quarta-feira, fevereiro 07, 2007

 

TERRA DE NINGUÉM



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Adoro a sensação de limbo, durante a viagem, quando não há definição de espaço, tempo, e o avião permanece praticamente estático, sobrevoando o céu...

Contardo Calligaris* define muito bem isso, na introdução do seu livro de crônicas Terra de ninguém:
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INTRODUÇÃO: TERRA DE NINGUÉM

DUTY FREE

A primeira crônica apresentada começa assim: "No avião de São Paulo a Boston devorei dois livros [...J". É justo que essa seja a abertura do volume. Pois, de tanto viajar, é como se todas as crônicas tivessem sido escritas nesse espaço estranho que existe nos aeroportos e que está fora da jurisdição ordinária.

Na saída, depois de passar pela Polícia Federal, você está onde? Na chegada, antes que seja admitido no país de destino, onde está? Essa terra de ninguém se estende, naturalmente, à própria viagem e ao espaço da aeronave.

Prova disso: é nesse limbo que prospera o duty free, a loja onde é possível vender e comprar sem que os Estados cobrem impostos. É um bom lugar para pensar sem dever nada a ninguém, ou devendo o mínimo possível.

A zona franca do duty free não configura uma nação, nem uma comunidade com a qual seja possível identificar-se. Produz uma certa solidão, mas permite a liberdade de contrariar o conformismo que é próprio a cada identidade nacional. Ou seja, a liberdade de ser sempre, em qualquer alfândega, um pouco estrangeiro.

(...) A terra de ninguém, para mim, não é só geográfica, entre países. Ela é um estado de espírito que vem de longe. (...)

[extraído das págs. 11-12 do livro “Terra de Ninguém – 101 crônicas”, Contardo Calligaris]


*CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica (Université de Provence) e colunista da Folha de S.Paulo. Italiano, hoje vive e clinica entre Nova York e São Paulo. Foi professor de estudos culturais na New School de Nova York e professor convidado de antropologia médica na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Também faz parte do corpo docente do lnstitute for the Study of Violence, em Boston.
Além de escritos clínicos, seus livros em português são Crônicas do Individualismo Cotidiano (Ática, 1996), Hello Brasil! (Escuta, 2000 [6ª ed.]) e A Adolescência (série "Folha Explica", Publifolha, 2001). Tem também vários textos publicados em revistas e antologias, entre elas Ilha Deserta – Livros (Publifolha, 2003).
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Momento ideal pra leitura, contava com o delicioso livro de Gilda Mattoso: “Assessora de encrenca”, pro percurso São Paulo – Buenos Aires. Dele, transcrevo dados da autora, dedicatória & nota:

Gilda Mattoso nasceu em Niterói, no Rio de Janeiro. Estudou Letras na UFF e especializou-se em línguas na Inglaterra, na Itália e na França, países onde viveu entre 1973 e 1978. Na Europa, trabalhou na produção de shows de artistas brasileiros, assessorando' o empresário Franco Fontana. Num desses shows, reencontrou o ídolo de sua vida inteira: Vinicius de Moraes, com quem acabou se casando. Após a morte do companheiro, Gilda ingressou na indústria fonográfica (Ariola e Polygram) e desde 1989, ao lado de Marcus Vinicius dos Santos, mantém em Ipanema um escritório de assessoria de imprensa/relações públicas por onde já passaram praticamente todos os grandes nomes da MPB e alguns da música internacional.


À minha filha Marina, que, muito pequena, perguntada sobre o que queria ser quando crescesse, respondeu de bate-pronto: "Quero ser igual a você, mamãe, assessora de encrenca".

Devo a ela o título deste livro e a descoberta sobre o que é, de verdade, essa profissão que escolhi pra mim, de assessora de imprensa.

À memória de João Francisco Lontra Jobim, afilhado querido que, também pequeno, adorava minhas histórias. Quando, da janela de sua casa no Jardim Botânico, avistava o meu carro chegando, começava a gritar: "Conta, Gilda, conta!"

E a todas as pessoas amigas que, ao me ouvirem contar esses casos, me estimulavam e insistiam: "Gilda, você tem que pôr tudo isso num livro."

Muitos dos casos que coleciono perdem bastante de sua graça quando escritos. Ficam bem mais engraçados contados, com "coreografias" e "sonoplastias". Por isso não foram aproveitados neste livro.

Nota da autora

Gostei da idéia do livro, mas com minha jornada que às vezes parece ter 26 horas, semanas de oito dias e meses de mais de 35 dias, cadê tempo? Ocorreu-me então pedir a um de meus irmãos que fosse digitando os casos que, depois, organizaríamos em formato de livro. Convidei o número dois da irmandade, Luiz Antônio, oficial reformado da Marinha, conhecido em casa como Luizinho, na Marinha como Kid e que eu chamo de Panta (apelido roubado da célebre criação de Chico Anysio, Pantaleão), por sua imaginação fértil, injetando "flores" e "enfeites" nos casos que conta. A calhar para uma empreitada como esta. (...)

Nasci em Niterói, filha temporã - Ângela, a caçula da família, já tinha 9 anos quando cheguei! - de Paulo de Queirós Mattoso, engenheiro ferroviário, e Liddy Kerr Pinheiro de Queirós Mattoso, esposa-e-mãe-tempo-integral.

Fui recebida por seis irmãos (Paulo, Luiz Antônio, Roberto, Sérgio, Lia e Ângela), excitados com a chegada de mais um/uma (ainda não havia o ultra-som, que liquidou com a deliciosa expectativa). Nas últimas semanas que antecederam ao nascimento, os seis e meus pais iniciaram um processo democrático de escolha de nomes. Cada um indicou um nome de menina e outro de menino; todos deram notas a todas as indicações; tabularam; chegaram finalmente aos vencedores: Gisela e Bruno. Logo depois do nascimento, conta Luizinho, dispararam telefonemas e telegramas para parentes e amigos:

"Gisela chegou!"

Dois dias depois, dr. Paulo entrou no quarto e entregou a Liddy a certidão:

- Pronto. Está registrada.

Ela leu e o espanto foi geral: "GILDA?"

O velho, imperturbável:

- E vocês acham que eu ia abrir mão do meu pátrio poder?

Pelo menos aproveitaram-se as iniciais já bordadas... A escolha desse nome foi influência de Gilda, filme com Rita Hayworth e Glen Ford, grande sucesso no mundo todo. (...)


[extraído das págs. 15, 21-22 do livro “Assessora de encrenca”, Gilda Mattoso]


Assisti, no programa “Sem Censura”, da TVE Brasil, entrevista com Gilda, contando vários dos seus causos... divertidíssimos! Ela foi uma das mulheres de Vinícius. Viveu, com ele, seus últimos dias. Destaco, do livro, duas passagens tocantes:
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O generoso João Gilberto e Baden


1980, maio ou junho. Vinicius não estava nada bem. Tentava resistir ao padecimento do grave estado de saúde. Esforçava-se para sair, ver amigos, mas estava cada vez mais difícil, sofrido.

Chegou um convite de João Gilberto para assistirmos à gravação de um especial que ele ia fazer para a Rede Globo, que se chamou João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, da série "Grandes Nomes". Mas no dia Vinicius passou muito mal. Ficou inconsolável.

_ Vá você me representando - disse ele.

Recusei-me. Não podia deixá-lo naquele estado.

_ Não se incomode - disse eu -, depois nós vemos o programa já editado, na televisão.

Ele estava pesaroso:

_ Há tantos anos que não vejo o Joãozinho cantando...

Passaram-se alguns dias. Vinicius recebeu a visita do querido amigo e parceiro Baden Powell. Durante toda a tarde, Baden tocou e os dois cantaram numa alegria de dar gosto. Baden ficou para jantar. Logo depois, caiu uma chuvarada feia, o que nos levou a convencê-lo a não voltar para casa, pois a cidade estaria alagada. Deleitamo-nos com mais violão do soberbo artista. Providenciamos sua instalação no quarto de hóspedes e avisamos a Silvia, sua mulher e minha querida amiga até hoje, que ele só voltaria para casa no dia seguinte, por conta do toró.

Já estávamos também vestidos para dormir quando tocou a campainha. Deviam ser umas 23h. Vinicius atendeu ao interfone.

­_ Sou eu, Miúcha, vocês ainda estão acordados?

Mesmo de pijamas ele respondeu entusiasmado:

_ Tô, Miuchinha, pode entrar.

Quando abrimos a porta entraram Miúcha e João Gilberto com seu violão. João refez para Vinicius o especial todinho. Com várias interrupções para atender a pedidos de Vinicius, "canta essa de novo", "mais uma vez", etc., João pacientemente cantou tudo, mais as muitas repetições. Saiu de nossa casa com o dia amanhecendo. Foi uma beleza. João talvez nem tenha se dado conta do bem que fez ao amigo, naquelas circunstâncias, com tamanha generosidade.

Finalmente fomos dormir um pouco. Acordamos quase meio-dia e resolvemos chamar o Baden para comer qualquer coisa. Ele disse que dormiu muito bem e, melhor ainda, teve um sonho excelente: "Parecia que o João Gilberto tocava e cantava a noite toda para me embalar..."


[extraído das págs. 43-44 do livro “Assessora de encrenca”, Gilda Mattoso]



Ondina, a babá da Marina ou Todos amam Tom Jobim?


Minha filha Marina, então com um ano, ganhou uma nova babá: a jovem Ondina. Era natural de uma localidade na periferia de São Gonçalo, que por sua vez, fazendo parte da Grande Niterói, ficava na periferia da "Cidade Sorriso".
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Era carnaval e Aninha e Tom me convidaram pra passar o feriado com eles no Poço Fundo, reduto da família Jobim. E lá fomos nós - Marina e eu - para o "carnaval do plateau", como brincávamos.
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Eu já notara que Ondina era uma cabrocha das boas, com seu radinho sempre sintonizado em samba. Expliquei-lhe:

_ Vamos passar o carnaval no sítio do maestro, grande músico e compositor Tom Jobim. Você conhece, né?

Ela respondeu:

_ Assim de nome, não tô sabendo quem é:

Expliquei então quem era Tom, citei algumas músicas suas, sobretudo as que têm "samba" no título.

Tom, habitualmente, dormia cedo. Todas as pessoas da casa também entravam naquela rotina. Pela manhã, Aninha e eu, com as crianças, saíamos pra passear. Ondina ficava em casa, ajudando nas tarefas domésticas. Segunda de manhã Ondina me pediu "um particular". Disse, em lágrimas, que queria ir embora. Eu, perplexa, perguntei:

_ Mas, Ondina, o que foi que aconteceu?

_ O que aconteceu? Não aconteceu nada, dona Gilda. Alguém diz que é carnaval?

_ É que viemos aqui pra descansar, Ondina.

_ Chega de manhã, dona Gilda, lá vem esse homem que acorda cedo, de pijama e arrastando o chinelo, vai pro piano e desanda a tocar um punhado de música, tudo lento e desanimado, vai me dando uma tristeza... Não se ouve um batuque! Nunca passei um carnaval assim! A senhora faz as minhas contas que eu vou embora.

Quer dizer, Ondina tinha o privilégio de ouvir o genial Tom Jobim ao piano, tocando na casa vazia, quase exclusivamente para ela, mas, parafraseando mestre Ataulfo, Ondina "deveria estar feliz e não sabia".

[extraído das págs. 61-62 do livro “Assessora de encrenca”, Gilda Mattoso]



Comments:
chegou com força total???
Já volto pra ler, beijos e saudades.
 
Já li e adorei. beijos.
 
Estava brigando com o Blogger, que tentava me impor a mudança pro novo modelo, não me deixando postar no antigo! Pode???

Que bom que gostou...
bjo,
Clé
 
Geralmente, não me interesso muito pelo Duty Free Shop... Mas, dessa vez, enfeitiçada que estou pelo meu ipod, não pude resistir... :-)
 
A gente compra mais bebida [whisky, licor de chocolate (Mozart), de pêssego, Bailey's, creme de cassis, Amaretto...) e, eventualmente, chocolate. Cecília, minha filha, curte os setores de cosméticos & perfumes.
 
Tá bem, confesso, não resisto a uns creminhos da Victoria's Secret. ;-)
 
Eu sei, li no seu blog... Cecília tb curte!
 
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