sexta-feira, julho 27, 2007

 

PEREGRINAÇÃO PELAS LIVRARIAS



Trechos do 3° capítulo do livro:

(...) Depois de formado, consegui emprego temporário na propriedade de um amigo de meu padrasto. (...) Ao receber o salário, fui a Campo Mourão e entrei, pela primeira vez, em uma livraria de verdade, recentemente aberta na avenida Capitão Índio Bandeira. Ficava em uma galeria, era pequena e tinha uma moça gorda e extremamente bonita atrás do balcão. Eu me senti constrangido quando ela perguntou o que eu queria.

_ Livros - eu disse.

Ela riu, perguntando que tipo de livro. Eu não sabia. Minha informação sobre os autores vivos era muito pequena. Na biblioteca de Peabiru, eu só encontrava obras editadas até os anos 60 - isso devia ter alguma coisa a ver com a ditadura. Ela me mostrou vários autores e me deixou sozinho para atender outro cliente. Comprei então três livros, entre eles um de Femando Gabeira (eram os anos de abertura política), mas o que mais me fascinou foi um grande e exuberante volume de A origem das espécies, de Darwin, que estava na vitrine, com um preço na plaqueta, proibitivo para mim. Nunca li este livro. Continua sendo uma das obras que desejo possuir.

Naquela pequena livraria que tinha o modesto nome de Ponto Cultural Cora Coralina, comecei uma nova fase de minha carreira de comprador de livros. A segunda livraria que passei a freqüentar, já estudante de letras, foi a Arles, em Londrina. Era ainda um consumidor acanhado, mas já sabia o que pedir no balcão, tinha apenas que administrar a pequena mesada que recebia de minha mãe, um dinheiro vindo de sua atividade de costureira. Agora, os livros de literatura eram material didático.

Foi em Curitiba, no entanto, que transformei as livrarias em lugar de passeio; mais do que isso, de peregrinação. Em época de grande inflação, recém-casado, as dificuldades normais de sobrevivência, desenvolvi uma técnica não muito honesta de poupar dinheiro. Quando desejava um livro, eu o escondia atrás dos outros. Cada volume vinha com etiqueta de preço e, assim, um ou dois meses depois, desvalorização de 40% ao mês, a obra me saía por valor ínfimo. Nem sempre a ansiedade me permitia tal subterfúgio e eu acabava chegando em casa com um livro e não com o que minha mulher tinha encomendado.

Cansado de tanta instabilidade econômica, resolvemos que eu me dedicaria à publicidade. Uma amiga arranjou uma entrevista com uma equipe de marketing e recebi algumas tarefas de redação. Fiquei uma semana trabalhando em slogans, datilografei tudo em minha Lettera 35, coloquei em um envelope de papel pardo e fui ao encontro dos publicitários. Meu sapato estava todo arrebentado e com furos na sola. A roupa, apesar de velha, guardava alguma dignidade. Com parte do dinheiro destinado a despesas domésticas, eu compraria sapatos novos e os calçaria antes do encontro. Passei pelas lojas da rua XV; vi sapatos de vários preços e, sem experimentar nenhum, desisti da compra. Entrei numa livraria e gastei o dinheiro com a tradução de Os cantos, de Ezra Pound.

Foi uma defesa.

Eu queria ler e não uma carreira de publicitário. Saí da livraria, rasguei o envelope e joguei os pedacinhos numa lixeira - nunca mais pensei em trabalhar com propaganda. Ainda está viva em minha memória a alegria solitária da leitura de Pound em nosso pequeno apartamento de bairro. Chovia e eu só dava aula à noite. Minha mulher lecionava de dia. Sentado nos almofadões da sala, li em voz alta a épica moderna de Pound.

Livros finos eram lidos em pé na livraria, economizando o dinheiro para aqueles que exigiam mais de mim.

Tornei-me crítico e minha atividade começa quase sempre nestas lojas. Percorro os lançamentos e escolho um, analiso primeiro os detalhes. Se o autor aparece muito formal na pose, recuso seu produto. Se há enxurradas de elogios, idem. Se a diagramação for excessiva, também aborto a compra. Quando um livro de prosa passa por esta inspeção, leio o primeiro parágrafo. Caso me convença, leio o último. E, por fim, procuro ao acaso alguns diálogos no meio do volume. Se não soarem falsos, eu o adquiro. Com poesia é mais fácil, o mau poema salta quando folheio o livro.

Não acredito nos suplementos literários nem em apadrinhamentos. O livro bom deve ser capaz de me atrair em meio aos milhares de volumes que me solicitam nas prateleiras. Trata-se, portanto, de uma tarefa que exige dedicação. É que a atividade crítica, tal como a pratico, começa antes do ato da leitura. Começa na hora da compra, quando um livro me convence a levá-Io.

[“Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 21-26]


Pra Meg, também crítica literária.

Curiosidade:
Livraria Shakespeare
http://www.geneton.com.br/archives/000189.html


Comments:
Parece um livro legal,gosto de livros em primeira pessoa.Agora eu to lendo "rota 66"(em primeira pessoa também)era da minha mae,deve te a minha idade...
 
É, mesmo, legal, Daniel! Também gosto de livros na 1ª pessoa. Temos este, do Caco Barcellos, mas eu não li. Só o Arnaldo.

Fui ao seu novo blog e deixei tb um recadinho!

'brigadão pela visita! Volte sempre!

bjão,
Clé

Peguei alguns links, sobre o Caco Barcellos e seus livros, pra você dar uma olhada (é legal saber um pouco do autor e do seu processo de criação...):

http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/cultura/dquint/cultura2.htm

http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/60edicao/reportagens7.htm

http://carosamigos.terra.com.br/outras_edicoes/grandes_entrev/caco_barcellos.asp

http://www.resenhando.com/resenhas/r12405.htm

http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=040CB0D3-CEE3-41F2-9818-2C00A2B3A661&nwsCode=1C4A1F2D-1B68-465C-B15A-B0D7617DEEE3

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/al170620031.htm

http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT542783-1655-1,00.html

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG57692-5856,00.html

http://virtualbooks.terra.com.br/estante/Abusado.htm
 
Essas transcrições estão ficando empolgantes!
Um convite a conhecer a fundo a obra!

Bjins
:-]
 
Pois é, Eli, na verdade, eu é que me empolgo e fico com vontade de mostrar vários trechos qu'eu acho legais, pertinentes. Se pudesse, transcreveria o livro inteiro!

Gostoso saber que vocês estão acompanhando (e gostando também). Mostra que não são palavras ao vento... (cibernético?!)

Tive no seu espaço, agora há pouco, e deixei dois recadinhos: um pra você, outro pra Bá.

bjos,
Clé

Em tempo: Ah, indiquei pra Bá e queria dar a dica pra você tb. Veja, neste blog, o lançamento de um livro sobre jornalismo. A autora, como vocês dizem, é 10!
 
Oi, Clélia!

Ainda estou em Floripa e com problemas no cp, espero, quando chegar em casa, poder ler tudo o que escreveste, aqui é só correria.
Bom domingo!
Bjs.
 
Oi, Rosa

Muito frio por aí, tb? Aqui, na região de Campinas, está brabo! Além disso, venta muito em Valinhos. O meu mensageiro do vento, na varanda, não pára de tocar! (eu gosto, já a vizinhança, não sei...)

bjs,
Clé
 
Oooh! maaai gooood!!!!!
Puxa, querida minha querida Clé,

foi mesmo bom, ninguém ter me avisado.
Esses dias, do final da semana, foram terríveis, alguma dor, e algum sofrimento.

Não posso, não sei o que escrever.
Ainda bem que vim pelo primeiro post (o mais recente).

O Sanches tem a prosa fluente do escritor - noves fora totalmente o jornalista.

Ele escreveu o livro sobre o amor entre anarquistas, o que aliás é um das minhas paixões. Este aqui, certamente está chegando para mim, pois o encomendei asim que vi sua referência.
Ele lhe deve mais isso:-)

E eu fico se saber o que dizer, pois é grata glória receber este belo presente, de você, uma das minhas favoritas, favoritíssimas blogueiras.
Considero um grande prêmio, pois já aprendi muita coisa qui.
Obrigadíssima.
Emocionada,
Meg, como já disse , para vc , Meguita!
 
Ah! agora pensei, há claro, a Livraria Shakespeare (e quem fala Meg há que falar ou lembrar Shakespeare.Há uma inscrição no banner domeu blog. E daria a vida por Hamlet, a peça, a história o romance inegostavel) na Inglaterra onde foi fundada e há logo uma filial na rive gauche, em Paris.
Um dia vamos lá?
-Vamos sim, e olhe como é bonita a história das livrarias. nem falo a delas duas
Há tantas , as nossas livrarias o que guardam de história e vida literária.
Um beijo, querida
E se vc tem link pro Geneton deve ser entrevista não é?;-)
Vou lá!
M.
 
Ah! sim!
Tá vend só, estou ocupadísima e doente - você é um perigo, querida Clé, uma grande perigo!

Ele fala aí em Curitiba, claro foi no Paraná a experiência dos anarquistas chamada "Colônia Cecília"
É o que me liga à vontad de voltar à frígida Curitiba mas ao gostoso Paraná!
 
Meguita,

O link fala da livraria, em Paris.

Eu sou um perigo?!?!

Tenho o livro Um amor anarquista, mas ainda não o li ('tá na lista). Colônia Cecília, o nome da minha filha...

Que bom que gostou do presente virtual.

bjo,
Clé
 
Puxa Clélia que bonito post.
Conheço essa história, claro que não como crítica, mas como a esposa.
Muitas vezes tive que dividir o dinheiro das necessidades urgentes na despensa com os livros.
Bem claro, "O feijão e o sonho" não?
Um beijo.
 
Tempos difíceis, né, Anna?

O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa... Lembro-me da novela, baseada neste livro, com Cláudio Cavalcante & Nívea Maria (adaptação de Benedito Ruy Barbosa e direção de Herval Rossano). Nossa, foi há muito tempo!

Bjo,
Clélia
 
Foi a bastante tempo realmente, mas eu também me lembro dela.
Nívea Maria, Cláudio, e o outro casal era Roberto Bonfim e Angela Leal, ela era irmã da Nívea, que passou a vida pobre, e muitos anos depois conseguiu realizar o sonho da casa própria.
Tal como eu, que levei quase trinta anos de casada para conseguir minha casinha.
Mas tudo na minha vida valeu, até pela própria vida, que valorizo, pois quase a perdí.
E tenho sido muito feliz e muito amada. Isso levo comigo, o dia que me for.
Um beijo
 
Anna,

Transcrevo uma pequena passagem do livro A casa de papel (citado em meu último post) pra você:

"O mundo dos vivos encerra por si só muitas maravilhas e mistérios; maravilhas e mistérios que obram por modo tão inexplicável sobre nossas emoções e nossa inteligência, que isso quase bastaria para justificar que possa conceber-se a vida como um sortilégio."

bjo,
Clélia
 
esses encontros são cada vez mais lindos.
 
Pois é, Lulu, e proporcionados pela Internet!

Passei no seu blog e vi suas leituras de férias... Já havia lido, outro post, sobre o livro Virgínia. Berlim, uma experiência, cuja capa é a mesma do maravilhoso CD do Chet Baker, My Funny Valentine, que o Arnaldo comentou, uma vez, no blog dele. Não conhecia o livro. Fiquei curiosa...

E a saga dos felinos (I & II), Sushi & Meleca, não vai continuar nos contando...?

Bjão,
Clé
 
Postar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?