sexta-feira, julho 27, 2007

 

HERDANDO UMA BIBLIOTECA (II)



Trechos do 2° capítulo do livro:

Sempre me pensei como um leitor de biblioteca pública, por mais que quase já não tome livros emprestados desta instituição que foi o primeiro espaço livre que freqüentei. Em casa, havia a pressão moralista da ética do trabalho de meu padrasto - a leitura fora das atividades escolares seria uma forma disfarçada de vadiagem, combatida com a fúria de quem ganhava com muito esforço o dinheiro para nossa sobrevivência.

Na escola, ficávamos restritos a conteúdos definidos por pessoas que nos queriam presos à nossa classe social. Os anos escolares, que para mim coincidiram com os da ditadura militar, foram um período marcado pelo desconhecimento - professores passivos, escorados em livros didáticos, um silêncio absoluto em torno dos problemas políticos e uma aceitação da realidade mesquinha. (...)

Nessa escola paralisante, que não queria que fôssemos além das informações medíocres que nos davam em preguiçosas doses homeopáticas, gastei minha infância. Não podia esperar nada dela, pois de mim ela esperava apenas o desempenho-padrão (...), para que logo eu pudesse assumir meu lugar na cadeia produtiva. Naquela época mais, mas ainda hoje, a escola pública - que agora não cobra minimamente os conteúdos - tinha antes uma função conformadora do que formadora. (...) Tal postura, muito comum nos anos 70, por causa da política desenvolvimentista, sofreu uma crítica na década seguinte, mas voltou com toda a força em uma escola que prepara trabalhadores para o mercado internacionalizado.

O que os educadores não sabem é que muitos dos alunos continuam querendo uma ultrapassagem cultural de seu mundo e não apenas uma pequena melhoria econômica. Fui um desses pardais que sonhavam com alturas e não com as migalhas caídas no chão. E o lugar onde pude exercer este projeto foi a biblioteca pública.

Nela, não havia conteúdos predefinidos, nem o desejo de me moldar.

A partir da sétima série, passei a freqüentar a sala de leitura da escola. Uma bibliotecária, que fazia tricô para complementar seu salário, insistia para que eu retirasse os livros, bastava fazer a carteirinha. Eu preferia, no entanto, permanecer na biblioteca, cujo ambiente me transmitia um bem-estar muito grande. Em casa, outras eram as prioridades. Ali, eu estava em contato com grandes homens, fazia-me contemporâneo deles, vivendo uma outra vida, distante daquela que a família e a escola insistentemente me impunham.

Podia eleger o tipo de leitura, e fiz isso sem nenhum método, porque a biblioteca me permitia ser sujeito de minhas escolhas, mesmo que elas recaíssem sobre livros e autores errados. Nunca me senti tão independente como dentro de uma biblioteca pública, percorrendo ao acaso prateleiras e descobrindo livros sobre os quais não tinha nenhuma informação. Se o saber escolar chegava formatado (refletindo preconceitos didáticos), a biblioteca era o espaço livre e não-solicitante. Muitas vezes, eu apenas caminhava entre os livros, vendo capas e deixando passar o tempo.

Poucas pessoas procuravam, sem a necessidade de fazer trabalhos escolares, o pequeno gabinete de leitura de Peabiru. Eu meio que me sentia dono de tudo. Mas só podia realmente possuir tais livros infringindo a lei. Depois de ler um romance de Lima Barreto, veio­me a vontade de ter o autor comigo. E mutilei um exemplar, arrancando a folha com a foto do romancista. Minha namorada colecionava pôsteres de atores de novela, e eu também queria ter meus ídolos.

Conquistando a confiança da bibliotecária, consegui roubar alguns livros, entre eles os ensaios de Alceu Amoroso Lima. Olhei a ficha de empréstimo: nunca ninguém o havia retirado. Ele estava ali esperando por mim. O amor aos livros e um sentimento de exclusão me levaram a esse crime, que depois defini como saudável ato de revolta contra a sociedade em que vivia.
Mas eu não estava sozinho nesses delitos do amor.

Na época em que me interessei pelo haikai (foram dez anos de leitura, estudo e prática), tentei adquirir a coletânea The history of haiku, de R. H. Blyth, editada em Tóquio. Escrevi cartas, falei com livreiros e com o consulado japonês, mas não consegui os livros - tive que ler os exemplares da biblioteca da Universidade Federal do Paraná. Perguntei um dia a uma pessoa ligada a Paulo Leminski como ele tinha conseguido comprar a obra de Blyth.

_ Quem disse que foi comprada? Roubamos de uma biblioteca.

Graças a este roubo, a cultura brasileira ganhou uma grande contribuição de Leminski, que não só divulgou o haikai em textos críticos como foi um de seus mais representativos praticantes no Ocidente. Se The history of haiku não estivesse sempre presente em sua biblioteca particular, com certeza este gênero seria mais pobre em nossa cultura.

Hoje não preciso mais roubar aqueles que eram distantes objetos de desejo, gasto boa parte de meu salário em livrarias e sebos e geralmente tenho o que quero, mas quando visito amigos colecionadores sinto vontade de enfiar alguns volumes dentro da calça e sair sorrateiramente. Afanaria, por exemplo, a primeira edição autografada de Eu, de Augusto dos Anjos, que vi no apartamento de Alexei Bueno, e todas as primeiras edições de Cruz e Sousa, cuidadosamente encadernadas, que manuseei na casa de Iaponan Soares, em Florianópolis. E também os originais de Cecília Meireles que se encontram com seu neto, Alexandre Carlos Teixeira, guardião da egoteca da avó, de retratos feitos por grandes pintores e de sua minúscula e tentadora máquina de escrever.

Roubar livros que nos solicitam amorosamente é uma forma de herdar à força uma biblioteca que nos foi negada.

[“Herdando uma biblioteca”, Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 15-20]


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