terça-feira, fevereiro 20, 2007

 

Meu letrista preferido e seus parceiros


Um dos, seria mais correto dizer. Assim como poeta...



Mas Paulo César Pinheiro é um letrista realmente exemplar! E escolher algumas de suas canções, pra colocar no post, é deixar de lado uma porção de outras, todas ótimas. É, certamente, cometer injustiça, eu sei. Mas irei arriscar... Pra não sobrecarregar a página do blog, algumas canções poderão ser acessadas através de links.



Na volta que o mundo dá, com Vânia Abreu:



Na volta que o mundo dá
Vicente Barreto & Paulo César Pinheiro


Um dia eu senti um desejo profundo
De me aventurar nesse mundo
Pra ver onde o mundo vai dar

Saí do meu canto na beira do rio
E fui prum convés de navio
Seguindo pros rumos do mar

Pisei muito porto de língua estrangeira
Amei muita moça solteira
Fiz muita cantiga por lá

Varei cordilheira, geleira e deserto
O mundo pra mim ficou perto
E a terra parou de rodar

Com o tempo
Foi dando uma coisa em meu peito
Um aperto difícil da gente explicar

Saudade, não sei bem de quê
Tristeza, não sei bem porquê
Vontade até sem querer de chorar

Angústia de não se entender
Um tédio que a gente nem crê
Anseio de tudo esquecer e voltar

Juntei os meus troços num saco de pano
Telegrafei pro meu mano
Dizendo que ia chegar

Agora aprendi porque o mundo dá volta
Quanto mais a gente se solta
Mais fica no mesmo lugar


Anabela, com Mário Gil:



Anabela
Mario Gil & Paulo César Pinheiro


No porto de Vila Velha
Vi Anabela chegar
Olho de chama de vela
Cabelo de velejar
Pele de fruta cabocla
Com a boca de cambucá
Seios de agulha de bússola
Na trilha do meu olhar

Fui ancorando nela
Naquela ponta de mar

No pano do meu veleiro
Veio Anabela deitar
Vento eriçava o meu pelo
Queimava em mim seu olhar
Seu corpo de tempestade
Rodou meu corpo no ar
Com mãos de rodamoinho
Fez o meu barco afundar

Eu que pensei que fazia
Daquele ventre meu cais
Só percebi meu naufrágio
Quando era tarde demais

Vi Anabela partindo
Pra não voltar nunca mais



Não vim pra ficar, com Renato Braz:



Não vim pra ficar
Wilson das Neves & Paulo César Pinheiro


Não vim pra ficar
Não reserve um espaço no armário pra me acostumar
Não espere no horário, arrumada, na sala de estar
Não pretendo trazer minha vida pro seu bangalô

Não vim pra ficar
Não separe um cantinho pra eu ler o jornal no sofá
Não pergunte o que eu gosto, o que vai me fazer pro jantar
Me desculpe o mau jeito que é o jeito que eu sou

Não vim pra ficar
Não me guarde uma escova de dentes, não vou pernoitar
Não faz cópia da chave, não quero invadir o seu lar
Quero vir como sempre, feito um beija-flor

Não vim pra ficar
Não me põe monograma na fronha da gente deitar
Não pendure no tanque gaiola pro meu sabiá
Não faz do nosso encontro uma obrigação, por favor

Não vim pra ficar
Eu não quero assumir compromisso da gente juntar
Por enquanto, é melhor não mexer, deixe assim, como está
Vamos ver que destino vai ter nosso amor


O poder da criação, com Alcione:



O poder da criação
João Nogueira & Paulo César Pinheiro


Não, ninguém faz samba só porque prefere
Força nenhuma no mundo interfere
Sobre o poder da criação
Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito
Nem se refugiar num lugar mais bonito
Em busca da inspiração

Não, ela é uma luz que chega de repente
Com a rapidez de uma estrela cadente
E acende a mente e o coração
É, faz pensar
Que existe uma força maior que nos guia
Está no ar
Vem no meio da noite ou no claro do dia
Chega a nos angustiar
E o poeta se deixa levar por essa magia
E um verso vem vindo e vem vindo uma melodia
E o povo começa a cantar!


Saudades da Guanabara, com Leny Andrade:



Saudades da Guanabara
Moacyr Luz, Aldir Blanc & Paulo César Pinheiro


Eu sei
Que o meu peito é lona armada
Nostalgia não paga entrada
Circo vive é de ilusão (eu sei...)
Chorei
Com saudades da Guanabara
Refulgindo de estrelas claras
Longe dessa devastação (...e então)
Armei
Pic-nic na Mesa do Imperador
E na Vista Chinesa solucei de dor
Pelos crimes que rolam contra a liberdade
Reguei
O Salgueiro pra muda pegar outro alento
Plantei novos brotos no Engenho de Dentro
Pra alma não se atrofiar (Brasil)
Brasil, tua cara ainda é o Rio de Janeiro
Três por quatro da foto e o teu corpo inteiro
Precisa se regenerar
Eu sei
Que a cidade hoje está mudada
Santa Cruz, Zona Sul, Baixada
Vala negra no coração
Chorei
Com saudades da Guanabara
Da Lagoa de águas claras
Fui tomado de compaixão (...e então)
Passei
Pelas praias da Ilha do Governador
E subi São Conrado até o Redentor
Lá no morro Encantado eu pedi piedade
Plantei
Ramos de Laranjeiras foi meu juramento
No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro

Pois é pra gente respirar (Brasil)
Brasil
Tira as flechas do peito do meu Padroeiro
Que São Sebastião do Rio de Janeiro
Ainda pode se salvar



O samba é meu dom, com Wilson das Neves:



O samba é meu dom
Wilson das Neves & Paulo César Pinheiro


O samba é meu dom
Aprendi bater samba
ao compasso do meu coração
De quadra, de enredo,
De roda na palma da mão
De breque, de partido-alto
E o samba-canção

O samba é meu dom
Aprendi dançar samba
Vendo o samba de pé no chão
No Império Serrano,
A escola da minha paixão
No terreiro, na rua, no bar,
Gafieira e salão

O samba é meu dom
Aprendi cantar samba
com quem dele fez profissão
Mário Reis, Vassourinha,
Ataulfo, Ismael, Jamelão
Com Roberto Silva, Sinhô
Donga, Ciro e João (Gilberto)

O samba é meu dom
Aprendi muito samba
Com quem sempre fez samba bom
Silas, Zinco, Aniceto, Anescar
Cachinê, Jaguarão
Zé-com-fome, Herivelto,
Marçal, Mirabeau, Henricão

O samba é meu dom
É no samba que eu vivo,
Do samba é que eu ganho
O meu pão
E é num samba
Que eu quero morrer
De baquetas na mão
Pois quem é de samba
Meu nome não esquece mais não


Canto das três raças, com Clara Nunes:

Canto das três raças
Mauro Duarte & Paulo César Pinheiro


Ninguém ouviu um soluçar de dor
No canto do Brasil.
Um lamento triste sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro e de lá cantou.

Negro entoou um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares, onde se refugiou.
Fora a luta dos inconfidentes
Pela quebra das correntes.
Nada adiantou.

E de guerra em paz, de paz em guerra,
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar,
Canta de dor.

E ecoa noite e dia: é ensurdecedor.
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador...
Esse canto que devia ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor


Espelho, com João Nogueira:

Espelho
João Nogueira & Paulo César Pinheiro


Nascido no subúrbio nos melhores dias
Com votos da família de vida feliz
Andar e pilotar um pássaro de aço
Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço
Com as fardas mais bonitas desse meu país
O pai de anel no dedo e dedo na viola
Sorria e parecia mesmo ser feliz

Eh, vida boa
Quanto tempo faz
Que felicidade!
E que vontade de tocar viola de verdade
E de fazer canções como as que fez meu pai

Num dia de tristeza me faltou o velho
E falta lhe confesso que inda hoje faz
E eu me abracei na bola e pensei ser um dia
Um craque da pelota ao me tornar rapaz
Um dia chutei mal e machuquei o dedo
E sem ter mais o velho pra tirar o medo
Foi mais uma vontade que ficou pra trás

Eh, vida à toa
Vai no tempo vai
E eu sem ter maldade
Na inocência de criança de tão pouca idade
Troquei de mal com Deus por me levar meu pai

E assim crescendo eu fui me criando sozinho
Aprendendo na rua, na escola e no lar
Um dia me tornei o bambambã da esquina
Em toda brincadeira, em briga, em namorar
Até que um dia eu tive que largar o estudo
E trabalhar na rua sustentando tudo
E assim sem perceber eu era adulto já

Eh, vida voa
Vai no tempo, vai
Ai, mas que saudade
Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade
E orgulho de seu filho ser igual seu pai
Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar


Última forma, com Emílio Santiago:

Última forma
Baden Powell & Paulo César Pinheiro


É, como eu falei, não ia durar
Eu bem que avisei, pois é, vai desmoronar
Hoje ou amanhã um vai se curvar
E graças a Deus, não vai ser eu quem vai mudar
Você perdeu
E sabendo com quem eu lidei não vou me prejudicar
Nem sofrer, nem chorar, nem vou voltar atrás
Estou no meu lugar, não há razão pra se ter paz
Com quem só quis rasgar o meu cartaz
E agora, pra mim, você não é nada mais

E qualquer um pode se enganar
Você foi comum, pois é, você foi vulgar
O que é que eu fui fazer quando dispus te acompanhar
Porém pra mim você morreu
Você foi castigo que Deus me deu

Não saberei jamais se você mereceu perdão
Porque eu não sou capaz de esquecer uma ingratidão
E você foi uma a mais
E qualquer um pode se enganar
Você foi comum, pois é, você foi vulgar
O que é que eu fui fazer quando dispus te acompanhar
Porém pra mim você morreu
Você foi castigo que Deus me deu
E como sempre se faz, aquele abraço, adeus
E até nunca mais


Mordaça, com Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro & Márcia:

Mordaça
Eduardo Gudin & Paulo César Pinheiro


Tudo o que mais nos uniu separou
Tudo que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva
O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa

É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar

Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar


Cordilheira, com Simone:

Cordilheira
Sueli Costa & Paulo César Pinheiro


Eu quero ter a sensação das cordilheiras
Desabando sobre as flores inocentes e rasteiras
Eu quero ver a procissão dos suicidas
Caminhando para a morte pelo bem de nossas vidas
Eu quero crer na solução dos evangelhos
Obrigando os nossos moços ao poder dos nossos velhos
Eu quero ler o coração dos comandantes
Condenando os seus soldados pela orgia dos farsantes
Eu quero apenas ser cruel naturalmente
E descobrir onde o mal nasce e destruir sua semente
Eu quero ter a sensação das cordilheiras
Desabando sobre as flores inocentes e rasteiras
Eu quero ser da legião dos grandes mitos
Transformando a juventude num exército de aflitos
Eu quero ver a ascensão de Iscariotis
E no sábado um Jesus crucificado em cada poste
Eu quero ler na sagração dos estandartes
Uma frase escrita a fogo pelo punho de deus Marte
Desabando sobre as flores
Caminhando para a morte
Obrigando os nossos moços
Condenando os seus soldados
Transformado a juventude
Um Jesus crucificado
Eu quero ter a sensação das cordilheiras

Veneno, com Márcia:

Veneno
Eduardo Gudin & Paulo César Pinheiro


Mas o que me faz chorar
É esse fel que você vive a destilar
É essa a paga cruel que você me dá
Só o melhor meu coração te ofereceu
Você cuspiu no prato que comeu
E o mal que isso me faz
Não esperava isso de você jamais
Eu não sabia que você podia ser capaz
De alguém pedir a mão e receber
Depois vingar em vez de devolver
Dei o manto pra quem vai me desnudar
E em meu canto abriguei quem vai me expulsar
Eu te dei de beber
No mesmo copo você vai me envenenar


Cicatrizes, com MPB4:

Cicatrizes
Miltinho & Paulo César Pinheiro


Amor que nunca cicatriza
Ao menos ameniza a dor
Que a vida não amenizou
Que a vida a dor domina
Arrasa e arruína
Depois passa por cima a dor
Em busca de outro amor

Acho que estou pedindo uma coisa normal
Felicidade é um bem natural
Uma, qualquer uma
Que pelo menos dure enquanto é carnaval
Apenas uma, qualquer uma
Não faça bem mas que também não faça mal

Não, meu coração precisa
Ao menos ameniza a dor
Que a vida não amenizou
Que a vida a dor domina
Arrasa e arruína
Depois passa por cima a dor
Em busca de outro amor

Acho que estou pedindo uma coisa normal
Felicidade é um bem natural
Uma, qualquer uma
Que pelo menos dure enquanto é carnaval
Apenas uma, qualquer uma
Não faça bem mas que também não faça mal


Velho piano, com Nana Caymmi:

Velho Piano
Dori Caymmi & Paulo César Pinheiro


Ah, o amor muda tanto
Parece que o encanto
O cotidiano desfaz
Feito um verso
Jogado num canto
De um velho piano
Que não toca mais

E ele estende seu manto
Feito um soberano
E vem como um santo
Mas parte profano
Parece um cigano
Não volta jamais

Ah, o amor causa espanto
O amor é o engano que traz
Desengano por trás
E, no entanto, todo ser humano
Por ele faz plano demais
Erra demais

Ah, é o amor barco tonto
Num vasto oceano
De riso e de pranto
De gozo e de dano
E como é mundano
Não pára no cais
E quando quer paz
É tarde demais


E lá se vão meus anéis, com Originais do Samba:

E lá se vão meus anéis
Eduardo Gudin & Paulo César Pinheiro


Lá se vão meus anéis, diz o refrão
Mas meus dedos são dez, duas mãos
E a mulher que tu és: oh, não!
Isso não são papéis não são
Não merece meus réis de pão
Mete os pés pelas mãos

Todos sabem que o meu coração
É uma casa aberta não sei porquê
Portas e janelas dão pra você
Dão, deram e darão
É por que a chave do meu coração
Somente o teu coração pode abrir
E lá vai meu coração por aí
Mas não perdoa não
E lá se vão meus anéis

Lá se vão meus anéis, outros virão
Nas primeiras marés encho as mãos
Mas me por a teus pés, oh, não!
Nem que fosse o que resta então
Nem que virem cruéis os bons
E infiéis os cristãos

Todos sabem que o meu coração
É uma casa aberta não sei porquê
Portas e janelas dão pra você
Dão, deram e darão
É por que a chave do meu coração
Somente o teu coração pode abrir
E lá vai meu coração por aí
Mas não perdoa não
E lá se vão meus anéis


Refém da solidão, com Elizeth Cardoso:

Refém da solidão
Baden Powell & Paulo César Pinheiro


Quem da solidão fez seu bem
Vai terminar seu refém
E a vida pára também
Não vai nem vem
Vira uma certa paz
Que não faz nem desfaz
Tornando as coisas banais
E o ser humano incapaz de prosseguir
Sem ter pra onde ir
Infelizmente eu nada fiz
Não fui feliz nem infeliz
Eu fui somente um aprendiz
Daquilo que eu não quis
Aprendiz de morrer
Mas pra aprender a morrer
Foi necessário viver
E eu vivi
Mas nunca descobri
Se essa vida existe
Ou essa gente é que insiste
Em dizer que é triste ou que é feliz
Vendo a vida passar
E essa vida é uma atriz
Que corta o bem na raiz
E faz do mal cicatriz
Vai ver até que essa vida é morte
E a morte é
A vida que se quer


Viagem, com Emílio Santiago (primeira composição de Paulo César Pinheiro, aos 15 anos):

Viagem
João de Aquino & Paulo César Pinheiro


Oh! tristeza me desculpe
Estou de malas prontas
Hoje a poesia
Veio ao meu encontro
Já raiou o dia
Vamos viajar
Vamos indo de carona
Na garupa leve
Do vento macio
Que vem caminhando
Desde muito longe
Lá do fim do mar

Vamos visitar a estrela
Da manhã raiada
Que pensei perdida
Pela madrugada
Mas que vai escondida
Querendo brincar
Senta nessa nuvem clara
Minha poesia
Anda se prepara
Traz uma cantiga
Vamos espalhando
Música no ar

Olha quantas aves brancas
Minha poesia
Dançam nossa valsa
Pelo céu que o dia
Faz todo bordado
De raio de sol
Oh! Poesia me ajude
Vou colher avencas
Lírios, rosas, dálias
Pelos campos verdes
Que você batiza
De jardins do céu

Mas pode ficar tranqüila
Minha poesia
Pois nós voltaremos
Numa estrela guia
Num clarão de lua
Quando serenar
Ou talvez até quem sabe
Nós só voltaremos
Num cavalo baio
No alazão da noite
Cujo o nome é Raio
Raio de Luar



sexta-feira, fevereiro 16, 2007

 

Meu poeta


.
.

.
Paulo César Pinheiro, poeta e letrista de mão cheia! Aquele que conhece muito bem nossa língua, que não usa rimas óbvias, fáceis. Dele & com ele, meu poema preferido:
.
.

.
.
.
.



INFÂNCIA
Paulo César Pinheiro

Ali depois do vau da pedra preta,
De quando meu avô pescava ainda,
Foi sempre o canto de praia mais linda
Do mar mais sossegado do planeta.

Pois em féria escolar, pra lá que eu ia.
Parava a condução na Encruzilhada,
E a pé a gente andava pra Enseada
Com o coração pulando de alegria.

A estrada era de mato e de cascalho.
As casas de sapê, bambu e barro.
E era raro ver passar um carro
Cruzando o lavrador que ia ao trabalho.

Passando o campo, o mangue, o bambuzal,
E aquela curva de meia-ladeira,
Ao se chegar na Ponta-da-Aroeira
Já se avistava todo o litoral.

A Enseada mesmo, o centro do lugar,
Era um pedaço só (seu coração)
Que ia de aquém do pé de fruta-pão
A um pouco adiante do Grupo-Escolar.

Vô Jango e Vó Quinita era a família
De quem morava ali, acho, a mais velha.
Seus filhos eram Tide, Erasmo e Célia,
Mercedes, Naura, Léia e Cecília.

Dos sete filhos, lá ficaram três.
Dois deles meus padrinhos, e Mercedes.
Minha mãe e Léia ao Rio vieram cedo
E Tide e Naura estão em Angra dos Reis.

Gostava de ficar na casa antiga
De quando meu avô teve a visão.
Na frente tinha até caramanchão,
E atrás o rancho, o mar e a brisa amiga.

De um lado (e um bom pedaço) o lodaçal
E do outro um riachinho que corria.
De lá do alto do morro ele descia
Entrando o mar na Ponta-do-Peral.

Ali é que era perigoso o mar.
Ninguém mais mergulhou daquele lado
Depois que Elírio morrera afogado,
(Um primo meu que viera passear).

A vida nesse tempo era assim:
Cedinho tirar leite no curral,
Depois café-de-cana matinal
Com fruta-pão, inhame, angu e aipim.

E após levar o gado para o pasto
Era ir pros pés-de-fruta ou cavalgar,
Ou mergulhar das pedras, ou puxar
Com os pescadores as redes-de-arrasto.

Às quatro da manhã meu avô saía.
E quando ele apontava no horizonte,
Entre tanta canoa (minha mãe que o conte)
A dele minha avó sempre sabia.

Ao meio-dia o almoço sobre a mesa.
Feijão, marisco-e-arroz, uma tainha,
Um bom caldo-de-peixe com farinha,
E miolo-e-água-de-coco à sobremesa.

À tarde meu avô ia fiar
As redes, e eu deitava na canoa.
Adormecia ouvindo história boa
Com o vento bom e o som da água-do-mar.

E antes um pouquinho do sol pôr
Tomava um banho bom de cachoeira
Com os pássaros roçando a cabeleira
E a chuva em mim de pétalas-de-flor.

De noite era a varanda e o lampião
Depois de banho e janta. E meus avós
Juntando os netos todos, todos nós,
Contavam casos de assombração.

E lá foi que eu senti de madrugada
Aos treze anos, com a alma inquieta
A sensação de me sagrar poeta.
Maior eu nunca mais senti mais nada.

Agora já acabou tudo que havia.
Já tem asfalto e luz. Virou cidade.
Esse lugar que eu vi é uma saudade.
E a infância que eu vivi uma poesia.

[extraído do livro "Viola Morena", de Paulo César Pinheiro]

__________

vau 1 [Do lat. vadu.]
S. m.
1. Trecho raso do rio ou do mar, onde se pode transitar a pé ou a cavalo.
2. V. baixio (1).
3. Constr. Nav. Cada uma das vergônteas que servem de suporte ao cesto de gávea.
4. Constr. Nav. Cada uma das vigas de madeira ou dos perfilados de ferro ou de aço dispostos transversalmente ao plano diametral da embarcação e que ligam os diversos pares de balizas que se defrontam num e noutro bordo, e sobre os quais assenta o tabuado ou o chapeamento dos pavimentos.
5. Fig. Ensejo, oportunidade, azo.

Vau de cauda Bras. GO
1. Passagem do rio em que as águas só chegam à cauda do animal, ou até à barriga.

Vau de orelha Bras. GO
1. Passagem do rio que só pode ser atravessada com o animal a nado.

Errar o vau Bras. S.
1. Errar o pealo (2).

vau 2
[Do hebr. vav, 'prego, gancho', pelo gr. baû.]
S. m.
1. Nome antigo da letra V.

Agora, uma linda canção, composta em parceria com Gudin, na voz de Márcia, no CD Tudo o que mais nos uniu:



Velho casarão
Eduardo Gudin & Paulo César Pinheiro

Velho casarão, meu quarto antigo,
Meu porão, meu velho abrigo
Mora a solidão comigo
E lá no jardim, na cama verde
Do capim a nossa sede
De meninos descobrindo o amor
Os doze anos dos dois pelo chão
E os nossos planos casarmos depois
Era bonito

Mas um dia ele não voltou
Esperei um mês ou mais
Pela primeira vez fui poeta
E, hoje, o casarão é onde eu moro
E o porão é onde eu choro
Minhas mágoas mais sentidas
E lá no jardim, na mesma cama
Do capim, o mesmo drama de menino
Que não passa nunca mais
Nunca mais


Links:

http://www.releituras.com/pcpinheiro_menu.asp
http://www.mpbnet.com.br/musicos/paulo.cesar.pinheiro/index.html
http://www.interligar.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=_templateRMB&infoid=134&sid=5



terça-feira, fevereiro 13, 2007

 

Fragmentos




"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música.
Tem peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a
ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de
uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa
uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o
imaterial peso da solidão no meio de outros."

Clarice Lispector


"Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco:
quer-se absorver a outra pessoa toda.
Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira
é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida."
Clarice Lispector
.


domingo, fevereiro 11, 2007

 

São Paulo, retorno



Depois de 6 deliciosos e reconfortantes dias na capital portenha (nossa mais longa estadia na cidade), regressamos ao Brasil. Nosso vôo, marcado pr’as 19:00h, no domingo, saiu com um pouco de atraso. Sobrevoávamos São Paulo, às 23:00h, qdo aterrissamos no aeroporto internacional de Cumbica. Na janela, olhando as luzes da cidade, enquanto o avião manobrava para descer, lembrei da linda canção de Vicente Barreto & Celso Viáfora, na voz de Vânia Bastos, em seu CD “Diversões não eletrônicas” [1997]:


Linda de Lua
Vicente Barreto & Celso Viáfora


Namoro São Paulo da janela do avião
Neons desenhando um céu de estrelas
Lá no chão

Com o sol preparando o entardecer
E a noite tentando decolar
Assisto a cidade se acender
Radiante no seu colar de ruas
E anoitecer feito um farol
Minha cidade nua
Não é de mar
Não é de sol
São Paulo é linda de lua

Namoro São Paulo da janela do avião
Neons desenhando um céu de estrelas
Lá no chão

De noite a cidade é uma mulher
Que sai do escritório de tailleur
Desata o cabelo e o fecho ecler
Atirando o vestido para a platéia
Nunca foi só de trabalhar
A minha paulicéia
Não é de sol
Não é de mar
São Paulo são idéias



 

Buenos Aires (II)


A-d-o-r-o empanadas!!! Em nossa primeira viagem a Buenos Aires, imaginei que elas existissem em cada esquina e que todas fossem ótimas! Acertei, em parte: existem, mesmo, em cada esquina, fritas ou assadas (prefiro as assadas, absolutamente), desde as do tipo fast food (já prontas, requentadas, com carimbo sinalizando o sabor) até as artesanais (assadas ou fritas na hora, típicas de diferentes regiões da Argentina). Estas são as que precisam ser garimpadas... E foi o que fizemos, nesta nossa 3ª ida à cidade. Arnaldo já comentou em seu blog, mas quero ressaltar, que, apesar de termos encontrado empanadas super especiais, no La Cocina (Rua Pueyrredón, 1508, bairro da Recoleta), em São Paulo, no restaurante argentino Martín Fierro (Rua Aspicuelta, 683, Vila Madalena), podemos degustar a melhor empanada de carne (cortada em cubos, com passas, azeitonas e bem temperada). Antigamente, ela era picante, hoje, servem-na "suave", o que é uma pena, prefiro apimentada. A de palmito também é ótima, mas só eu a como. Arnaldo prefere as de carne. Cecília as de frango.


Não sei os taxistas argentinos são ótimos ou péssimos motoristas, só sei que, entrar num táxi, em Buenos Aires, é sempre uma aventura, como já disse Arnaldo, em seu
blog (perigosa, eu acrescentaria)! Eles tiram finas dos outros carros, inacreditáveis! Entram em ruas estreitas, onde mal passa 1 carro (tendo vários estacionados, às vezes, em ambos os lados), e conseguem fazer uma fila dupla! Os semáforos (não sei como os chamam, em castelhano) fechados, abrem-se, como por encanto, pra passagem deles, que vêm, geralmente, à noite, numa velocidade assustadora! Quem sofre do coração, evite-os!!! Há os com ar-condicionado (imprescindível, no calor) e os sem. Há os carros novos (minoria) e os bem velhos. Há motoristas falantes e os calados; simpáticos e sisudos; mas todos, sem exceção, certamente, são brujos!


A Av. 9 de Julho, em Buenos Aires, é uma das mais largas do mundo. Para atravessá-la, a pé, os andarilhos têm de ficar atentos ao semáforo de pedestres, que faz contagem regressiva da travessia (que não pode ser muito lenta). O obelisco marca seu encontro com a Av. Corrientes, onde ficamos hospedados, no coração cultural da cidade. Próximo dali está o Teatro Cólon (sempre em reforma!). Lembro-me de termos encontrado, na calçada da 9 de julho, numa de nossas idas à cidade, o ator argentino Eduardo Blanco, que, atuou, ao lado de Ricardo Darín, nos ótimos filmes, dirigidos por Juan José Campanella: “O filho da noiva” [El Hijo de la Novia, 2001] e “Clube da lua” [Luna de Avellaneda, 2004]. Ele é engraçadíssimo, adoro seu trabalho. Pensei em interceptá-lo, mas não saberia dizer, em castelhano, o qu’eu queria... (acho que nem em português teria coragem de fazê-lo)



sábado, fevereiro 10, 2007

 

Buenos Aires (I)


Notorious é uma loja de CDs & bar/restaurante, que descobrimos em nossa 2ª viagem a Buenos Aires. Fica na Av. Callao, 966. Nela, conhecemos a cantora argentina Roxana Amed, que se apresenta lá, aos sábados. Conseguimos, desta vez, adquirir seus 2 CDs: Limbo & Entremundos. As estantes de discos da Notorious são bem ecléticas, mas sempre nos chama a atenção o espaço dedicado à música brasileira. Vi todos os CDs da Ceumar e um do Carlinhos Brown (Carlito Marrón), entre muitos outros. Um lugar pra se ir, comprar discos e assistir/ouvir música ao vivo.





Durazno Sangrando
Alberto Spinetta

Temprano el durazno del árbol cayó
su piel era rosa dorado del sol
y al verse en la suerte de todo frutal
a orillas de un río su fe lo hizo llegar.

Dicen que en este valle,
los duraznos son de los duendes...

Pasó cierto tiempo en el mismo lugar,
hasta que un buen día, se puso a escuchar
una melodía muy triste del Sur
que así le lloraba desde su interior:

"Quién canta es tu carozo
pues tu cuerpo al fin tiene un alma...
y si tu ser estalla
será un corazón el que sangre...
y la canción que escuchas
tu cuerpo abrirá con el alba..."
La brisa de enero a la orilla llegó
la noche del tiempo sus horas cumplió
y al llegar el alba, el carozo cantó
partiendo al durazno que al río cayó...

Y el durazno partidoya sangrando está bajo el agua...



Fuçando nas prateleiras de TANGO, da livraria El Ateneo (da Av. Santa Fé), encontrei CDs de Eladia Blázquez, co-autora da canção "Siempre se vuelve a Buenos Aires" (que disponibilizei, na voz de Adriana Nano, num post anterior). Não resisti e comprei 2 deles: Com las alas del alma e La mirada (ambos, basicamente, autorais). Deixo, agora, a versão dela desta e de outra bela canção: "Vivir en Buenos Aires".





Siempre se vuelve a Buenos Aires
Eladia Blázquez y Astor Piazzolla


Esta ciudad está embrujada, sin saber,
por el hechizo cautivame de volver.
No sé si para bien, no sé si para mal,
volver tiene la magia de un ritual.
Yo soy de aqui, de otro lugar no puedo ser,
me reconozco en la costumbre de volver
a reencontrarme en mí, a valorar después
las cosas que perdi... ¡La vida que se fue!

Llegué y casi estoy a pumo de partir...,
sintiendo que me voy y no me quiero ir.
Doblé Ia esquina de mí misma
[para comprender
que nadie escapa al faralismo de su propio ser.
Y estoy pisando tus baldosas,
floreciéndome las rosas por volver.

Esta ciudad no sé si existe, si es así
o algún poeta la ha inventado para mí.
Es como una mujer, profética y fatal
pidiendo el sacrificio hasta eI final.

Pero también tiene otra voz, tiene otra piei
y el gesto abierto de la mesa de café,
el sentimiemo en flor, la mano fraternal
y el rostro del amor en cada umbral.

Ya sé que no es casual haber nacido aquí
y ser un poco así... triste y sentimental.
Ya sé que no es casual que un fueye por los dos
nos cante el funeral para decir... adiós.

Decirte adiós a vos... ya ves, no puede ser
si siempre y siempre sos
[una razón para volver.

Siempre se vuelve a Buenos Aires, a buscar
esa manera melancólica de amar...
Lo sabe sólo aquel que tuvo que vivir
enfermo de nostalgia...
[casi a punto de morir.




Vivir en Buenos Aires
Eladia Blázquez

Se que cada dia te reinvento en mi
se que en otra parte yo no se vivir
Pero acaso vos no sepas bien
que como yo no existe quien
¡te quiera asi!

iBuenos Aires!
Es inutil respirar con otro aire,
soy por siempre de tu gracia
Buenos Aires,
del desaire que hay en vos
Tantas veces,
me ha dolido algun lugar que se parece
y he deseado tantas otras,
muchas veces,
no existiese tal dolor
iBuenos Aires!
Ya no quiero amanecer en otra aurora,
ni sentir que una nostalgia punzadora
me devora el corazon.
iBuenos Aires!
En tu puerto quiero atar mi vieja barca
elegirte para siempre mi comarca
y llevar como una marca, tu canción
iBuenos Aires!
Mi ternura es una oleada que te abraza
que se nutre de tu pan con gusto a casa
y se muere de amor, por vos



Na centenária "Heladería y Chocolatería El Vesuvio", ao lado do nosso hotel, na Av. Corrientes, tomávamos, diariamente, um sorvete delicioso! (meus sabores preferidos: chocolate amargo, creme de pistache & creme de almendrado)


quarta-feira, fevereiro 07, 2007

 

TERRA DE NINGUÉM



.
.
.
Adoro a sensação de limbo, durante a viagem, quando não há definição de espaço, tempo, e o avião permanece praticamente estático, sobrevoando o céu...

Contardo Calligaris* define muito bem isso, na introdução do seu livro de crônicas Terra de ninguém:
.
.
.
.
.
.
INTRODUÇÃO: TERRA DE NINGUÉM

DUTY FREE

A primeira crônica apresentada começa assim: "No avião de São Paulo a Boston devorei dois livros [...J". É justo que essa seja a abertura do volume. Pois, de tanto viajar, é como se todas as crônicas tivessem sido escritas nesse espaço estranho que existe nos aeroportos e que está fora da jurisdição ordinária.

Na saída, depois de passar pela Polícia Federal, você está onde? Na chegada, antes que seja admitido no país de destino, onde está? Essa terra de ninguém se estende, naturalmente, à própria viagem e ao espaço da aeronave.

Prova disso: é nesse limbo que prospera o duty free, a loja onde é possível vender e comprar sem que os Estados cobrem impostos. É um bom lugar para pensar sem dever nada a ninguém, ou devendo o mínimo possível.

A zona franca do duty free não configura uma nação, nem uma comunidade com a qual seja possível identificar-se. Produz uma certa solidão, mas permite a liberdade de contrariar o conformismo que é próprio a cada identidade nacional. Ou seja, a liberdade de ser sempre, em qualquer alfândega, um pouco estrangeiro.

(...) A terra de ninguém, para mim, não é só geográfica, entre países. Ela é um estado de espírito que vem de longe. (...)

[extraído das págs. 11-12 do livro “Terra de Ninguém – 101 crônicas”, Contardo Calligaris]


*CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica (Université de Provence) e colunista da Folha de S.Paulo. Italiano, hoje vive e clinica entre Nova York e São Paulo. Foi professor de estudos culturais na New School de Nova York e professor convidado de antropologia médica na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Também faz parte do corpo docente do lnstitute for the Study of Violence, em Boston.
Além de escritos clínicos, seus livros em português são Crônicas do Individualismo Cotidiano (Ática, 1996), Hello Brasil! (Escuta, 2000 [6ª ed.]) e A Adolescência (série "Folha Explica", Publifolha, 2001). Tem também vários textos publicados em revistas e antologias, entre elas Ilha Deserta – Livros (Publifolha, 2003).
.
.
Momento ideal pra leitura, contava com o delicioso livro de Gilda Mattoso: “Assessora de encrenca”, pro percurso São Paulo – Buenos Aires. Dele, transcrevo dados da autora, dedicatória & nota:

Gilda Mattoso nasceu em Niterói, no Rio de Janeiro. Estudou Letras na UFF e especializou-se em línguas na Inglaterra, na Itália e na França, países onde viveu entre 1973 e 1978. Na Europa, trabalhou na produção de shows de artistas brasileiros, assessorando' o empresário Franco Fontana. Num desses shows, reencontrou o ídolo de sua vida inteira: Vinicius de Moraes, com quem acabou se casando. Após a morte do companheiro, Gilda ingressou na indústria fonográfica (Ariola e Polygram) e desde 1989, ao lado de Marcus Vinicius dos Santos, mantém em Ipanema um escritório de assessoria de imprensa/relações públicas por onde já passaram praticamente todos os grandes nomes da MPB e alguns da música internacional.


À minha filha Marina, que, muito pequena, perguntada sobre o que queria ser quando crescesse, respondeu de bate-pronto: "Quero ser igual a você, mamãe, assessora de encrenca".

Devo a ela o título deste livro e a descoberta sobre o que é, de verdade, essa profissão que escolhi pra mim, de assessora de imprensa.

À memória de João Francisco Lontra Jobim, afilhado querido que, também pequeno, adorava minhas histórias. Quando, da janela de sua casa no Jardim Botânico, avistava o meu carro chegando, começava a gritar: "Conta, Gilda, conta!"

E a todas as pessoas amigas que, ao me ouvirem contar esses casos, me estimulavam e insistiam: "Gilda, você tem que pôr tudo isso num livro."

Muitos dos casos que coleciono perdem bastante de sua graça quando escritos. Ficam bem mais engraçados contados, com "coreografias" e "sonoplastias". Por isso não foram aproveitados neste livro.

Nota da autora

Gostei da idéia do livro, mas com minha jornada que às vezes parece ter 26 horas, semanas de oito dias e meses de mais de 35 dias, cadê tempo? Ocorreu-me então pedir a um de meus irmãos que fosse digitando os casos que, depois, organizaríamos em formato de livro. Convidei o número dois da irmandade, Luiz Antônio, oficial reformado da Marinha, conhecido em casa como Luizinho, na Marinha como Kid e que eu chamo de Panta (apelido roubado da célebre criação de Chico Anysio, Pantaleão), por sua imaginação fértil, injetando "flores" e "enfeites" nos casos que conta. A calhar para uma empreitada como esta. (...)

Nasci em Niterói, filha temporã - Ângela, a caçula da família, já tinha 9 anos quando cheguei! - de Paulo de Queirós Mattoso, engenheiro ferroviário, e Liddy Kerr Pinheiro de Queirós Mattoso, esposa-e-mãe-tempo-integral.

Fui recebida por seis irmãos (Paulo, Luiz Antônio, Roberto, Sérgio, Lia e Ângela), excitados com a chegada de mais um/uma (ainda não havia o ultra-som, que liquidou com a deliciosa expectativa). Nas últimas semanas que antecederam ao nascimento, os seis e meus pais iniciaram um processo democrático de escolha de nomes. Cada um indicou um nome de menina e outro de menino; todos deram notas a todas as indicações; tabularam; chegaram finalmente aos vencedores: Gisela e Bruno. Logo depois do nascimento, conta Luizinho, dispararam telefonemas e telegramas para parentes e amigos:

"Gisela chegou!"

Dois dias depois, dr. Paulo entrou no quarto e entregou a Liddy a certidão:

- Pronto. Está registrada.

Ela leu e o espanto foi geral: "GILDA?"

O velho, imperturbável:

- E vocês acham que eu ia abrir mão do meu pátrio poder?

Pelo menos aproveitaram-se as iniciais já bordadas... A escolha desse nome foi influência de Gilda, filme com Rita Hayworth e Glen Ford, grande sucesso no mundo todo. (...)


[extraído das págs. 15, 21-22 do livro “Assessora de encrenca”, Gilda Mattoso]


Assisti, no programa “Sem Censura”, da TVE Brasil, entrevista com Gilda, contando vários dos seus causos... divertidíssimos! Ela foi uma das mulheres de Vinícius. Viveu, com ele, seus últimos dias. Destaco, do livro, duas passagens tocantes:
.
..
.
O generoso João Gilberto e Baden


1980, maio ou junho. Vinicius não estava nada bem. Tentava resistir ao padecimento do grave estado de saúde. Esforçava-se para sair, ver amigos, mas estava cada vez mais difícil, sofrido.

Chegou um convite de João Gilberto para assistirmos à gravação de um especial que ele ia fazer para a Rede Globo, que se chamou João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, da série "Grandes Nomes". Mas no dia Vinicius passou muito mal. Ficou inconsolável.

_ Vá você me representando - disse ele.

Recusei-me. Não podia deixá-lo naquele estado.

_ Não se incomode - disse eu -, depois nós vemos o programa já editado, na televisão.

Ele estava pesaroso:

_ Há tantos anos que não vejo o Joãozinho cantando...

Passaram-se alguns dias. Vinicius recebeu a visita do querido amigo e parceiro Baden Powell. Durante toda a tarde, Baden tocou e os dois cantaram numa alegria de dar gosto. Baden ficou para jantar. Logo depois, caiu uma chuvarada feia, o que nos levou a convencê-lo a não voltar para casa, pois a cidade estaria alagada. Deleitamo-nos com mais violão do soberbo artista. Providenciamos sua instalação no quarto de hóspedes e avisamos a Silvia, sua mulher e minha querida amiga até hoje, que ele só voltaria para casa no dia seguinte, por conta do toró.

Já estávamos também vestidos para dormir quando tocou a campainha. Deviam ser umas 23h. Vinicius atendeu ao interfone.

­_ Sou eu, Miúcha, vocês ainda estão acordados?

Mesmo de pijamas ele respondeu entusiasmado:

_ Tô, Miuchinha, pode entrar.

Quando abrimos a porta entraram Miúcha e João Gilberto com seu violão. João refez para Vinicius o especial todinho. Com várias interrupções para atender a pedidos de Vinicius, "canta essa de novo", "mais uma vez", etc., João pacientemente cantou tudo, mais as muitas repetições. Saiu de nossa casa com o dia amanhecendo. Foi uma beleza. João talvez nem tenha se dado conta do bem que fez ao amigo, naquelas circunstâncias, com tamanha generosidade.

Finalmente fomos dormir um pouco. Acordamos quase meio-dia e resolvemos chamar o Baden para comer qualquer coisa. Ele disse que dormiu muito bem e, melhor ainda, teve um sonho excelente: "Parecia que o João Gilberto tocava e cantava a noite toda para me embalar..."


[extraído das págs. 43-44 do livro “Assessora de encrenca”, Gilda Mattoso]



Ondina, a babá da Marina ou Todos amam Tom Jobim?


Minha filha Marina, então com um ano, ganhou uma nova babá: a jovem Ondina. Era natural de uma localidade na periferia de São Gonçalo, que por sua vez, fazendo parte da Grande Niterói, ficava na periferia da "Cidade Sorriso".
.
Era carnaval e Aninha e Tom me convidaram pra passar o feriado com eles no Poço Fundo, reduto da família Jobim. E lá fomos nós - Marina e eu - para o "carnaval do plateau", como brincávamos.
.
Eu já notara que Ondina era uma cabrocha das boas, com seu radinho sempre sintonizado em samba. Expliquei-lhe:

_ Vamos passar o carnaval no sítio do maestro, grande músico e compositor Tom Jobim. Você conhece, né?

Ela respondeu:

_ Assim de nome, não tô sabendo quem é:

Expliquei então quem era Tom, citei algumas músicas suas, sobretudo as que têm "samba" no título.

Tom, habitualmente, dormia cedo. Todas as pessoas da casa também entravam naquela rotina. Pela manhã, Aninha e eu, com as crianças, saíamos pra passear. Ondina ficava em casa, ajudando nas tarefas domésticas. Segunda de manhã Ondina me pediu "um particular". Disse, em lágrimas, que queria ir embora. Eu, perplexa, perguntei:

_ Mas, Ondina, o que foi que aconteceu?

_ O que aconteceu? Não aconteceu nada, dona Gilda. Alguém diz que é carnaval?

_ É que viemos aqui pra descansar, Ondina.

_ Chega de manhã, dona Gilda, lá vem esse homem que acorda cedo, de pijama e arrastando o chinelo, vai pro piano e desanda a tocar um punhado de música, tudo lento e desanimado, vai me dando uma tristeza... Não se ouve um batuque! Nunca passei um carnaval assim! A senhora faz as minhas contas que eu vou embora.

Quer dizer, Ondina tinha o privilégio de ouvir o genial Tom Jobim ao piano, tocando na casa vazia, quase exclusivamente para ela, mas, parafraseando mestre Ataulfo, Ondina "deveria estar feliz e não sabia".

[extraído das págs. 61-62 do livro “Assessora de encrenca”, Gilda Mattoso]



This page is powered by Blogger. Isn't yours?