terça-feira, julho 31, 2007

 

A CASA DE PAPEL (I)




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Fomos, Arnaldo, Cecília & eu, conhecer a nova Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, na Paulista, em São Paulo. Saí de lá com um livro pequeno, fininho (quase um pocket book), daqueles que você bate o olho, vai com a cara, com o título, dá uma folheada, vê a contracapa e as orelhas e quer levar, ou sentar, ali mesmo, e ler, inteiro (mas não tínhamos tempo pra isso, a visita à livraria era rápida, passagem entre um programa & outro): A Casa de Papel, do escritor argentino Carlos Maria Domínguez*. Transcrevo alguns trechos:




Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas de Emily Dickinson, e ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi atropelada por um automóvel.

Os livros mudam o destino das pessoas. Uns leram O tigre da Malásia e se transformaram em professores de literatura em remotas universidades. Sidarta levou milhares de jovens ao hinduísmo, Hemingway transformou-os em esportistas, Dumas transtornou a vida de milhares de mulheres e não poucas foram salvas do suicídio por manuais de cozinha. Bluma foi sua vítima.

Mas não a única. O velho professor de línguas antigas Leonard Wood ficou hemiplégico ao receber na cabeça cinco tomos da Enciclopédia Britânica, que se soltaram de uma prateleira de estante; meu amigo Richard quebrou uma perna ao tentar alcançar Absalão, Absalão!, de William Faulkner, mal localizado numa prateleira que o levou a cair da escada. Outro amigo de Buenos Aires pegou tuberculose nos porões de um arquivo público e conheci um cachorro chileno que morreu de indigestão com Os irmãos Karamázov, depois de devorar suas páginas numa tarde de fúria.

Cada vez que minha avó me via ler na cama, costumava dizer: "Deixe disso, os livros são perigosos": Durante muitos anos acreditei em sua ignorância, mas o tempo demonstrou a sensatez de minha avó alemã.

O funeral de Bluma atraiu inúmeras autoridades da Universidade de Cambridge. No ofício religioso, o professor Robert Laurel dedicou-lhe uma despedida soberba, depois editada em um fascículo por seu mérito acadêmico. Ele ressaltou sua brilhante carreira universitária, seus quarenta e cinco anos de sensibilidade e inteligência e, no corpo principal do trabalho, seus decisivos aportes à pesquisa da marca anglo-saxã nas letras latino-americanas. Mas culminou com uma frase controversa: "Bluma consagrou sua vida à literatura": disse, "sem imaginar que iria levá-la deste mundo".

Aqueles que o acusaram de estragar a peça com um "eufemismo abjeto" enfrentaram a acérrima defesa dos auxiliares de Laurel. Poucos dias mais tarde, em casa de minha amiga Anny, ouvi John Bernon dizer a um grupo de discípulos de Laurel:

_ Foi morta por um carro. Não pelo poema.

_ Nada existe fora de sua representação – argumentaram dois rapazes e uma moça judia de voz cantante. _ Qualquer um tem o direito de escolher a representação que quiser.

_ E de fazer má literatura. Concordo – rebateu o velho, com esse ar falsamente conciliador que lhe deu fama de cínico no campus, em polvorosa por causa das próximas entrevistas da pós-graduação em que Bernon concorreria com Laurel.
_ Há um milhão de pára-choques soltos nas ruas da cidade que lhes demonstrarão do que é capaz um bom substantivo.

As polêmicas sobre a famosa frase se estenderam pela universidade e houve um concurso de estudantes sob o tema "Relações entre realidade e linguagem".

Calcularam-se os passos de Bluma na calçada do Soho, os versos dos sonetos que teria chegado a ler, a velocidade do veículo; debateu-se com ardor a semiótica do trânsito em Londres, o contexto cultural, urbano e lingüístico do segundo em que a literatura e o mundo colapsaram sobre o corpo da querida Bluma. (...)

Ao longo dos anos, vi livros destinados a equilibrar a perna manca de uma mesa; conheci os transformados em mesa de cabeceira, dispostos em forma de torre e com um pano por cima; muitos dicionários aplainaram e prensaram mais objetos do que as oportunidades em que foram abertos, e não poucos livros guardam, dissimulados nas prateleiras, cartas, dinheiro, segredos. As pessoas também mudam o destino dos livros.

Um vaso se parte, uma cafeteira ou uma televisão se quebra muito antes do que um livro. Ele não se estraga a menos que seu proprietário queira fazê-lo, arranque suas páginas, ateie fogo nelas. Durante os anos da última ditadura militar argentina, muita gente queimou seus livros no bidê, nas banheiras, enterrou coleções no fundo de suas casas. Haviam-se tornado notoriamente perigosos. Entre eles e a própria vida, as pessoas escolhiam, transformadas em seu próprio verdugo.

Livros que haviam sido longamente estudados, discutidos, livros que tinham despertado paixões, compromissos irrenunciáveis, e distanciado velhos amigos, subiam ao céu transformados em cinzas de carvão que se dissipavam no ar.

Eu não me atrevi. Enrolava revistas e as introduzia dentro do tubo da cortina do chuveiro, escondia os livros mais temíveis no último canto dos armários, na fileira posterior da estante, com a consciência de que uma inesperada batida os descobriria. Naquela época os livros acusaram muita gente. Arruinaram-lhe a vida.

As relações da humanidade com esses objetos resistentes, capazes de atravessar um século, dois, vinte, vencer, se se quiser, a areia do tempo, nunca foram inocentes. Aderiram à fibra da madeira, macia e inquebrantável, uma vocação humana.

Não é que seja afeito a olhar debaixo das cadeiras. Gosto de deixar-me enganar pelos saltimbancos, os efeitos rústicos do teatro e a melodia impressa nas palavras. Mas a casa de papel, numa praia distante do sul, acabou por tornar-me sensível a essa linha de sombra: uma dimensão cega que reúne num estranho brinquedo a vontade e o corpo da letra impressa. (...)


["A Casa de Papel", de Carlos Maria Domínguez, 2006, Editora: Francis, pp. 9, 10; 75, 76]


acérrimo [Do lat. acerrimu]
Adjetivo.
1. Superl. abs. sint. de acre e agre; muito acre: fruta acérrima.
2. Muito tenaz; obstinado, pertinaz: É um acérrimo defensor da democracia; “Ao cabo de oito meses de luta acérrima, Sagunto sucumbiu.” (Aquilino Ribeiro, Os Avós dos Nossos Avós, p. 117).

verdugo [De um lat. hisp. *virducum (cat. ant. verduc) < lat. viride, ‘verde’, ‘a vara verde usada como açoite’, e depois, p. ext., ‘o carrasco’.]
Substantivo masculino.
1. Indivíduo que inflige maus-tratos.
2. V. carrasco 1 (1): “dois anos depois que a sua cabeça [de Balboa] rolava no cepo do verdugo, .... cruzava Magalhães o mesmo mar do sudoeste ao noroeste” (Latino Coelho, Fernão de Magalhães, pp. 131-132).
3. Pequena navalha pontiaguda.
4. Parte saliente da chapa de trilho nas rodas dos vagões, destinada a evitar descarrilamentos.
5. Constr. Nav. Peça reforçada, de madeira, boleada, presa ao longo do costado de uma embarcação, da proa à popa, junto à falca, ou cravada na cinta dos rebocadores, etc., e destinada a proteger o costado contra choques e roçaduras por ocasião das atracações: “Joel remanchava, preso ao costado da lancha, atônito, agarrando-se com as unhas ao verdugo, às varas, .... esperando um olhar de Jana em despedida.” (Xavier Marques, Jana e Joel, p. 121.)

carrasco 1 [Do antr. (Belchior Nunes) Carrasco, que antes do séc. XVII foi algoz em Lisboa.]
Substantivo masculino.
1. Funcionário executor da pena de morte; verdugo, algoz.
2. Indivíduo cruel, desumano.

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*Carlos María Domínguez (1955) é argentino, embora resida em Montevidéu há quinze anos. Escritor, crítico literário e jornalista, está convencido de que os livros mudam as vidas das pessoas e o demonstra com esta novela, A casa de papel (prêmio Lolita Rubial), traduzida também para o inglês, italiano, francês, alemão, holandês. Domínguez ganhou vários outros prêmios literários, entre eles o Juan Carlos Onetti por Tres muescas en mi carabina, cancelado posteriormente por razões extra culturais. Entre outros livros, escreveu a biografia de Onetti e a de Jorge Rafael Videla, Historia de un dictador.
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Engraçado, lendo o início do artigo de Aluízio Falcão, do Estadão (10/03/2007): “Não será fácil localizar nas vitrines, mostruários e estantes das livrarias, em meio à profusão de capas grandes e vistosas, o pequeno livro de 98 páginas que venho recomendar, minutos depois de sua leitura, com a urgência e a convicção de quem cumpre um dever. (...)”, concluo que comigo aconteceu, então, exatamente o improvável: batendo os olhos numa bancada de lançamentos, foi exatamente aquele pequeno e precioso livro que se destacou, chamou-me a atenção. Fui, prontamente, pegá-lo e circulei toda a livraria com ele nas mãos, ansiosa para folheá-lo!
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Pra Pinta, patife, que está lançando um livro.
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Links:
http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=791
http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=4330
http://vejasaopaulo.abril.uol.com.br/revista/vejasp/edicoes/2009/m0129481.html


Comments:
Talvez a mais rica das heranças que podemos deixar aos nossos filhos e netos sejam os livros.
Hoje vejo isso com clareza, e quero poder incutir no meu neto, esse amor pelos livros, esse preenchimento de saber que eles nos proporcionam.
Beijos
 
Concordo com você, Anna! Livros & discos serão nossa herança pra Cecília, que é, como nós, uma leitora voraz e amante da música!

Valeu a visita, já nos esbarramos por aí, nos comentários de outros blogs...

Volte sempre! Seja bem-vinda!

bjo,
Clélia
 
Tudo de muito bom gosto por aqui.

Um abraço.
 
Obrigada, James.

abço,
Clélia
 
Clélia, vim devolver a visita. Me achei neste teu post.Minha entrada no mundo dos livros foi na casa de meu avô, que apesar de ter chegado ao Brasil analfabeto e falando só russo, lia tudo que aparecia, de livro de bolso aos grandes autores clássicos.
 
Oi, Débora, adorei a visita!

Tenho ido à sua academia, sem fazer comentários (além do 1° post).

Legal como as linhas se cruzam, links são feitos e o círculo aumenta. Todos se contaminam!

Que bom que você se identificou com o post (com o blog). Acabo + transcrevendo que escrevendo, mas prefiro assim. Se há quem diga as coisas melhor do que eu, por que não usufruir disso? (com as devidas referêncis, claro!)

Volte sempre, explore mais o espaço, comente, se tiver vontade... 'tô por aqui!

bjo,
Clélia
 
"Um vaso se parte, uma cafeteira ou uma televisão se quebra muito antes do que um livro."

é verdade. e como custa escrever, organizar, editar e publicar. como demora, num país como o Brasil, ainda que se vejam nas estantes tantos livros de auto-ajuda que minha cabecinha animal mal consegue realmente compreender.

obrigada, Clélia. :)
 
Espero que tenham um bom retorno, Pinta!
bjo,
Clé
 
Definitivamente tenho de ter cuidado com a leitura desses seus posts ehehhehe
Estou com muitos livros na fila de espera...e essas suas transcrições acabam por dar uma colher do que parece ser a sopa toda - irressistível!!!

Obrigado por partilhar essas linhas conosco!
Bjao
:-]
 
Não há o quê agradecer, Eli. O prazer de partilhar é meu também!

Venha degustar os aperitivos, aqui, sim...

bjão,
Clé
 
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