terça-feira, julho 31, 2007

 

A CASA DE PAPEL (I)




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Fomos, Arnaldo, Cecília & eu, conhecer a nova Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, na Paulista, em São Paulo. Saí de lá com um livro pequeno, fininho (quase um pocket book), daqueles que você bate o olho, vai com a cara, com o título, dá uma folheada, vê a contracapa e as orelhas e quer levar, ou sentar, ali mesmo, e ler, inteiro (mas não tínhamos tempo pra isso, a visita à livraria era rápida, passagem entre um programa & outro): A Casa de Papel, do escritor argentino Carlos Maria Domínguez*. Transcrevo alguns trechos:




Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas de Emily Dickinson, e ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi atropelada por um automóvel.

Os livros mudam o destino das pessoas. Uns leram O tigre da Malásia e se transformaram em professores de literatura em remotas universidades. Sidarta levou milhares de jovens ao hinduísmo, Hemingway transformou-os em esportistas, Dumas transtornou a vida de milhares de mulheres e não poucas foram salvas do suicídio por manuais de cozinha. Bluma foi sua vítima.

Mas não a única. O velho professor de línguas antigas Leonard Wood ficou hemiplégico ao receber na cabeça cinco tomos da Enciclopédia Britânica, que se soltaram de uma prateleira de estante; meu amigo Richard quebrou uma perna ao tentar alcançar Absalão, Absalão!, de William Faulkner, mal localizado numa prateleira que o levou a cair da escada. Outro amigo de Buenos Aires pegou tuberculose nos porões de um arquivo público e conheci um cachorro chileno que morreu de indigestão com Os irmãos Karamázov, depois de devorar suas páginas numa tarde de fúria.

Cada vez que minha avó me via ler na cama, costumava dizer: "Deixe disso, os livros são perigosos": Durante muitos anos acreditei em sua ignorância, mas o tempo demonstrou a sensatez de minha avó alemã.

O funeral de Bluma atraiu inúmeras autoridades da Universidade de Cambridge. No ofício religioso, o professor Robert Laurel dedicou-lhe uma despedida soberba, depois editada em um fascículo por seu mérito acadêmico. Ele ressaltou sua brilhante carreira universitária, seus quarenta e cinco anos de sensibilidade e inteligência e, no corpo principal do trabalho, seus decisivos aportes à pesquisa da marca anglo-saxã nas letras latino-americanas. Mas culminou com uma frase controversa: "Bluma consagrou sua vida à literatura": disse, "sem imaginar que iria levá-la deste mundo".

Aqueles que o acusaram de estragar a peça com um "eufemismo abjeto" enfrentaram a acérrima defesa dos auxiliares de Laurel. Poucos dias mais tarde, em casa de minha amiga Anny, ouvi John Bernon dizer a um grupo de discípulos de Laurel:

_ Foi morta por um carro. Não pelo poema.

_ Nada existe fora de sua representação – argumentaram dois rapazes e uma moça judia de voz cantante. _ Qualquer um tem o direito de escolher a representação que quiser.

_ E de fazer má literatura. Concordo – rebateu o velho, com esse ar falsamente conciliador que lhe deu fama de cínico no campus, em polvorosa por causa das próximas entrevistas da pós-graduação em que Bernon concorreria com Laurel.
_ Há um milhão de pára-choques soltos nas ruas da cidade que lhes demonstrarão do que é capaz um bom substantivo.

As polêmicas sobre a famosa frase se estenderam pela universidade e houve um concurso de estudantes sob o tema "Relações entre realidade e linguagem".

Calcularam-se os passos de Bluma na calçada do Soho, os versos dos sonetos que teria chegado a ler, a velocidade do veículo; debateu-se com ardor a semiótica do trânsito em Londres, o contexto cultural, urbano e lingüístico do segundo em que a literatura e o mundo colapsaram sobre o corpo da querida Bluma. (...)

Ao longo dos anos, vi livros destinados a equilibrar a perna manca de uma mesa; conheci os transformados em mesa de cabeceira, dispostos em forma de torre e com um pano por cima; muitos dicionários aplainaram e prensaram mais objetos do que as oportunidades em que foram abertos, e não poucos livros guardam, dissimulados nas prateleiras, cartas, dinheiro, segredos. As pessoas também mudam o destino dos livros.

Um vaso se parte, uma cafeteira ou uma televisão se quebra muito antes do que um livro. Ele não se estraga a menos que seu proprietário queira fazê-lo, arranque suas páginas, ateie fogo nelas. Durante os anos da última ditadura militar argentina, muita gente queimou seus livros no bidê, nas banheiras, enterrou coleções no fundo de suas casas. Haviam-se tornado notoriamente perigosos. Entre eles e a própria vida, as pessoas escolhiam, transformadas em seu próprio verdugo.

Livros que haviam sido longamente estudados, discutidos, livros que tinham despertado paixões, compromissos irrenunciáveis, e distanciado velhos amigos, subiam ao céu transformados em cinzas de carvão que se dissipavam no ar.

Eu não me atrevi. Enrolava revistas e as introduzia dentro do tubo da cortina do chuveiro, escondia os livros mais temíveis no último canto dos armários, na fileira posterior da estante, com a consciência de que uma inesperada batida os descobriria. Naquela época os livros acusaram muita gente. Arruinaram-lhe a vida.

As relações da humanidade com esses objetos resistentes, capazes de atravessar um século, dois, vinte, vencer, se se quiser, a areia do tempo, nunca foram inocentes. Aderiram à fibra da madeira, macia e inquebrantável, uma vocação humana.

Não é que seja afeito a olhar debaixo das cadeiras. Gosto de deixar-me enganar pelos saltimbancos, os efeitos rústicos do teatro e a melodia impressa nas palavras. Mas a casa de papel, numa praia distante do sul, acabou por tornar-me sensível a essa linha de sombra: uma dimensão cega que reúne num estranho brinquedo a vontade e o corpo da letra impressa. (...)


["A Casa de Papel", de Carlos Maria Domínguez, 2006, Editora: Francis, pp. 9, 10; 75, 76]


acérrimo [Do lat. acerrimu]
Adjetivo.
1. Superl. abs. sint. de acre e agre; muito acre: fruta acérrima.
2. Muito tenaz; obstinado, pertinaz: É um acérrimo defensor da democracia; “Ao cabo de oito meses de luta acérrima, Sagunto sucumbiu.” (Aquilino Ribeiro, Os Avós dos Nossos Avós, p. 117).

verdugo [De um lat. hisp. *virducum (cat. ant. verduc) < lat. viride, ‘verde’, ‘a vara verde usada como açoite’, e depois, p. ext., ‘o carrasco’.]
Substantivo masculino.
1. Indivíduo que inflige maus-tratos.
2. V. carrasco 1 (1): “dois anos depois que a sua cabeça [de Balboa] rolava no cepo do verdugo, .... cruzava Magalhães o mesmo mar do sudoeste ao noroeste” (Latino Coelho, Fernão de Magalhães, pp. 131-132).
3. Pequena navalha pontiaguda.
4. Parte saliente da chapa de trilho nas rodas dos vagões, destinada a evitar descarrilamentos.
5. Constr. Nav. Peça reforçada, de madeira, boleada, presa ao longo do costado de uma embarcação, da proa à popa, junto à falca, ou cravada na cinta dos rebocadores, etc., e destinada a proteger o costado contra choques e roçaduras por ocasião das atracações: “Joel remanchava, preso ao costado da lancha, atônito, agarrando-se com as unhas ao verdugo, às varas, .... esperando um olhar de Jana em despedida.” (Xavier Marques, Jana e Joel, p. 121.)

carrasco 1 [Do antr. (Belchior Nunes) Carrasco, que antes do séc. XVII foi algoz em Lisboa.]
Substantivo masculino.
1. Funcionário executor da pena de morte; verdugo, algoz.
2. Indivíduo cruel, desumano.

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*Carlos María Domínguez (1955) é argentino, embora resida em Montevidéu há quinze anos. Escritor, crítico literário e jornalista, está convencido de que os livros mudam as vidas das pessoas e o demonstra com esta novela, A casa de papel (prêmio Lolita Rubial), traduzida também para o inglês, italiano, francês, alemão, holandês. Domínguez ganhou vários outros prêmios literários, entre eles o Juan Carlos Onetti por Tres muescas en mi carabina, cancelado posteriormente por razões extra culturais. Entre outros livros, escreveu a biografia de Onetti e a de Jorge Rafael Videla, Historia de un dictador.
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Engraçado, lendo o início do artigo de Aluízio Falcão, do Estadão (10/03/2007): “Não será fácil localizar nas vitrines, mostruários e estantes das livrarias, em meio à profusão de capas grandes e vistosas, o pequeno livro de 98 páginas que venho recomendar, minutos depois de sua leitura, com a urgência e a convicção de quem cumpre um dever. (...)”, concluo que comigo aconteceu, então, exatamente o improvável: batendo os olhos numa bancada de lançamentos, foi exatamente aquele pequeno e precioso livro que se destacou, chamou-me a atenção. Fui, prontamente, pegá-lo e circulei toda a livraria com ele nas mãos, ansiosa para folheá-lo!
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Pra Pinta, patife, que está lançando um livro.
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Links:
http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=791
http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=4330
http://vejasaopaulo.abril.uol.com.br/revista/vejasp/edicoes/2009/m0129481.html


segunda-feira, julho 30, 2007

 

O CARTEIRO E O LEITOR


Início do capítulo 4:

Passando a infância no interior, nunca fui uma pessoa que recebesse cartas, pois minhas relações de amizade praticamente não existiam fora do pequeno grupo em que eu circulava. Apenas quando, terminado o Colégio Agrícola, comecei a comprar livros por reembolso postal estabeleci um vínculo com os serviços de correio. Recebia um aviso e na mesma hora corria para a pequena agência de postagem, na avenida Vila Rica, para pagar as despesas e retirar os volumes. Para quem não tinha nada de seu - dividíamos um pequeno quarto entre três irmãos, eu dormindo na parte de baixo do beliche -, voltar para casa com o embrulho me colocava na prestigiosa categoria dos proprietários. E esta foi uma das raras fontes de alegria numa fase muito conturbada de minha vida. (...)

[“Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, p. 27]

Pro Sean, pela semelhança, fiquei sabendo depois...

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Associei estas palavras a dois filmes que gosto muito:



Nunca te vi, sempre te amei [84 Charing Cross Road, com Anthony Hopkins & Anne Bancroft] e O carteiro e o poeta [Il Postino, com Massimo Troisi & Philippe Noiret]. Num texto sobre Neruda, tempos atrás, falo da trilha sonora deste 2° filme, de Luiz Enríquez Bacalov. Fica aqui mais uma versão:



sexta-feira, julho 27, 2007

 

PEREGRINAÇÃO PELAS LIVRARIAS



Trechos do 3° capítulo do livro:

(...) Depois de formado, consegui emprego temporário na propriedade de um amigo de meu padrasto. (...) Ao receber o salário, fui a Campo Mourão e entrei, pela primeira vez, em uma livraria de verdade, recentemente aberta na avenida Capitão Índio Bandeira. Ficava em uma galeria, era pequena e tinha uma moça gorda e extremamente bonita atrás do balcão. Eu me senti constrangido quando ela perguntou o que eu queria.

_ Livros - eu disse.

Ela riu, perguntando que tipo de livro. Eu não sabia. Minha informação sobre os autores vivos era muito pequena. Na biblioteca de Peabiru, eu só encontrava obras editadas até os anos 60 - isso devia ter alguma coisa a ver com a ditadura. Ela me mostrou vários autores e me deixou sozinho para atender outro cliente. Comprei então três livros, entre eles um de Femando Gabeira (eram os anos de abertura política), mas o que mais me fascinou foi um grande e exuberante volume de A origem das espécies, de Darwin, que estava na vitrine, com um preço na plaqueta, proibitivo para mim. Nunca li este livro. Continua sendo uma das obras que desejo possuir.

Naquela pequena livraria que tinha o modesto nome de Ponto Cultural Cora Coralina, comecei uma nova fase de minha carreira de comprador de livros. A segunda livraria que passei a freqüentar, já estudante de letras, foi a Arles, em Londrina. Era ainda um consumidor acanhado, mas já sabia o que pedir no balcão, tinha apenas que administrar a pequena mesada que recebia de minha mãe, um dinheiro vindo de sua atividade de costureira. Agora, os livros de literatura eram material didático.

Foi em Curitiba, no entanto, que transformei as livrarias em lugar de passeio; mais do que isso, de peregrinação. Em época de grande inflação, recém-casado, as dificuldades normais de sobrevivência, desenvolvi uma técnica não muito honesta de poupar dinheiro. Quando desejava um livro, eu o escondia atrás dos outros. Cada volume vinha com etiqueta de preço e, assim, um ou dois meses depois, desvalorização de 40% ao mês, a obra me saía por valor ínfimo. Nem sempre a ansiedade me permitia tal subterfúgio e eu acabava chegando em casa com um livro e não com o que minha mulher tinha encomendado.

Cansado de tanta instabilidade econômica, resolvemos que eu me dedicaria à publicidade. Uma amiga arranjou uma entrevista com uma equipe de marketing e recebi algumas tarefas de redação. Fiquei uma semana trabalhando em slogans, datilografei tudo em minha Lettera 35, coloquei em um envelope de papel pardo e fui ao encontro dos publicitários. Meu sapato estava todo arrebentado e com furos na sola. A roupa, apesar de velha, guardava alguma dignidade. Com parte do dinheiro destinado a despesas domésticas, eu compraria sapatos novos e os calçaria antes do encontro. Passei pelas lojas da rua XV; vi sapatos de vários preços e, sem experimentar nenhum, desisti da compra. Entrei numa livraria e gastei o dinheiro com a tradução de Os cantos, de Ezra Pound.

Foi uma defesa.

Eu queria ler e não uma carreira de publicitário. Saí da livraria, rasguei o envelope e joguei os pedacinhos numa lixeira - nunca mais pensei em trabalhar com propaganda. Ainda está viva em minha memória a alegria solitária da leitura de Pound em nosso pequeno apartamento de bairro. Chovia e eu só dava aula à noite. Minha mulher lecionava de dia. Sentado nos almofadões da sala, li em voz alta a épica moderna de Pound.

Livros finos eram lidos em pé na livraria, economizando o dinheiro para aqueles que exigiam mais de mim.

Tornei-me crítico e minha atividade começa quase sempre nestas lojas. Percorro os lançamentos e escolho um, analiso primeiro os detalhes. Se o autor aparece muito formal na pose, recuso seu produto. Se há enxurradas de elogios, idem. Se a diagramação for excessiva, também aborto a compra. Quando um livro de prosa passa por esta inspeção, leio o primeiro parágrafo. Caso me convença, leio o último. E, por fim, procuro ao acaso alguns diálogos no meio do volume. Se não soarem falsos, eu o adquiro. Com poesia é mais fácil, o mau poema salta quando folheio o livro.

Não acredito nos suplementos literários nem em apadrinhamentos. O livro bom deve ser capaz de me atrair em meio aos milhares de volumes que me solicitam nas prateleiras. Trata-se, portanto, de uma tarefa que exige dedicação. É que a atividade crítica, tal como a pratico, começa antes do ato da leitura. Começa na hora da compra, quando um livro me convence a levá-Io.

[“Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 21-26]


Pra Meg, também crítica literária.

Curiosidade:
Livraria Shakespeare
http://www.geneton.com.br/archives/000189.html


 

HERDANDO UMA BIBLIOTECA (II)



Trechos do 2° capítulo do livro:

Sempre me pensei como um leitor de biblioteca pública, por mais que quase já não tome livros emprestados desta instituição que foi o primeiro espaço livre que freqüentei. Em casa, havia a pressão moralista da ética do trabalho de meu padrasto - a leitura fora das atividades escolares seria uma forma disfarçada de vadiagem, combatida com a fúria de quem ganhava com muito esforço o dinheiro para nossa sobrevivência.

Na escola, ficávamos restritos a conteúdos definidos por pessoas que nos queriam presos à nossa classe social. Os anos escolares, que para mim coincidiram com os da ditadura militar, foram um período marcado pelo desconhecimento - professores passivos, escorados em livros didáticos, um silêncio absoluto em torno dos problemas políticos e uma aceitação da realidade mesquinha. (...)

Nessa escola paralisante, que não queria que fôssemos além das informações medíocres que nos davam em preguiçosas doses homeopáticas, gastei minha infância. Não podia esperar nada dela, pois de mim ela esperava apenas o desempenho-padrão (...), para que logo eu pudesse assumir meu lugar na cadeia produtiva. Naquela época mais, mas ainda hoje, a escola pública - que agora não cobra minimamente os conteúdos - tinha antes uma função conformadora do que formadora. (...) Tal postura, muito comum nos anos 70, por causa da política desenvolvimentista, sofreu uma crítica na década seguinte, mas voltou com toda a força em uma escola que prepara trabalhadores para o mercado internacionalizado.

O que os educadores não sabem é que muitos dos alunos continuam querendo uma ultrapassagem cultural de seu mundo e não apenas uma pequena melhoria econômica. Fui um desses pardais que sonhavam com alturas e não com as migalhas caídas no chão. E o lugar onde pude exercer este projeto foi a biblioteca pública.

Nela, não havia conteúdos predefinidos, nem o desejo de me moldar.

A partir da sétima série, passei a freqüentar a sala de leitura da escola. Uma bibliotecária, que fazia tricô para complementar seu salário, insistia para que eu retirasse os livros, bastava fazer a carteirinha. Eu preferia, no entanto, permanecer na biblioteca, cujo ambiente me transmitia um bem-estar muito grande. Em casa, outras eram as prioridades. Ali, eu estava em contato com grandes homens, fazia-me contemporâneo deles, vivendo uma outra vida, distante daquela que a família e a escola insistentemente me impunham.

Podia eleger o tipo de leitura, e fiz isso sem nenhum método, porque a biblioteca me permitia ser sujeito de minhas escolhas, mesmo que elas recaíssem sobre livros e autores errados. Nunca me senti tão independente como dentro de uma biblioteca pública, percorrendo ao acaso prateleiras e descobrindo livros sobre os quais não tinha nenhuma informação. Se o saber escolar chegava formatado (refletindo preconceitos didáticos), a biblioteca era o espaço livre e não-solicitante. Muitas vezes, eu apenas caminhava entre os livros, vendo capas e deixando passar o tempo.

Poucas pessoas procuravam, sem a necessidade de fazer trabalhos escolares, o pequeno gabinete de leitura de Peabiru. Eu meio que me sentia dono de tudo. Mas só podia realmente possuir tais livros infringindo a lei. Depois de ler um romance de Lima Barreto, veio­me a vontade de ter o autor comigo. E mutilei um exemplar, arrancando a folha com a foto do romancista. Minha namorada colecionava pôsteres de atores de novela, e eu também queria ter meus ídolos.

Conquistando a confiança da bibliotecária, consegui roubar alguns livros, entre eles os ensaios de Alceu Amoroso Lima. Olhei a ficha de empréstimo: nunca ninguém o havia retirado. Ele estava ali esperando por mim. O amor aos livros e um sentimento de exclusão me levaram a esse crime, que depois defini como saudável ato de revolta contra a sociedade em que vivia.
Mas eu não estava sozinho nesses delitos do amor.

Na época em que me interessei pelo haikai (foram dez anos de leitura, estudo e prática), tentei adquirir a coletânea The history of haiku, de R. H. Blyth, editada em Tóquio. Escrevi cartas, falei com livreiros e com o consulado japonês, mas não consegui os livros - tive que ler os exemplares da biblioteca da Universidade Federal do Paraná. Perguntei um dia a uma pessoa ligada a Paulo Leminski como ele tinha conseguido comprar a obra de Blyth.

_ Quem disse que foi comprada? Roubamos de uma biblioteca.

Graças a este roubo, a cultura brasileira ganhou uma grande contribuição de Leminski, que não só divulgou o haikai em textos críticos como foi um de seus mais representativos praticantes no Ocidente. Se The history of haiku não estivesse sempre presente em sua biblioteca particular, com certeza este gênero seria mais pobre em nossa cultura.

Hoje não preciso mais roubar aqueles que eram distantes objetos de desejo, gasto boa parte de meu salário em livrarias e sebos e geralmente tenho o que quero, mas quando visito amigos colecionadores sinto vontade de enfiar alguns volumes dentro da calça e sair sorrateiramente. Afanaria, por exemplo, a primeira edição autografada de Eu, de Augusto dos Anjos, que vi no apartamento de Alexei Bueno, e todas as primeiras edições de Cruz e Sousa, cuidadosamente encadernadas, que manuseei na casa de Iaponan Soares, em Florianópolis. E também os originais de Cecília Meireles que se encontram com seu neto, Alexandre Carlos Teixeira, guardião da egoteca da avó, de retratos feitos por grandes pintores e de sua minúscula e tentadora máquina de escrever.

Roubar livros que nos solicitam amorosamente é uma forma de herdar à força uma biblioteca que nos foi negada.

[“Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 15-20]


 

HERDANDO UMA BIBLIOTECA (I)



"Não venho de uma biblioteca paterna, e sim de sua ausência. Tive que buscar a figura do pai em amigos e autores e fiz das afinidades culturais o caminho para esta família, dispersa no tempo e no espaço, que a literatura me deu.
Murilo Mendes tratava os grandes artistas do passado como aeroamigos. Para mim, eles foram os aeroancestrais, de quem, num ato de fraude amorosa, me fiz descender."

[extraído da contracapa de “Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004]

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Transcrevo o 1° capítulo do livro:

HERDANDO UMA BIBLIOTECA I

Os primeiros livros que tive nas mãos foram os escolares, o que não chega a ser grande novidade para quem passou a infância no interior do Paraná, região onde importava menos participar da cultura universal do que desbravar uma terra que não dava descanso aos homens. Livro não era artigo muito comum na Peabiru dos anos 70 e muito menos em minha família, com forte tendência para a vida prática. Analfabeto, meu pai não poderia ter me legado nenhum livro, e morreu antes de eu entrar na escola. Meu padrasto, comerciante pobre e extremamente apegado ao dinheiro, com o primário incompleto, tinha uma relação meramente monetária com o papel.

Para ele, não podíamos fazer mais do que as tarefas escolares em nossos cadernos, cujas folhas numeradas sofriam periódicas inspeções. Os livros didáticos também passavam por seu controle, e ele não admitia rasuras. Talvez por minha incorrigível vocação para o confronto, resolvi enfrentar as iras do censor e fiz um desenho obsceno no livro de Ciências, motivado provavelmente pelas imagens nada atraentes, mas reveladoras, do aparelho reprodutor feminino. Fui descoberto e tive que apagar aqueles traços à tinta, molhando o lado duro da borracha e apertando-a contra a folha.

Livros, para nós, eram instrumentos sagrados de aprendizagem, território em que o prazer não podia se manifestar, nem nas linhas ingênuas de um menino querendo soletrar as belezas do sexo oposto.

E eles não nos pertenciam.

No final do ano, quando os professores irresponsavelmente nos aprovavam, iam para as mãos de outros alunos, parentes e amigos, que estavam na série abaixo da nossa. Sentados numa velha escrivaninha, que ficava na sala, ou na mesa da cozinha, apagávamos todas as lições, agora com a parte clara e macia da borracha, deixando o livro pronto para quem na seqüência fosse usá­lo. Não gostava desse serviço, mas era bom receber Iivros que tinham sobrevivido a dois ou três anos escolares. Por mais bem apagados que estivessem, ficava sempre fácil decodificar a senda das letras no papel. No começo do ano, tínhamos que apresentar para a professora estes didáticos de segunda mão, que possibilitavam outra esperteza. Alguns vinham ainda preenchidos e então apagávamos apenas as primeiras lições, mostrando-as para a professora, que percorria as carteiras, olhar de coruja cansada, sem força e disposição para dobrar a coluna e perder tempo folheando o volume inteiro.

Fim de ano, para mim, era jogar fora meu esforço de aprendizagem, como se tudo não tivesse valor, como se fosse algo descartável. Talvez por isso eu tenha adquirido um preconceito e um hábito: ser contra o saber provisório da escola e banir de minha agenda, anualmente, os nomes das pessoas com quem não me relaciono mais, preparando-me para o novo adventício.

Na hora de fazer desaparecer o trabalho de todo um ano, eu, sempre irritadiço, reclamava. Meu padrasto, num exercício de memória, que era para me tornar humilde, lembrava ter passado os anos de primário com os dois únicos cadernos que comprou, com seu dinheiro de engraxate, ao entrar na escola. Não usava caneta e, quando não havia mais páginas em branco, apagava tudo.

Talvez tenha abandonado a escola pelo fato de os cadernos começarem a se desmanchar.

Ele me contava isso, mas eu não tinha nenhuma crise de humildade. Apenas preguiça de fazer a limpeza dos livros.

Com essa prática, ditada por uma visão utilitarista do material escolar, passei a infância em uma casa sem livros, sempre com a sensação de que eles não me pertenciam. O livro não era espaço em que podia ficar impressa minha marca de possuidor. E a escola acabou figurando, para mim, como lugar vazio e desimportante. Tudo que ela nos transmitia virava pozinho de borracha, sujo de grafite, no fim do ano.

Embora católicos, não tínhamos sequer uma bíblia, porque a religião, em casa, era exercida mais pelo terço. Certo vizinho, dono de uma sorveteria, percebeu esta pobreza de palavras e nos deu uma bíblia de capa preta, que passei a usar como oráculo.

Nos momentos de depressão (descendo de uma linhagem de angustiados), eu lia os textos sagrados em busca de respostas para meus dramas. Fora da escola, era a única tarefa de leitura que exerci até os 12 ou 13 anos de idade, excetuando alguns minutos gastos com as matérias amareladas dos jornais destinados a embrulhar mercadoria no armazém do padrasto.
A partir de meu contato com a biblioteca pública da cidade, formei-me leitor e, quando saí de casa, levei orgulhosamente algumas dezenas de livros comprados meio escondidos.

Já com uma biblioteca razoável, em 1999, eu estava procurando uma edição da bíblia traduzida por João Ferreira de AImeida, por recomendação de Dalton Trevisan, que diz ser este um dos melhores estilos da língua. Como as edições correntes tinham sido adaptadas, abrandando a linguagem densa do tradutor, eu queria urna antiga. Pedi então para minha mãe ver com suas amigas protestantes se havia algum exemplar disponível. Ela tinha um em casa e me mandou.

Era a bíblia de minha infância, algumas de suas folhas sujas de terra vermelha. Minha vida só podia mesmo tomar vias transversas. Fui um católico que rezou sempre por uma tradução protestante.

Anos atrás, num momento difícil em que passei por complicações de saúde, me agarrei a esta bíblia (não tinha outra), e voltei a usá-Ia como uma sorte de I-Ching. Na espera de morosos diagnósticos, abri em pânico o volume para ver o que ele tinha a me dizer. Caiu no Salmo 91, que li, assustado:

Aquele que habita o esconderijo do Altíssimo, à sombra do onipotente descansará [...].
Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa [...].
Não temerá espanto noturno, nem seta que voe de dia.
Nem peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia.

Estas palavras me reconfortaram - eu me reencontrava com a religião da infância. Dias depois, em outra crise, usei o mesmo método. E caiu novamente no Salmo 91. Fechei e abri mais uma vez. Na mesma página.

Não era mensagem divina, mas algo mais bonito. Eu estava revivendo os desesperos de minha mãe. Ela, que até hoje não dorme direito, passava horas rezando este salmo e por isso a encadernação estava viciada. Ia dar sempre aquele número.

Mais do que um estilo ou uma crença, este exemplar da Bíblia Sagrada, traduzida em português por João Ferreira de Almeida, me ligava de forma definitiva à incerta tradição de leitura iniciada por minha mãe.

O volume simples e estropiado é a biblioteca familiar que herdei. Sei que não é muita coisa, mas quero continuar a corrente, legando-o para minha filha.

[“Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 9-14]


Pra Lulu, suas aulas & alunos maravilhosos.


senda
[Do lat. semita, 'atalho']
Substantivo feminino
1. Caminho estreito; vereda:
"Aprazível cousa era o ver, descendo dos outeiros para o vale por sendas torcidas, aquelas multidões" (Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, I, p. 231).
2. Fig. Praxe, usança, hábito, rotina.

adventício [Do lat. adventiciu.]
Adjetivo.
1. Chegado de fora; estrangeiro, forasteiro, ádvena.
2. Casual, fortuito, inesperado.
3. Biol. Que está fora do lugar próprio, ou fora de época.
4. Fitogeogr. Diz-se de espécie que se encontra vegetando noutro lugar que não o seu de origem.
5. Bot. Diz-se de qualquer órgão que nasce fora do lugar habitual: raiz adventícia. ~ Ver célula —a, cratera —a, idéia —a, raiz —a e túnica —a.
Substantivo masculino.
6. Aquele que chega de fora, que é estranho ou intruso; estrangeiro, forasteiro, ádvena.


segunda-feira, julho 23, 2007

 

TEORIA DA AMIZADE


"Recebo um livro ruim de um amigo bom. Leio trechos e logo estou desanimado. Não posso elogiar o livro e não quero perder o amigo. Rapidamente, escrevo um bilhete, Obrigado pelo teu livro, que começarei a ler ainda hoje.
É claro que começo a ler.
E não termino.
Os amigos da gente não deveriam escrever livros. Seria mais fácil para o crítico não ter amigos escritores. Os livros deveriam ser escritos apenas por nossos inimigos. (...)"


[extraído do livro “Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, p. 69]


 

VIRGINDADES




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Adquiri, tempos atrás, uma edição portuguesa de A queda, de Albert Camus. Lembro que ao tentar folheá-lo, já em casa, percebi que suas páginas estavam lacradas. Usei um estilete ou tesoura pra separá-las, com cuidado, pois não desejava danificá-las. Pensei ser um erro de encadernação, quando me dei conta que, antigamente, os livros eram assim...

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VIRGINDADES


Ganhei uma espátula da Universidade de Salamanca, trazida por um amigo, também amante de livros. Não a uso para abrir cartas, sou afoito demais quando o assunto é correspondência, rasgo o envelope, insensível aos bons modos. A espátula de inox dorme em minha escrivaninha, sem muita utilidade, mas pronta para o serviço raro a que foi destinada: desvirginar velhos livros que me chegam lacrados. Quando a biblioteca de Temístocles Linhares foi vendida a um sebo, quase todos os seus livros estavam devidamente lidos. Encontrei sem abrir apenas exemplares de suas próprias obras. Os que trouxe para casa foram logo passados pela lâmina cega de minha espátula. Se não estou com ela, uso uma régua que, embora menos nobre, também se presta a esse tipo de tarefa galante.

Quando os livros ainda vinham lacrados, ficava explícita uma face do leitor. Observando sua biblioteca, víamos sua preferência. Tinha lido este livro até a página tal, nem sequer abrira aquele outro – dava para levantar dados de uma história da leitura de cada proprietário a partir do lacre dos volumes.

Gostaria que os livros voltassem a sair fechados, isso ajudaria a detectar o nível de leitura das bibliotecas particulares. Mas sei que é impossível. Como o mercado espera que o leitor compre uma grande quantidade de obras, tudo que possa despertar nele uma consciência de que esta aquisição desbragada é inócua será evitado. Saudoso de um tempo do qual não participei, ando pelos sebos à procura daqueles volumes intocados, mesmo que não tenham muito interesse, pois os quero como objetos de recuperação memorialística de uma outra idade editorial. Diante de um livro fechado, aflora urgente minha missão de leitor.

Publicando seu primeiro livro em 1946, pela José Olympio, então nossa mais prestigiosa casa editorial, Wilson Martins esteve no Rio para o lançamento. Graciliano Ramos tinha lugar cativo na livraria e Wilson foi levado a dedicar um exemplar de seus ensaios ao grande romancista, que, assim que o recebeu, tirou um pente do bolso e pôs-se a abrir suas páginas, sem nem ler a dedicatória. Talvez diante dos olhos entusiasmados do jovem crítico, Graciliano se viu obrigado a explicar sua atitude.

_ Um dia desses um amigo foi em casa e viu em minha estante seu livro ainda fechado. Agora, sempre que recebo algum exemplar, abro na hora. Para evitar confusões.

Cuidado que outros intelectuais nem sempre tinham. Bisbilhotando a biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, hoje pertencente à Unicamp, encontrei um velho volume de Mário Quintana que nunca tinha sido manuseado pelo crítico. Pensei na hora em abri-lo, mas aquele era um dado importante sobre preferências de leitura, refletindo certo descaso pelo grande poeta gaúcho, embora Sérgio Buarque tenha escrito dois parágrafos sobre O aprendiz de feiticeiro em um artigo de 1951 (O espírito e a letra, p. 347). Se nenhum leitor mais ousado avançou sobre o voluminho de poemas, Quintana permanece intocado numa prestigiosa biblioteca moderna. E este fato dá indícios de como era a recepção de sua poesia no centro do campo literário.

Morando em quartos de hotel, sempre com uma vida financeira complicada, Mário Quintana não chegou a formar biblioteca pessoal, embora em várias fotos apareçam muitos livros empilhados em cantos de seu modesto aposento. Mas era um leitor criterioso, que abominava, entre outras coisas, livros lacrados. E escreveu sobre isso em "alma errada" (Baú de espantos, p. 71):

Há coisas que minha alma, já tão mortificada, não admite:

assistir novelas de TV
ouvir música Pop
um filme apenas de corrida de automóvel
uma corrida de automóvel no filme
um livro de páginas ligadas
porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo:
espátulas não há... e quem é que hoje faz questão de virgindades...

Se me deprime ver um livro ruim lacrado, pois penso em todas as ilusões do autor, em todo o seu desejo de comunicação, sofro muito mais ao saber que um poeta essencial ficou tanto tempo fechado, esperando um leitor imprevidente.

Enquanto não passar pelos olhos do leitor, que o incorporará, na maioria das vezes inconscientemente, ao seu universo de referências, o livro não chega a ser propriamente livro. É apenas papel impresso. Um objeto que só ocupa espaço no mundo físico, uma ferramenta desprovida de sua principal função, a de interferir na constituição do humano.

Uma de minhas professoras de catequese, em nossa primeira aula, nos contou a história de sua relação com a bíblia. Tem o tom das narrativas edificantes, mas talvez, ao tirá-la de seu contexto, eu consiga dar-lhe nova roupagem. Ela nos trouxe duas bíblias, uma velha, pequena, a encadernação esgarçada, marcas de dedos no papel, e uma de capa dura, letras douradas e marcador vermelho, de seda, colado na lombada. E nos perguntou qual bíblia era melhor. Nós, crianças pobres, desejosas de uma vida material mais requintada, escolhemos a grande. A professora disse-nos que também tinha sido esta a sua escolha. Comprara aquela porque se envergonhava da outra, que a acompanhava desde a adolescência. Mas, depois que comprou, não quis estragar a bíblia nova, destinada a decorar o balcão da sala de jantar. Ela continuou fazendo suas leituras religiosas na antiga. E então nos perguntou, de que vale uma bíblia que não foi lida?

Olho os livros velhos em minha estante, encadernações estragadas (os que eram apenas colados soltaram suas folhas) e penso que eles podem ser chamados de livros, pois seguem em mim.

[extraído do livro "Herdando uma biblioteca", Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 77-81]
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MIGUEL SANCHES NETO
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É autor do romance Chove sobre minha infância, Um Amor Anarquista e do livro de contos Hóspede secreto (Prêmio Cruz e Sousa 2002). Crítico literário da Gazeta do Povo e da revista Carta Capital, leciona literatura brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR.


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