Chambre avec vue

Je voudrais du soleil vert
Des dentelles et des théières
Des photos de bord de mer
Dans mon jardin d'hiver

Je voudrais de la lumière
Comme en Nouvelle Angleterre
Je veux changer d'atmosphère
Dans mon jardin d'hiver

Ta robe à fleur
Sous la pluie de novembre
Mes mains qui courent
Je n'en peux plus de l'attendre
Les années passent
Qu'il est loin l'âge tendre
Nul ne peut nous entendre

Je voudrais du Fred Astaire
Revoir un Latécoère
Je voudrais toujours te plaire
Dans mon jardin d'hiver

Je veux déjeuner par terre
Comme au long des golfes clairs
T'embrasser les yeux ouverts
Dans mon jardin d'hiver

Ta robe à fleur
Sous la pluie de novembre
Mes mains qui courent
Je n'en peux plus de l'attendre
Les années passent
Qu'il est loin l'âge tendre
Nul ne peut nous entendre
.
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Jardim
(Versão: Michelino Silvano & Bia Krieger)
Intérprete: Rosa Passos
CD: “
ROSA

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Eu só quero um sol verdinho
Pé de manga e de jasmim
Muita fita do Bonfim
Aqui no meu jardim
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Eu só quero a luz marfim
Afastando o que é ruim
Respirar pirlimpimpim
Aqui no meu jardim

A chuva cai
Inundando o capim
Do mesmo céu
Vem você querubim
O tempo vai
Quanto tempo já foi
Ninguém mais
Só nós dois

Quero ouvir o passarinho
Sobiando Tom Jobim
Cachoeira e mar sem fim
Aqui no meu jardim

Quero um cheiro de alecrim
Tua beleza, Diadorim
E te ouvir dizer que sim
Aqui no meu jardim

A chuva cai
Inundando o capim
Do mesmo céu
Vem você querubim
O tempo vai
Quanto tempo já foi
Ninguém mais
Só nós dois


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