sexta-feira, julho 27, 2007

 

HERDANDO UMA BIBLIOTECA (I)



"Não venho de uma biblioteca paterna, e sim de sua ausência. Tive que buscar a figura do pai em amigos e autores e fiz das afinidades culturais o caminho para esta família, dispersa no tempo e no espaço, que a literatura me deu.
Murilo Mendes tratava os grandes artistas do passado como aeroamigos. Para mim, eles foram os aeroancestrais, de quem, num ato de fraude amorosa, me fiz descender."

[extraído da contracapa de “Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004]

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Transcrevo o 1° capítulo do livro:

HERDANDO UMA BIBLIOTECA I

Os primeiros livros que tive nas mãos foram os escolares, o que não chega a ser grande novidade para quem passou a infância no interior do Paraná, região onde importava menos participar da cultura universal do que desbravar uma terra que não dava descanso aos homens. Livro não era artigo muito comum na Peabiru dos anos 70 e muito menos em minha família, com forte tendência para a vida prática. Analfabeto, meu pai não poderia ter me legado nenhum livro, e morreu antes de eu entrar na escola. Meu padrasto, comerciante pobre e extremamente apegado ao dinheiro, com o primário incompleto, tinha uma relação meramente monetária com o papel.

Para ele, não podíamos fazer mais do que as tarefas escolares em nossos cadernos, cujas folhas numeradas sofriam periódicas inspeções. Os livros didáticos também passavam por seu controle, e ele não admitia rasuras. Talvez por minha incorrigível vocação para o confronto, resolvi enfrentar as iras do censor e fiz um desenho obsceno no livro de Ciências, motivado provavelmente pelas imagens nada atraentes, mas reveladoras, do aparelho reprodutor feminino. Fui descoberto e tive que apagar aqueles traços à tinta, molhando o lado duro da borracha e apertando-a contra a folha.

Livros, para nós, eram instrumentos sagrados de aprendizagem, território em que o prazer não podia se manifestar, nem nas linhas ingênuas de um menino querendo soletrar as belezas do sexo oposto.

E eles não nos pertenciam.

No final do ano, quando os professores irresponsavelmente nos aprovavam, iam para as mãos de outros alunos, parentes e amigos, que estavam na série abaixo da nossa. Sentados numa velha escrivaninha, que ficava na sala, ou na mesa da cozinha, apagávamos todas as lições, agora com a parte clara e macia da borracha, deixando o livro pronto para quem na seqüência fosse usá­lo. Não gostava desse serviço, mas era bom receber Iivros que tinham sobrevivido a dois ou três anos escolares. Por mais bem apagados que estivessem, ficava sempre fácil decodificar a senda das letras no papel. No começo do ano, tínhamos que apresentar para a professora estes didáticos de segunda mão, que possibilitavam outra esperteza. Alguns vinham ainda preenchidos e então apagávamos apenas as primeiras lições, mostrando-as para a professora, que percorria as carteiras, olhar de coruja cansada, sem força e disposição para dobrar a coluna e perder tempo folheando o volume inteiro.

Fim de ano, para mim, era jogar fora meu esforço de aprendizagem, como se tudo não tivesse valor, como se fosse algo descartável. Talvez por isso eu tenha adquirido um preconceito e um hábito: ser contra o saber provisório da escola e banir de minha agenda, anualmente, os nomes das pessoas com quem não me relaciono mais, preparando-me para o novo adventício.

Na hora de fazer desaparecer o trabalho de todo um ano, eu, sempre irritadiço, reclamava. Meu padrasto, num exercício de memória, que era para me tornar humilde, lembrava ter passado os anos de primário com os dois únicos cadernos que comprou, com seu dinheiro de engraxate, ao entrar na escola. Não usava caneta e, quando não havia mais páginas em branco, apagava tudo.

Talvez tenha abandonado a escola pelo fato de os cadernos começarem a se desmanchar.

Ele me contava isso, mas eu não tinha nenhuma crise de humildade. Apenas preguiça de fazer a limpeza dos livros.

Com essa prática, ditada por uma visão utilitarista do material escolar, passei a infância em uma casa sem livros, sempre com a sensação de que eles não me pertenciam. O livro não era espaço em que podia ficar impressa minha marca de possuidor. E a escola acabou figurando, para mim, como lugar vazio e desimportante. Tudo que ela nos transmitia virava pozinho de borracha, sujo de grafite, no fim do ano.

Embora católicos, não tínhamos sequer uma bíblia, porque a religião, em casa, era exercida mais pelo terço. Certo vizinho, dono de uma sorveteria, percebeu esta pobreza de palavras e nos deu uma bíblia de capa preta, que passei a usar como oráculo.

Nos momentos de depressão (descendo de uma linhagem de angustiados), eu lia os textos sagrados em busca de respostas para meus dramas. Fora da escola, era a única tarefa de leitura que exerci até os 12 ou 13 anos de idade, excetuando alguns minutos gastos com as matérias amareladas dos jornais destinados a embrulhar mercadoria no armazém do padrasto.
A partir de meu contato com a biblioteca pública da cidade, formei-me leitor e, quando saí de casa, levei orgulhosamente algumas dezenas de livros comprados meio escondidos.

Já com uma biblioteca razoável, em 1999, eu estava procurando uma edição da bíblia traduzida por João Ferreira de AImeida, por recomendação de Dalton Trevisan, que diz ser este um dos melhores estilos da língua. Como as edições correntes tinham sido adaptadas, abrandando a linguagem densa do tradutor, eu queria urna antiga. Pedi então para minha mãe ver com suas amigas protestantes se havia algum exemplar disponível. Ela tinha um em casa e me mandou.

Era a bíblia de minha infância, algumas de suas folhas sujas de terra vermelha. Minha vida só podia mesmo tomar vias transversas. Fui um católico que rezou sempre por uma tradução protestante.

Anos atrás, num momento difícil em que passei por complicações de saúde, me agarrei a esta bíblia (não tinha outra), e voltei a usá-Ia como uma sorte de I-Ching. Na espera de morosos diagnósticos, abri em pânico o volume para ver o que ele tinha a me dizer. Caiu no Salmo 91, que li, assustado:

Aquele que habita o esconderijo do Altíssimo, à sombra do onipotente descansará [...].
Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa [...].
Não temerá espanto noturno, nem seta que voe de dia.
Nem peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia.

Estas palavras me reconfortaram - eu me reencontrava com a religião da infância. Dias depois, em outra crise, usei o mesmo método. E caiu novamente no Salmo 91. Fechei e abri mais uma vez. Na mesma página.

Não era mensagem divina, mas algo mais bonito. Eu estava revivendo os desesperos de minha mãe. Ela, que até hoje não dorme direito, passava horas rezando este salmo e por isso a encadernação estava viciada. Ia dar sempre aquele número.

Mais do que um estilo ou uma crença, este exemplar da Bíblia Sagrada, traduzida em português por João Ferreira de Almeida, me ligava de forma definitiva à incerta tradição de leitura iniciada por minha mãe.

O volume simples e estropiado é a biblioteca familiar que herdei. Sei que não é muita coisa, mas quero continuar a corrente, legando-o para minha filha.

[“Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 9-14]


Pra Lulu, suas aulas & alunos maravilhosos.


senda
[Do lat. semita, 'atalho']
Substantivo feminino
1. Caminho estreito; vereda:
"Aprazível cousa era o ver, descendo dos outeiros para o vale por sendas torcidas, aquelas multidões" (Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, I, p. 231).
2. Fig. Praxe, usança, hábito, rotina.

adventício [Do lat. adventiciu.]
Adjetivo.
1. Chegado de fora; estrangeiro, forasteiro, ádvena.
2. Casual, fortuito, inesperado.
3. Biol. Que está fora do lugar próprio, ou fora de época.
4. Fitogeogr. Diz-se de espécie que se encontra vegetando noutro lugar que não o seu de origem.
5. Bot. Diz-se de qualquer órgão que nasce fora do lugar habitual: raiz adventícia. ~ Ver célula —a, cratera —a, idéia —a, raiz —a e túnica —a.
Substantivo masculino.
6. Aquele que chega de fora, que é estranho ou intruso; estrangeiro, forasteiro, ádvena.


Comments:
Bela narrativa.
O título por si só chama atenção.

Mas acredito que serve para isso mesmo, pois não parece que ele herda de fato uma biblioteca (no sentido de lhe ser entregue ou imposto algo, por herança), até pq ele mesmo, ao que parece, buscou todo esse acervo, que hoje lhe permite ter uma relação íntima e fundamental com a letra, com o livro!
Espero poder ler esse título, parece leve e de fácil envolvimento - afinal todo amante da boa leitura gostaria de poder ter todas as melhores obras do mundo em uma biblioteca só sua....

Bjão Clélia,
eLi
:-]
 
Pois é, Eli. Deliciosas estas passagens de Miguel Sanches, em seu livro, não?

Veja, por exemplo, uma das maneiras que ele começou seu acervo, no capítulo seguinte, que transcreverei, parcialmente, num próximo post...

bjão,
Clé
 
puxa Clelia,

obrigada...
ando de um jeito que um gesto assim faz uma diferença...

muito obrigada,

um beijão

lu.
 
Que bom que gostou, Lu! Melhor, ainda, que fez diferença...
bjão,
Clé
 
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