segunda-feira, janeiro 29, 2007
Buenos Aires, destino
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Deixarei a voz de Adriana Nano, aqui no blog, cantando 2 belas canções, falando da cidade... De uma delas consegui a letra [Siempre se vuelve a Buenos Aires, de Blázquez & Piazzolla], da outra não [Buenos Aires, destino, de Borges & Jairo].
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Siempre se vuelve a Buenos Aires
Eladia Blázquez y Astor Piazzolla
Esta ciudad está embrujada, sin saber,
por el hechizo cautivame de volver.
No sé si para bien, no sé si para mal,
volver tiene la magia de un ritual.
Yo soy de aqui, de otro lugar no puedo ser,
me reconozco en la costumbre de volver
a reencontrarme en mí, a valorar después
las cosas que perdi... ¡La vida que se fue!
Llegué y casi estoy a pumo de partir...,
sintiendo que me voy y no me quiero ir.
Doblé Ia esquina de mí misma
[para comprender
que nadie escapa al faralismo de su propio ser.
Y estoy pisando tus baldosas,
floreciéndome las rosas por volver.
Esta ciudad no sé si existe, si es así
o algún poeta la ha inventado para mí.
Es como una mujer, profética y fatal
pidiendo el sacrificio hasta eI final.
Pero también tiene otra voz, tiene otra piei
y el gesto abierto de la mesa de café,
el sentimiemo en flor, la mano fraternal
y el rostro del amor en cada umbral.
Ya sé que no es casual haber nacido aquí
y ser un poco así... triste y sentimental.
Ya sé que no es casual que un fueye por los dos
nos cante el funeral para decir... adiós.
Decirte adiós a vos... ya ves, no puede ser
si siempre y siempre sos
[una razón para volver.
Siempre se vuelve a Buenos Aires, a buscar
esa manera melancólica de amar...
Lo sabe sólo aquel que tuvo que vivir
enfermo de nostalgia...
[casi a punto de morir.
"Yentró a Buenos Aires buscando su perfil más agudo entre sus
barcos, sus bandoneones y los hogares limpios del pueblo donde
el Tango abre en el crepúsculo sus mejores abanicos de lágrimas."
Federico Garcia Lorca, Bs. As., 1933
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sexta-feira, janeiro 26, 2007
Através do vidro
Para Ruy Castro,
Apenas dez anos depois
Folha de São Paulo
São Paulo, segunda-feira, 04 de junho de 2001
CARLOS HEITOR CONY
"Através do Vidro"
RIO DE JANEIRO - Novo livro de Heloisa Seixas que a editora Record está lançando na coleção "Amores Extremos". Uma história curta, mas de imensa densidade, a ação limitada pelo amor extremo de uma mulher talvez por ela própria, mas subordinada a um homem quase sem rosto, mais uma voz, um cheiro.
Acompanho a carreira de Heloisa com interesse, desde os primeiros contos de "Pente de Vênus" (1995), considerados uma revelação pela linguagem e pelo conteúdo, contos marcados pelo assombro, o território mítico que importa, que marca a diferença entre a literatura e o jornalismo, a vida interior e a realidade banal.
Em "Através do Vidro", ela dá um show de intimismo, tendo como cenário, por assim dizer único, o amor e o desejo, que deixam de ser a "cosa mentale" para se materializarem num corpo de mulher madura que busca e é buscada, cúmplice e vítima.
"Somos todos loucos quando sonhamos." Já se deve falar em um estilo à Heloisa Seixas. Até certo ponto, ela desdenha a ação, que foi absorvida pelos atuais textos que se destinam ao cinema ou a telenovelas. Usa apenas palavras, letras, literatura em si.
Um exemplo: "Em torno, a noite estava morta. Como um rouxinol que oferece o próprio sangue em sacrifício para fazer nascer uma rosa, a noite se desintegrara, engolindo-se a si mesma".
Nenhuma pincelada fora do chão que ela domina: a mulher cabeça, tronco e membros, a mulher presente no passado, o passado que anuncia o futuro e se fragmenta no presente.
Pode parecer complicado, mas o veio que Heloisa Seixas encontrou é dolorosamente sensual, mergulha na alma feminina com impudor sem fronteiras. Passarão o céu e terra, mas não passarão o amor e o desejo, nus, através do vidro que separa a loucura do sonho, o sonho da loucura.
ACHO QUE LI EÇA DE QUEIRÓS CEDO DEMAIS. E COME-
CEI LOGO COM O primo Basílio, QUE TANTO ESCÂNDA-
LO PROVOCOU EM SUA ÉPOCA. NÃO ERA UM LIVRO PARA
CRIANÇAS. TALVEZ POR ISSO - TERIA EU 11 ANOS, NO
MÁXIMO - ALGUMA COISA SE TRANSFORMOU, NO MUN-
DO E EM MIM, DEPOIS DAQUELA LEITURA.
Tudo começou num verão emburrado. Sendo de família baiana, meus verões de infância e adolescência se dividiam entre aqueles passados no Rio e os passados na Bahia - em Salvador, no sobrado de meus avós na avenida Sete, ou no interior, num sítio em Feira Velha (que depois passaria a se chamar Dias d’Ávila). Aquele era um verão baiano, mas, ao contrário dos anteriores, não era feliz. Era, repito, um verão emburrado.
As razões me são meio difusas. Alguma festa que na certa estava sendo programada entre as amigas cariocas (e que eu perderia), o fato de ter viajado sem meu irmão (que ficara "em segunda época", isto é, fora reprovado nas provas finais e teria uma segunda chance em janeiro), a ausência de meus primos Raulzito e Plininho (que estavam fora de Salvador por algum motivo). Tudo conspirava contra as minhas férias. E ainda por cima choveu.
Foi assim que, uma tarde, me vi sozinha na casa dos meus tios, no bairro da Graça, com os cotovelos fincados no parapeito de mármore da janela, olhando desolada para o campo de futebol que havia do outro lado da rua. Estava vazio e, em meio à chuva, sua grama rala e cheia de falhas era uma espécie de alegoria do fim de ano perdido. Definitivamente, eu estava no lugar errado, na hora errada.
E foi assim que, virando para trás com um suspiro, olhei para as paredes do gabinete de trabalho do meu tio, forradas de alto a baixo de volumes encadernados. Nunca tinha olhado direito para aqueles livros. Já gostava de ler - hábito que me foi incutido por meu pai e meus avós paternos desde que eu era muito pequena-, mas por algum motivo, provavelmente a austeridade de meu tio, achava que naquela biblioteca só havia livros técnicos, de direito ou contabilidade. Só agora, premida pela desolação, observava pela primeira vez com mais cuidado as lombadas coloridas. Cheguei mais perto. E, quase ao acaso, tirei de uma prateleira alta (tive de ficar na pontinha dos pés) O primo Basílio. Sentei numa poltrona e comecei a folheá-Io.
Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar.
Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
_ Tu não te vais vestir, Luísa?
_ Logo.
Ficara sentada à mesa, a ler o Diário de Notícias.
Roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras: com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações escarlates.
Num instante, ali estava, diante de mim como se de carne e osso, aquela mulher. Luísa. Era como se eu a visse. E, por alguma razão desconhecida (uma semelhança no nome, talvez?), senti-me instantaneamente próxima dela. Continuei a leitura:
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteira da alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo; fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
Pronto. Dera-se a mágica. Nem mais verão emburrado, nem Bahia, nem chuva ou casa dos meus tios - nada. Eu fora transportada. Estava lá, sentada naquela sala de um Portugal onírico, olhando a cena e sentindo seus cheiros. Que importância tinha não saber o que era esteirada, quebreira, bambinelas, cretone, chávenas? Nenhuma. Eu entendia tudo. Podia ouvir o zumbido das moscas. Eça estendera sua mão impalpável e me levara para o mundo de Luísa.
Agora preciso dizer que tenho uma característica: falo sozinha. Sempre falei. Crio personagens e converso com eles. Promovo diálogos acalorados, discussões, debates. Faço apostas. Perco. Às vezes ganho. E - sobretudo - conto histórias.
Faço isso o tempo todo, a vida toda. E, se esses interlocutores etéreos existem para mim até hoje, mais absoluta ainda era sua presença no meu tempo de criança, época em que, tradicionalmente, temos amigos imaginários. Pois foi assim que Luísa se tornou um deles. Luísa, a Luísa do Primo Basilio, foi minha amiga imaginária. Uma amiga muito chegada, de todas as horas, com quem eu conversava muito.
E se você acha meio esnobe uma menina de 11 anos, mal saída dos cueiros, ter como amiga imaginária uma personagem de Eça de Queirós, vou logo explicando que não é nada disso. Que ela me impressionou, sem dúvida. Mas a razão pela qual eu a chamei para junto de mim foi, digamos, muito menos nobre.
Ocorre que nessa época, quando eu estava entrando na adolescência, passava na televisão o seriado Jornada nas estrelas, aquele do dr. Spock, com suas orelhas pontudas. E eu me apaixonei pelo capitão Kirk, o comandante da nave Enterprise. Ele se tornou meu amigo imaginário. Ficamos íntimos. Quando eu ia, no banco de trás do fusca do meu pai, rumo a nosso sítio em Jacarepaguá, não via direito o caminho, nem sentia as curvas do Joá: estava sempre longe dali, conversando mentalmente com o capitão Kirk. E não era uma conversa fácil. Porque Kirk, vindo do futuro, me esnobava o tempo todo. Torcia o nariz para aquela coisa tosca que era o carro do meu pai, e para todos aqueles automóveis que subiam o Joá com o maior esforço, o motor se desfazendo em estrondos. Kirk ria de mim, dizendo que para ele, acostumado ao teletransporte, aquilo era uma barbaridade, coisa da Idade da Pedra. E eu ficava danada da vida.
Até que um dia resolvi me vingar. Descontar em cima de alguém. Para isso, precisava escolher uma personagem do passado, alguém a quem pudesse mostrar todas as maravilhas do mundo moderno, alguém a quem pudesse esnobar da mesma forma que o capitão Kirk fazia comigo. Claro, você adivinhou - eu escolhi Luísa.
Desse dia em diante, andávamos juntos, os três. Toda vez que Kirk me dizia uma pilhéria, eu me virava para Luísa e, com um sorrisinho maroto, mostrava alguma coisa para ela: você está vendo aquilo ali? É uma televisão. Um móvel com uma tela onde as imagens se movem. E sabe que imagens são essas? São das pessoas que estão representando num palco, a quilômetros daqui. Essas imagens entram por um fio e viajam até nossa sala. Você não acredita? Ah, tolinha, isso é porque você pertence a um outro tempo...
Misturar Eça de Queirós com Jornada nas estrelas dá bem a medida do quão menina eu era quando tudo isso aconteceu. Mas a verdade é que até hoje me pergunto: por que Luísa?
Poderia ter sido qualquer personagem do passado, até mesmo uma pessoa criada por mim. Mas foi ela. E o que havia naquela mulher loura, de olhos castanhos, com seus braços roliços e as mãos muito brancas onde se estriavam pequenas veias azuis? O que havia nela que a fez imprimir-se em mim com tanta força, a ponto de se tornar tão íntima, tão irmã daquela menina de 11 anos?
Acho que hoje eu sei. Luísa, sua sensualidade e seu horror, o cínico Basílio, a perversa Juliana, o doce Jorge, o leal Sebastião, até o conselheiro Acácio, que dispensa adjetivos, por já ser um - todos eles me pertencem. São meus, eternamente. Foram impressos dentro de mim de forma indelével, com a tinta perene de Eça. E me acompanham. Porque foram eles - não só Luísa, mas todos eles - que me fizeram refletir pela primeira vez sobre preconceitos, pressões sociais, culpa. E que, acima de tudo, me ensinaram o significado da palavra sedução.
Heloisa Seixas
[extraído das págs. 79-85, do livro “Dez livros que abalaram meu mundo”,
Organizadores: Martha Ribas & Julio Silveira, Casa da Palavra, RJ, 2006]
Folha de São Paulo
São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005
CARLOS HEITOR CONY
Obras-primas
RIO DE JANEIRO - A editora Record e a escritora Heloísa Seixas realizaram um dos meus sonhos: ver em livro alguns dos trabalhos publicados na revista "Manchete", durante cinco anos, de 1972 a 1977, sob o título, instigante é certo, mas errado, "As obras-primas que poucos leram".
Errado porque na relação aparecem livros mais do que lidos, como "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Os Maias", "O Sol também se Levanta" e outros. O título, dado por Justino Martins, é apelativo, apenas isso. A finalidade da série era divulgar alguns dos livros mais importantes da literatura universal.
Havia um esquema para cada artigo: a biografia do autor; a história contada ou o tema abordado em cada livro; um resumo crítico da obra. Foram mais de 200 artigos assinados por autores de peso: Antônio Houaiss, Paulo Mendes Campos, Ledo Ivo, Ruy Castro, R. Magalhães Jr., Josué Montello, Joel Silveira, José Lino Grunewald e, principalmente, Otto Maria Carpeaux, campeão absoluto da série.
Aliás, foram as últimas colaborações do grande ensaísta para a imprensa brasileira. Seus últimos artigos, escritos pouco antes de sua morte, foram de caráter autobiográfico, que tive a ousadia de exigir dele e a alegria de publicar.
A seleção feita por Heloísa é de apenas 70 obras, e a editora não teve acesso ao material iconográfico que acompanhava cada artigo. Uma pena. Sobretudo quando a obra em questão pertencia ao fosso dos "que poucos leram", como "Bubu de Montparnasse", de Charles-Louis Philippe, ou "Viagem ao Fim da Noite", de Louis-Ferdinand Céline.
Espero que a Record e Heloísa completem a série, dando preferência sobretudo aos livros que justificam o título dado pelo Justino, como "O Grande Meaulne", de Alain Fournier, "Os Ratos", de Dionélio Machado, e tantos outros. Mesmo assim, como está, cumpre um papel que transcende a divulgação do mundo das letras, mas é, em si mesmo, uma referência literária.
http://www.releituras.com/hseixas_menu.asp
http://www.desconcertos.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=85&Itemid=28
http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3327&bd=2&pg=1&lg=
http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-12-16/mat_24851.htm
quinta-feira, janeiro 25, 2007
O caçador de pipas (II)
DOIS
QUANDO ÉRAMOS CRIANÇAS, HASSAN e eu trepávamos nos choupos da entrada da casa de meu pai e ficávamos chateando os vizinhos, usando um caco de espelho para mandar reflexos de sol para as suas casas. Sentávamos um defronte do outro, nos galhos mais altos, com os pés descalços pendurados no ar e os bolsos das calças cheios de amoras e nozes secas. Ficávamos nos alternando com o espelho enquanto comíamos amoras, jogando os frutos um no outro, entre risinhos e gargalhadas. Ainda posso ver Hassan encarapitado naquela árvore, com o reflexo do sol faiscando por entre as folhas no seu rosto quase perfeitamente redondo, um rosto de boneca chinesa talhado em madeira de lei: o nariz grande e chato, os olhos puxados e oblíquos como folhas de bambu, uns olhos que, dependendo da luz, pareciam dourados, verdes e até cor de safira. Ainda posso ver as suas orelhas miúdas, dobradas feito conchas, e a protuberância do queixo, um apêndice de carne que parecia ter sido acrescentado como simples lembrança de última hora. E o lábio fendido, bem naquela linha do meio, em um ponto em que a ferramenta escorregou, ou, quem sabe, foi apenas porque o artesão das bonecas chinesas já estava cansado e se descuidou.
Às vezes, lá no alto daquelas árvores, dizia para Hassan pegar o estilingue e atirar nozes no pastor alemão caolho do vizinho. Ele não queria, mas, se eu pedisse, pedisse de verdade, ele não me diria não. Hassan nunca me negava nada. E era fera com a atiradeira. Seu pai, Ali, sempre nos apanhava e ficava furioso, ou tão furioso quanto possível, no caso de alguém gentil como Ali. Com o dedo em riste, mandava que descêssemos da árvore. Pegava o espelho e repetia o que sua mãe lhe dizia: que o diabo também faz os espelhos reluzirem, e faz isso para distrair os muçulmanos durante as orações.
_ E ri, depois que já conseguiu o que queria – acrescentava ele invariavelmente, olhando para o filho com ar severo.
_ Está bem, pai – murmurava Hassan, fitando os próprios pés.
Mas ele nunca me entregava. Nunca disse que tanto o espelho quanto as nozes atiradas no cachorro do vizinho tinham sido idéia minha.
Os choupos margeavam o caminho de tijolos vermelhos que levava a um portão de duas folhas, todo feito de ferro fundido. Por seu turno, este se abria para a rua que dava acesso à propriedade de meu pai. A casa ficava à esquerda, e tinha um quintal nos fundos.
Todos eram unânimes em dizer que meu pai, o meu baba, tinha construído a casa mais bonita do distrito de Wazir Akbar Khan, um bairro novo e rico ao norte de Cabul. Havia até quem dissesse que era a casa mais bonita de toda a cidade. Uma ampla alameda ladeada por roseiras conduzia à casa espaçosa, com piso de mármore e janelas enormes. Intrincados mosaicos de ladrilhos, que baba escolheu a dedo em Isfahan, recobriam o chão dos quatro banheiros. Tapeçarias com fios dourados, que baba comprou em Calcutá, revestiam as paredes. E um lustre de cristal pendia do teto abobadado.
Meu quarto ficava no andar de cima, junto com o de meu pai e o seu escritório, também conhecido como "sala de fumar", eternamente cheirando a tabaco e canela. Era lá que baba e seus amigos se reclinavam nas poltronas de couro preto depois que Ali tinha acabado de servir o jantar.
Todos enchiam os cachimbos – só que meu pai sempre dizia "engordar o cachimbo" – e conversavam sobre os seus três assuntos favoritos: política, negócios, futebol. Às vezes eu perguntava se podia ir sentar lá, junto com eles, mas baba ficava parado na porta.
_ Agora, vá – dizia ele. – Isso é coisa de gente grande. Por que não vai ler um daqueles seus livros? - Fechava a porta e me deixava imaginando por que, com ele, tudo era sempre coisa de gente grande. Sentava junto da porta, abraçando os joelhos contra o peito. Algumas vezes ficava sentado ali uma hora, outras vezes, duas, ouvindo as conversas e os risos deles.
(...) Na parte sul do jardim, à sombra de um pé de nêspera, ficava a casa dos empregados, uma casinha modesta onde Hassan morava com o pai.
Foi ali, naquele pequeno casebre, que Hassan nasceu no inverno de 1964, um ano depois que minha mãe morreu durante o meu parto.
Nos dezoito anos que vivi em Cabul, só entrei na casa de Ali e Hassan umas poucas vezes. Quando o sol começava a se pôr atrás das colinas, e tínhamos acabado de brincar, nos separávamos. Eu passava pelas roseiras a caminho da mansão de baba, Hassan ia para a casinha de pau-a-pique onde nasceu e morou por toda a vida. Lembro que ela era minúscula, limpa e fracamente iluminada por dois ou três lampiões de querosene. Havia dois colchões, em lados opostos da sala, um velho tapete Herati, com uns rasgões no meio, um tamborete de três pernas e, em um canto, uma mesa de madeira onde Hassan fazia os seus desenhos. As paredes eram nuas, exceto por uma única tapeçaria bordada com contas que formavam as palavras Allah-u-akbar. Um presente que baba trouxe para Ali de uma de suas viagens a Mashad.
Foi nesse casebre que Sanaubar deu à luz Hassan, em um dia frio do inverno de 1964. Enquanto minha mãe morreu de hemorragia durante o parto, Hassan perdeu a sua menos de uma semana depois de nascer. E para um destino que a maioria dos afegãos considera pior que a morte: ela fugiu com uma trupe de cantores e dançarinos ambulantes.
Hassan nunca falou da mãe, como se ela jamais tivesse existido. Sempre me perguntei se sonharia com ela, se tentaria saber que aparência tinha, por onde andaria. Ficava imaginando se gostaria de conhecê-la. Teria saudade dela, como eu tinha da mãe que não conheci?
(...) tanto Ali quanto Hassan tinham os traços mongolóides característicos dos hazaras. Durante anos, isso foi tudo o que soube a respeito desse povo: que descendiam dos mongóis e eram parecidos com os chineses. Os livros didáticos raramente os mencionavam e só se referiam às suas origens de passagem. Até que um dia, quando estava bisbilhotando as coisas de baba no seu escritório, encontrei um dos velhos livros de história de minha mãe. O autor era um iraniano chamado Khorami. Soprei a poeira que o cobria, levei-o comigo para a cama naquela noite e fiquei espantadíssimo ao ver um capítulo inteiro sobre a história dos hazaras. Um capítulo inteiro dedicado ao povo de Hassan! Foi aí que fiquei sabendo que meu povo, os pashtuns, tinha perseguido e oprimido os hazaras. Li que estes tentaram se rebelar contra os pashtuns no século XIX, mas foram "dominados com violência indescritível". O livro dizia ainda que meu povo matou os hazaras, expulsou-os das suas terras, queimou as suas casas e vendeu as suas mulheres como escravas. Dizia também que essa opressão de um povo pelo outro se deveu em parte ao fato de os pashtuns serem muçulmanos sunni, ao passo que os hazaras são shi’a. O livro falava de muitas coisas que eu não sabia, de coisas que os professores não mencionavam. Coisas que baba também não mencionava. Por outro lado, falava de coisas que eu sabia, como, por exemplo, que as pessoas chamavam os hazaras de "comedores de camundongos", "nariz achatado", "burros de carga". Já tinha ouvido alguns meninos da vizinhança gritarem essas palavras para Hassan.
(...) Depois repetia que as pessoas que mamavam no mesmo peito eram como irmãs, ligadas por uma espécie de parentesco que nem mesmo o tempo poderia desfazer.
Hassan e eu mamamos no mesmo peito. Demos os nossos primeiros passos na mesma grama do mesmo quintal. E, sob o mesmo teto, dissemos nossas primeiras palavras.
A minha foi baba.
A dele, Amir. O meu nome.
Olhando para trás, agora, fico pensando que os alicerces do que aconteceu no inverno de 1975 – e de tudo o que veio depois – já estavam contidos nessas primeiras palavras.
[trecho extraído das págs. 11-19, do livro “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini]
“(...) Durante o ano letivo, tínhamos uma rotina diária. Enquanto eu me levantava a duras penas e ia me arrastando até o banheiro, Hassan já tinha se lavado, rezado as namaz matinais junto com Ali e preparado meu café da manhã: chá preto quente, com três torrões de açúcar, e uma fatia de naan torrado com minha geléia favorita, de cereja ácida, tudo isso muito bem arrumado na mesa da sala de jantar. Enquanto eu comia e reclamava do dever de casa, Hassan fazia minha cama, engraxava meus sapatos, passava as roupas que eu ia usar naquele dia, arrumava meu material escolar. Eu o ouvia cantando no saguão enquanto passava roupa, entoando velhas cantigas hazara com sua voz nasalada. Então, baba e eu saíamos no seu Ford Mustang preto - um carro que atraía olhares invejosos por onde quer que passasse, já que era o mesmo modelo que Steve McQueen dirigia em Bullit, filme que ficou seis meses em cartaz em um cinema de Cabul. Hassan ficava em casa e ajudava Ali nas tarefas diárias: lavar à mão toda a roupa suja e estendê-Ia no quintal para secar, varrer a casa, ir ao bazaar para comprar naan fresco, marinar a carne para o jantar, regar o gramado.
Depois da aula, Hassan e eu passávamos a mão em um livro e corríamos para uma colina arredondada que ficava bem ao norte da propriedade de meu pai em Wazir Akbar Khan. Havia ali um velho cemitério abandonado, com várias fileiras de lápides com as inscrições apagadas e muito mato impedindo a passagem pelas aléias. Anos e anos de chuva e neve tinham enferrujado o portão de grade e deixado a mureta de pedras claras em ruínas. Perto da entrada do cemitério havia um pé de romã. Em um dia de verão, usei uma das facas de cozinha de Ali para gravar nossos nomes naquela árvore: "Amir e Hassan, sultões de Cabul." Essas palavras serviram para oficializar o fato: a árvore era nossa. Depois da aula, Hassan e eu trepávamos em seus galhos e apanhávamos as romãs encarnadas. Depois de comer as frutas e limpar as mãos na grama, eu lia para Hassan.
Sentado ali, com as pernas cruzadas e o jogo de sol e sombra da folhagem do pé de romã no rosto, Hassan arrancava distraído pedacinhos de grama do chão enquanto eu ia lendo as histórias que ele não podia ler sozinho. Pois Hassan cresceria analfabeto como Ali e a maioria dos hazaras: isto já estava decidido desde o minuto em que nasceu, talvez até mesmo desde o instante em que foi concebido no útero nada receptivo de Sanaubar – afinal, para que um criado precisaria da palavra escrita? Mas, apesar de ser analfabeto, ou quem sabe até por isso mesmo, Hassan era atraído pelo mistério das palavras, seduzido por um mundo secreto cujo acesso lhe era vedado. Lia para ele poemas e histórias, às vezes enigmas – embora sempre parasse de ler estes últimos quando percebia que ele tinha muito mais facilidade que eu para decifrá-los. Lia então coisas menos arriscadas, como as desventuras do vaidoso mulá Nasruddin e seu burro. Passávamos horas sentados debaixo daquela árvore, até que o sol começasse a se pôr, e, mesmo assim, Hassan insistia dizendo que ainda havia luz suficiente para eu ler uma outra história, um outro capítulo. (...)”
[trecho extraído das págs. 34-35, do livro “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini]
SEIS
INVERNO.
Todo ano, no primeiro dia em que começa a nevar, faço a mesma coisa: saio de casa bem cedo, pela manhã, ainda de pijama, apertando os braços contra o peito para enfrentar o frio. Vejo a entrada, o carro de meu pai, o muro, as árvores, os telhados e as colinas cobertos por mais de um palmo de neve. Sorrio. O céu está limpo e azul, e tudo é tão branco que os meus olhos chegam a arder. Enfio um punhado de neve na boca, fico ouvindo aquele silêncio abafado que só é rompido pelos grasnidos dos corvos. Desço os degraus, descalço, e chamo Hassan para vir ver também.
O inverno era a estação favorita de todas as crianças de Cabul, pelo menos daquelas cujos pais tinham condições de comprar um bom aquecedor de ferro. E o motivo era simples: as escolas fechavam durante a estação gelada. Para mim, a chegada do inverno significava não ter que fazer longas divisões nem dar o nome da capital da Bulgária, e o princípio de um período de três meses jogando cartas com Hassan perto da lareira, indo ver filmes russos no cinema Park na terça-feira de manhã, comer qurma de nabo doce com arroz na hora do almoço, depois de uma manhã inteira fazendo bonecos de neve.
E pipas, é claro. Soltar pipas. E correr para apanhá-las. (...)
Adorava o inverno em Cabul. Adorava por causa do suave tamborilar na minha janela à noite, quando estava nevando; por causa do barulhinho da neve fresca debaixo das minhas galochas pretas; do calor do fogareiro de ferro fundido enquanto o vento assobiava pelos quintais e pelas ruas. Mas principalmente porque, quando as árvores ficavam congeladas e a neve recobria as estradas, o gelo entre mim e baba diminuía um pouco. E a razão disso eram as pipas. Baba e eu morávamos na mesma casa, mas vivíamos em esferas de existência completamente diferentes. As pipas eram a minúscula área de interseção que havia entre essas esferas.
TODOS OS BAIRROS DE CABUL SEMPRE organizavam campeonatos de pipas no inverno. E se você fosse um menino de Cabul, o dia do torneio era incontestavelmente o ponto alto da estação fria. Nunca conseguia dormir na véspera da competição. Rolava na cama, fazia animais de sombra na parede, chegava até a ir sentar na varanda no escuro, enrolado em um cobertor. Eu me sentia como um soldado tentando dormir na trincheira na véspera de uma batalha importante. E não era muito diferente, não. Em Cabul, empinar pipas era um pouco como ir para a guerra.
Como em toda guerra, você precisa se preparar para uma batalha. Durante algum tempo, Hassan e eu fizemos as nossas próprias pipas. Passávamos o outono economizando dinheiro da mesada e guardávamos essas economias em um cavalinho de porcelana que meu pai trouxe uma vez de uma viagem a Herat. Quando começavam a soprar os ventos do inverno e a neve começava a cair em quantidade razoável, abríamos o fecho que ficava debaixo da barriga do cavalo. Corríamos para o bazaar e comprávamos bambu, cola, barbante e papel de seda. Passávamos horas a fio aparando o bambu para a vareta central e as outras duas que se cruzavam para fazer a armação, cortando o papel finíssimo, indispensável para a pipa debicar e voltar a subir com facilidade. E, é claro, tínhamos que fazer também a nossa própria linha, ou tar. Se a pipa era o revólver, o tar, o fio cortante recoberto de cerol, era a munição. Íamos para o quintal e enchíamos uns duzentos metros de barbante com aquela mistura de cola e vidro moído. Depois, pendurávamos o barbante entre as árvores para secar. No dia seguinte, enrolávamos a linha pronta para a guerra em um carretel de madeira. Quando a neve derretia e começavam a cair as chuvas da primavera, todos os meninos de Cabul ostentavam nos dedos talhos horizontais, traços reveladores de um inverno inteiro passado nessas batalhas. Lembro de como os meus colegas e eu nos reuníamos para comparar as cicatrizes de guerra no primeiro dia de aula. Os cortes eram doloridos e levavam umas duas semanas para sarar, mas isso não tinha a menor importância. Aquelas eram as marcas da estação que eu tanto amava e que, mais uma vez, tinha acabado depressa demais. Então, o monitor da turma soava o apito e, em fila, todos nos dirigíamos para a sala de aula, já sonhando com a volta do inverno e, no entanto, indo ao encontro do espectro de mais um longo ano letivo.
Logo se viu, porém, que Hassan e eu éramos muito melhores empinando pipas do que tentando fabricá-Ias. Uma falha ou outra nosso projeto sempre acabava determinando o seu destino. Baba começou então a nos levar à loja de Saifo para comprar nossas pipas. Saifo era um homem quase cego, moochi de profissão – que ganhava a vida consertando sapatos. Mas também era o fabricante de pipas mais famoso da cidade, com a sua minúscula lojinha na Jadeh Maywand, a rua mais movimentada ao sul das margens lamacentas do rio Cabul. Lembro que as pessoas tinham de se agachar para entrar naquele cubículo do tamanho de uma cela de prisão, e, depois, levantar a tampa de um alçapão para descer alguns degraus de madeira que levavam ao porão úmido onde Saifo guardava as tão cobiçadas pipas. Baba comprava para cada um de nós três pipas idênticas e carretéis de linha com cerol. Se eu mudasse de idéia e resolvesse pedir uma pipa maior e mais extravagante, ele a compraria, mas compraria a mesma também para Hassan. Às vezes gostaria que não agisse assim. Que me deixasse ser o seu favorito.
O campeonato de pipas era uma velha tradição de inverno no Afeganistão. O torneio começava de manhã cedo e só acabava quando a pipa vencedora fosse a única ainda voando no céu - lembro de uma vez que a competição terminou quando já era noite fechada. As pessoas se amontoavam pelas calçadas e pelos telhados, torcendo pelos filhos. As ruas ficavam repletas de competidores dando sacudidelas e puxões nas linhas, com os olhos fixos no céu, tentando se pôr em condições de cortar a pipa do adversário. Todo pipeiro tinha um assistente - no meu caso, Hassan -, que ficava segurando o carretel e controlando a linha.
(...) As regras eram simples: não havia regras. Empine a sua pipa. Corte a dos adversários. E boa sorte.
Só que isso não era tudo. A brincadeira começava mesmo depois que uma pipa era cortada. Era aí que entravam em cena os caçadores de pipas, aquelas crianças que corriam atrás das pipas levadas pelo vento, até que elas começassem a rodopiar e acabassem caindo no quintal de alguém, em uma árvore ou em cima de um telhado. Essa perseguição podia se tornar bastante feroz; bandos de meninos saíam correndo desabalados pelas ruas, uns empurrando os outros como aquela gente da Espanha sobre quem li alguma coisa, aqueles que correm dos touros. Uma vez, um garoto da vizinhança subiu em um pinheiro para apanhar uma pipa. O galho quebrou com o seu peso e ele caiu de mais de dez metros de altura. Quebrou a espinha e nunca mais voltou a andar. Mas caiu segurando a pipa. E quando um desses caçadores põe a mão em uma pipa, ninguém pode tirá-Ia dele. Isso não é uma regra. É o costume.
Para eles, o prêmio mais cobiçado era a última pipa que caía em um campeonato de inverno. Era como um troféu, algo a ser posto em um lugar de destaque e exibido para as visitas. Quando o céu se esvaziava, e sobravam apenas as duas últimas pipas, todos aqueles caçadores se preparavam para tentar conquistar aquele prêmio. Procuravam se posicionar de jeito a estarem prontos para a largada. Músculos tensos, prestes a disparar. Pescoços espichados. Olhos apertados. Surgiam as brigas. E, quando a última pipa era cortada, era um deus-nos-acuda.
Ao longo dos anos, vi milhares de garotos correrem atrás de pipas. Mas Hassan foi de longe o melhor que jamais vi. Era impressionante como ele percebia onde a pipa poderia ir parar antes mesmo que ela começasse a cair, como se tivesse uma espécie de bússola interior. (...)
[trecho extraído das págs. 54-58, do livro “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini]
O OBJETO VEIO EMBRULHADO NUM PAPEL VERDE ES-
TAMPADO DE MOTIVOS INFANTIS, CREIO QUE DE UM
URSINHO TOCANDO UM TAMBOR. MUITO JUSTO. ERA
UM PRESENTE DE ANIVERSÁRIO PARA UMA CRIANÇA
QUE FAZIA 5 ANOS.
O objeto era um livro. O garoto o desembrulhou, contemplou aquele volume vermelho, de capa dura, cheio de páginas impressas com texto e outras ilustradas. Por coincidência, o menino tinha à mão ou no bolso um lápis de cor, também vermelho. Abriu o livro e escreveu logo na primeira página: "Ruy - 5".
A pessoa que lhe dera o presente, uma mulher, talvez uma amiga de sua mãe, comentou: "Ih, já começou a rabiscar o livro!".
Mas ele não o rabiscou mais. Depositou o livro na cama junto com os outros presentes e só o retomou depois que a festa de aniversário acabou. O título na capa, ele o leu com alguma facilidade: Alice no país das maravilhas. Para as outras informações, que constavam do frontispício, ele não deu muita importância na hora:
"Lewis Carroll. Tradução e adaptação de Monteiro Lobato. Companhia Editora Nacional". Sentou-se, cruzou as pernas e abriu o livro na página 11, onde começava a história.
Nunca mais foi o mesmo menino.
Mais de cinqüenta anos depois, posso manusear, folhear e até reler esse livro. Para dizer a verdade, ele está à minha frente neste momento. Naturalmente, não é o exemplar original, que ganhei naquele remoto dia de fevereiro de 1953 - este se perdeu na adolescência ou ficou para trás em alguma mudança. Mas, há tempos, achei outro, da mesma fornada, com a capa e suas 124 páginas em perfeito estado, num sebo aqui do Rio. E não o achei por acaso. Eu estava à procura dele esse tempo todo.
Sim, antes dos 5 anos eu já conseguia ler. Aprendera meio sozinho, sentado diariamente no colo de minha mãe enquanto ela lia em voz alta, a meu pedido, a coluna de Nelson Rodrigues na Última Hora, "A vida como ela é...". De tanto ouvir o som e o significado daqueles símbolos impressos no jornal, descobri com naturalidade o mecanismo deles – as letras formavam sílabas, as sílabas formavam palavras. A partir dali, passei a aplicá-lo aos outros símbolos impressos e saí lendo tudo que via pela frente. E escrevendo, também. Antes que você se espante, saiba que não há nada de mais nisso – já aconteceu com milhares de outras crianças. Equivale ao "jeito" que alguns meninos têm para desenhar, outros para música e ainda outros para jogar futebol. (Se pudesse escolher, teria preferido este último.)
A vida nunca mais é a mesma depois que se penetra no reino das palavras. Na verdade, não me recordo de mim a não ser cercado por elas. Meus pais não liam livros, mas eram grandes consumidores de jornais. Correio da Manhã e O Jornal chegavam diariamente, por assinatura. À tarde, meu pai saía à rua e comprava nas bancas a Última Hora, de cuja linha política discordava, mas por causa de minha mãe, que gostava do Nelson Rodrigues. Para purgar o getulismo da Última Hora, comprava o seu oposto, que era a Tribuna da Imprensa, do Carlos Lacerda. Só aí já eram quatro jornais por dia. Aos domingos, às vezes surgia em casa o Diário de Notícias. Todos esses eram poderosos jornais cariocas. Revistas, várias - O Cruzeiro, Fon-Fon, Vida Doméstica. Detalhe: os jornais e revistas raramente iam para o lixo. As pilhas se acumulavam e atravessavam os anos. Os exemplares com as catástrofes históricas – acidente que matou Francisco Alves, suicídio de Getulio Vargas, morte de Carmen Miranda, incêndio da boate Vogue – eram guardados para sempre. Não se devia jogar as palavras fora.
Desde aquele dia remoto, já tive muitas Alices – em edições de luxo, de bolso, comentadas, com ou sem as ilustrações e em duas ou três línguas. Em 1994, eu próprio cometi uma adaptação para o português, publicada pela Companhia das Letrinhas – na verdade, foi o primeiro livro da Letrinhas. Voltar a Alice e recriá-la com minhas palavras foi uma viagem. Mas não só. Era como se eu estivesse pagando uma dívida – para com a pessoa que me abrira os olhos aos 5 anos para o insuperável prazer da leitura e para com aquele menino que, tantos anos depois, eu fazia de conta que continuava sendo.
Ruy Castro
[extraído das págs. 89-92, do livro “Dez livros que abalaram meu mundo”,
Organizadores: Martha Ribas & Julio Silveira, Casa da Palavra, RJ, 2006]
Links:
http://www.facasper.com.br/jo/entrevistas.php?id_noticias=618
http://www.releituras.com/ruycastro_mauhumor.asp
quarta-feira, janeiro 24, 2007
O caçador de pipas (I)
Aventuras de Alice no País das Maravilhas foi publicado em 1865. Quando Lewis Carroll morreu, em 1898, tinham sido vendidos 180 mil exemplares do livro, cifra que superou largamente suas expectativas. Em 1872, lançou Através do Espelho e o que Alice encontrou Lá. Estas obras fizeram daquele professor de matemática meio excêntrico e distraído, cujo verdadeiro nome era Charles Lutwidge Dodgson, um clássico da literatura universal.
Lewis Carroll definiu esses dois livros como fruto de uma escrita do nonsense. Explicação sincera, mas modesta demais. A timidez não lhe permitiu reconhecer que se tratava de uma das aventuras imaginativas mais intensas já feitas no plano da criação literária. Harold Bloom viu nesse autor a capacidade genial de "matar o tempo" com o poder da invenção. O tempo assassinado é tempo multiplicado. O "espaço" imaginário faz-nos transcender relógios e cronômetros. Ao entrar com Alice na toca do Coelho Branco, ou com ela atravessar o espelho, ingressamos no âmbito do atemporal, no qual prevalece uma lógica própria, que dá sentido aos acontecimentos mais absurdos da narrativa.
Como ocorre com outras obras-primas, as histórias de Alice não se deixam encerrar na chamada "literatura infantil". Interessam a leitores de todas as faixas etárias, níveis de escolaridade e classes sociais. Não só pelo encantamento do relato em si, ou pela galeria de personagens estranhos que a menina encontra em cada capítulo, mas pela engenhosidade da linguagem. E o que desafia os tradutores é justamente essa engenhosidade.
Monteiro Lobato, cumprindo seu projeto editorial, traduziu/adaptou Alice em 1931. Em nome desse projeto, driblou grandes ou pequenas dificuldades, mais preocupado em situar Alice no mundo do brasileiro do que em situar a este no mundo de Alice. No prefácio, justifica-se:
"Traduzir uma obra como a de Lewis Carroll, mais que difícil, é dificílimo. Trata-se do sonho de uma menina travessa - sonho em inglês, de coisas inglesas, com palavras, com referências, citações, alusões, versos, humorismo, trocadilhos, tudo inglês -, isto é, especial, feito exclusivamente para a mentalidade dos inglesinhos.
Para a mentalidade dos brasileirinhos, Lobato (são palavras suas no prefácio) "fez o que pôde". Um desses pequenos leitores foi Ruy Castro, que leu Alice na adaptação de Lobato em 1953, com 5 anos.
- A vida nunca mais é a mesma depois que se penetra no reino das palavras - diz Ruy ao comentar sua experiência de leitura.
Quatro décadas depois, em 1992, Ruy acabou escrevendo também uma adaptação pessoal de Alice para o português, primeiro livro da Companhia das Letrinhas, atualmente esgotado.
À disposição nas livrarias, encontramos pelo menos quatro traduções de Aventuras de Alice no País das Maravilhas. O trabalho do poeta pernambucano Sebastião Uchoa Leite (Summus Editorial, 1977). A tradução de Rosaura Eichenberg (L&PM, 1998). A edição comentada por Martin Gardner, traduzida por Maria Luiza X. de A. Borges (Jorge Zahar Editor, 2002). E a de Márcia Feriotti Meira (Editora Martin Claret, 2005). Analisemos aqui um trecho traduzido por eles.
“Once, said the Mock Turtle at last, with a deep sigh, I was a real Turtle.”
These words were followed by a very long silence, broken only by an occasianal exclamatian of "Hjckrrh!" from the Gryphon, and the constant heavy sobbing of the Mock Turtle.
SEBASTIÃO UCHOA LEITE
- Outrora - começou enfim a Falsa Tartaruga, com um profundo suspiro - eu era uma verdadeira tartaruga.
Essas palavras foram seguidas por um longo silêncio, rompido apenas por ocasional "Hjkrrh!" do Grifo e soluços constantes da Falsa Tartaruga.
"HJCKRRH!" É UMA EXCLAMAÇÃO SEM VOGAIS. O TRADUTOR OMITIU A CONSOANTE "C", POR CONSIDERAR QUE O "K" EM PORTUGUÊS SERIA SUFICIENTE PARA O SOM QUE LEWIS DESEJAVA INVENTAR.
MARIA LUIZAX. DEA. BORGES
"Antigamente", disse a Tartaruga Falsa com um suspiro profundo, "eu era uma Tartaruga de verdade."
Essas palavras foram seguidas por um silêncio muito longo, quebrado apenas por uma exclamação ocasional – "Hjcrrh!" – do Grifo e o soluçar constante e fundo da Tartaruga Falsa.
NESTA VERSÃO FOI O "K" A DESAPARECER DA EXCLAMAÇÃO. E A TRADUTORA ESTÁ ATENTA A OUTROS DETALHES. NÃO SE TRATA APENAS DE UM LONGO SILÊNCIO, MAS DE UM SILÊNCIO "MUITO LONGO": "VERY LONG".
ROSAURA EICHENBERG
"Antigamente", disse a Tartaruga Falsa por fim, com um profundo suspiro, "eu era uma Tartaruga verdadeira."
Essas palavras foram seguidas por um longo silêncio, só quebrado por uma exclamação ocasional de "Hjckrrh!", do Grifo, e o soluçar pesado e constante da Tartaruga falsa.
A EXCLAMAÇÃO "HJCKRRH" DESTA VEZ SURGE COM TODAS AS CONSOANTES DO ORIGINAL. O GRUNHIDO DE UM AUTÊNTICO GRIFO NÃO MERECE MENOS CONSIDERAÇÃO...
MÁRCIA FERIOTTI MEIRA
- Há muitos e muitos anos... - iniciou a Tartaruga Falsa, finalmente, com um suspiro profundo - eu era uma Tartaruga de verdade.
Essas palavras foram seguidas de um longo silêncio, quebrado apenas por um guincho ocasional do Grifo e pelo soluço constante e profundo da Tartaruga Falsa.
"SOLUÇO PROFUNDO" PARA "HEAVY SOBBING" NÃO FOI BOA OPÇÃO. "SOLUÇO PESADO" SERIA MELHOR. E O ADJETIVO "PROFUNDO" JÁ TINHA SIDO USADO LOGO ACIMA, PARA "DEEP".
LEWIS CARROL
"[…] The master was an old Turtle - we used to call him Tortoise -"
"Why did you call him Tortoise, if he wasn't one?" Alice asked.
"We called him Tortoise because he taught us, "said the Mock Turtle angrily: "really you are very dull! "
SEBASTIÃO UCHOA LEITE
- [...] A professora era uma velha tartaruga... e nós a chamávamos de Torturuga...
- Mas por que Torturuga, se ela era uma tartaruga? perguntou Alice.
- Nós a chamávamos de Torturuga porque aprender com ela era uma tortura - respondeu irritada a Falsa Tartaruga. - Na verdade você é bem obtusa, hein?
A DIFICULDADE ESTÁ EM REPRODUZIR O TROCADILHO "TORTOISE"/"TAUGHT US". TORTOISE É A TARTARUGA TERRESTRE, MAIS PROPRIAMENTE FALANDO, O JABUTI. TURTLE É A TARTARUGA MARÍTIMA. O TROCADILHO "TORTURUGA"/"TORTURA" ENFATIZA O LADO CRUEL DA VIDA ESCOLAR.
MARIA LUIZAX. DEA. BORGES
"[...] O mestre era um Cágado velho... nós o chamávamos de Tartarruga."
"Por que o chamavam de Tartarruga, se ele não era uma?" Alice perguntou.
"Nós o chamávamos de Tartarruga porque tinha... tanta ruga! Respondeu a Tartaruga, irritada, "realmente você é muito bronca!"
AQUI, O TROCADILHO DESENTRANHA UMA PALAVRA EMBUTIDA NA PALAVRA MAIOR: "TARTARRUGA", COM A DUPLICAÇÃO DO "R", FAZ O LEITOR PERCEBERA "RUGA", SINAL DE VELHICE E SABEDORIA. CÁGADO É SEMI-AQUÁTICO, O QUE JUSTIFICA A PERPLEXIDADE DE ALICE: UMA TARTARUGA MARITIMA NÃO É EXATAMENTE UM CÁGADO.
ROSAURA EICHENBERG
''[...] A mestra era uma velha Tartaruga... nós a chamávamos de Jabuti..."
"Por que a chamavam assim, se ela não era um Jabuti?", perguntou Alice.
"Nós a chamávamos de Jabuti, porque ela nos botava algo na cabeça", disse a Tartaruga Falsa zangada. "Realmente você é muito estúpida!"
A TRADUTORA TENTOU O TROCADILHO "JABUTI"/"BOTAVA". SUA DECISÃO DEVE-SE AO DESEJO DE SER FIEL À TRADUÇÃO DE "TORTOISE". POR OUTRO LADO, TRANSFORMAR O ENSINAR (VERBO "TO TEACH") EM "BOTAR ALGO NA CABEÇA" EMPOBRECE A FRASE.
MÁRCIA FERIOTTI MEIRA
- [...] Nossa professora era uma Tartaruga bem velhinha... a qual costumávamos chamar de Professora Jabotina...
- Por que é que a chamavam de Jabotina, se era uma Tartaruga? - questionou Alice.
- Por que ela assim nos ensinou - respondeu a Tartaruga Falsa, irritada. Ora, você é realmente muito inconveniente!
"PROFESSORA JABOTINA" É INTERESSANTE, MAS O TROCADILHO DO ORIGINAL FOI SIMPLESMENTE IGNORADO. TRADUZIR "DULL" POR "INCONVENIENTE" ENFRAQUECE A REPRIMENDA. AS OUTRAS TRÊS TRADUÇÕES - "OBTUSA", "BRONCA", "ESTÚPIDA" – CUIDARAM MELHOR DESSE PONTO.
Gabriel Perissé é professor do Programa de Mestrado em Educação da Uninove (SP).
www.perisse.com.br
[extraído da revista Língua Portuguesa, págs. 63-64 – Ano II – n° 14- 2006]
O caçador de pipas
Autor: Khaled Hosseini
Tradução: Maria Helena Rouanet
2003
EDITORA NOVA FRONTEIRA
O primeiro capítulo:
Dezembro de 2001
EU ME TORNEI O QUE SOU HOJE aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975. Lembro do momento exato em que isso aconteceu, quando estava agachado por detrás de uma parede de barro parcialmente desmoronada, espiando o beco que ficava perto do riacho congelado. Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar. Olhando para trás, agora, percebo que passei os últimos vinte e seis anos da minha vida espiando aquele beco deserto.
Um dia, no verão passado, meu amigo Rahim Khan me ligou do Paquistão. Pediu que eu fosse vê-lo. Parado ali na cozinha, com o fone no ouvido, sabia muito bem que não era só Rahim Khan que estava do outro lado daquela linha. Era o meu passado de pecados não expiados. Depois que desliguei, fui passear pelo lago Spreckels, 10 KHALED HOSSEINI na orla norte do parque da Golden Gate. O sol do início da tarde cintilava na água onde navegavam dezenas de barquinhos em miniatura, impulsionados por um ventinho ligeiro. Olhei então para cima e vi um par de pipas vermelhas planando no ar, com rabiolas compridas e azuis. Dançavam lá no alto, bem acima das árvores da ponta oeste do parque, por sobre os moinhos, voando lado a lado como um par de olhos fitando San Francisco, a cidade que eu agora chamava de lar. E, de repente, a voz de Hassan sussurrou nos meus ouvidos: “Por você, faria isso mil vezes!” Hassan, o menino de lábio leporino que corria atrás das pipas como ninguém.
Sentei em um banco do parque, perto de um salgueiro. Pensei em uma coisa que Rahim Khan disse um pouco antes de desligar, quase como algo que lhe houvesse ocorrido no último minuto. “Há um jeito de ser bom de novo.” Ergui os olhos para as pipas gêmeas. Pensei em Hassan. Pensei em baba. Em Ali. Em Cabul. Pensei na vida que eu levava até que aquele inverno de 1975 chegou para mudar tudo.
E fez de mim o que sou hoje.
Baba e Ali cresceram juntos, como companheiros de brincadeiras – ao menos até que a pólio o deixasse aleijado –, exatamente como Hassan e eu cresceríamos juntos uma geração mais tarde. Baba sempre falava das travessuras que ambos aprontavam, e Ali balançava a cabeça dizendo "Mas, agha sahib, diga a eles quem arquitetava as travessuras e quem era o simples executor". Meu pai ria e passava o braço nos ombros de Ali.
Em nenhuma dessas histórias, porém, baba se referia a Ali como amigo.
O curioso é que também nunca pensei em Hassan e eu como amigos. Pelo menos não no sentido habitual. Pouco importa se um ensinou ao outro a andar de bicicleta sem as mãos, ou a construir uma câmera caseira, feita com uma caixa de papelão, e que funcionava bastante bem. Pouco importa se passamos invernos inteiros empinando pipas e correndo para apanhar as que caíam. Pouco importa se, para mim, a cara do Afeganistão é a cara de um menino de porte esguio, cabeça raspada e orelhas meio dobradas; um menino com uma cara de boneca chinesa perpetuamente iluminada pelo sorriso leporino.
Nada disso importa. Porque não é fácil superar a história. Tampouco a religião. Afinal de contas, eu era pashtun, e ele, hazara; eu era sunita, e ele, xiita, e nada conseguiria modificar isso. Nada.
Mas éramos duas crianças que tinham aprendido a engatinhar juntas, e não havia história, etnia, sociedade ou religião que pudesse alterar isso. Passei a maior parte de meus primeiros doze anos de vida brincando com Hassan. Às vezes, toda a minha infância parece ter sido um longo dia preguiçoso de verão em companhia de Hassan, um correndo atrás do outro por entre as árvores do quintal da casa de meu pai, brincando de esconde-esconde, de polícia-e-ladrão, de índio e caubói, de torturar insetos. Quanto a esta última brincadeira, o ponto alto foi, sem dúvida alguma, aquela vez que arrancamos o ferrão de uma abelha e amarramos um barbante no pobre inseto para puxá-lo de volta sempre que conseguisse levantar vôo. (...)"
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT1049053-1655,00.html
http://www.americanas.com.br/cgi-bin/WebObjects/AcomHome.woa/wa/materia?mat=4429
http://www.novafronteira.com.br/produto.asp?CodigoProduto=1767
http://www.planetaeducacao.com.br/new/colunas2.asp?id=514
http://www.bravonline.com.br/noticias.php?id=1661
http://revistaentrelivros.uol.com.br/edicoes/6/artigo11009-1.asp?o=r
http://www.terra.com.br/istoe/1880/artes/1880_barril_de_polvora.htm
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u53916.shtml
domingo, janeiro 21, 2007
Ceumar, Consiglia Latorre & Fábio Tagliaferri
Dindinha
Zeca Baleiro
Divinha o que primeiro
Vem amor ou vem dindim
Dindinha, dê dinheiro
Carinho e calor pra mim
Minha casa não tem porta
Minha horta não tem fruta
Quem me trata é moura torta
Língua morta quem te escuta
Meu tesouro é uma viola
Que a felicidade oculta
Se a vida não dá receita
Eu não vou pagar a consulta
Sob o céu azul me deito
Me deleito, me desnudo
Coração dentro do peito
Não foi feito pra ter tudo
A mentira é uma princesa
Cuja beleza não gasta
E a verdade vive presa
No espelho da madrasta
Eu nasci remediado
Criado solto no mundo
Se viver fosse reisado
Se eu me chamasse Raimundo
Andorinha no inverno
Beijo terno alma boa
Escrevi no meu caderno
Não passei a vida à-toa
Avesso
Ceumar & Alice Ruiz
Pode parecer promessa
Mais eu sinto que você é a pessoa
Mais parecida comigo que eu conheço
Só que do lado do avesso
Pode ser que seja engano, bobagem ou ilusão
De ter você na minha
Mas acho que com você eu me esqueço
E em seguida eu aconteço
Por isso deixo aqui meu endereço
Se você me procurar eu apareço
Se você me encontrar
Te reconheço
Pra lá
Dante Ozzetti & Luiz Tatit
Tem carnaval
Muito além do cordão
Tem interior
Muito além do sertão
Pra lá
Desse mundo
Tem mais
Do que um
Rancho fundo
Tem mais fazer
Em saber porque faz
Em mais querer
Em querer por demais
Pra lá
Do que é muito
Tem mais mundo
Mais que um
Pra lá
Pra lá do bamba
Tem a fera
Pra lá da banda
Tem batera
Pra lá do inverno
Primavera
Pra lá do centro
Tem a esfera
Pra lá da esfera
Atmosfera
Pra lá do ar
A nova era
Pra lá da era
Só espera
Tem animal
Onde a gente nem vê
Tem mais país
Muito além da tevê
Pra lá
Desse mundo
Tem mais
Do que um
Rancho fundo
Sempre tem sol
Muito além do lugar
Tem futebol
Muito além do placar
Pra lá
Do que é muito
Tem mais mundo
Mais que um
Links:
http://www.cafemusic.com.br/cd.cfm?album_id=131
http://www.musica.pcarp.usp.br/doc_tibo.html
Todo o sentimento
Cristóvão Bastos & Chico Buarque
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo
Da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar
E urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo o sentimento
E bota no corpo uma outra vez
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente
Doente
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei, como encantado
Ao lado teu
Silêncio
Fábio Tagliaferri & Luiz Tatit
Quis dizer de coração
Não era hora
Vim de longa espera
Cresci, mas quem me dera
Sei que falta muito
Pra aprender a dizer
Pois o amor nem sempre se declara
Sofre mudo, mas não mostra a cara
E é o silêncio que ampara o amor
Amor que é amor é assim
É uma certeza que nunca diz "sim"
Nem diz "não"
Nem diz
Só acompanha os movimentos
Com olhos atentos
Mas...
Pra dizer de coração
É que demora
Quem que alinhava
Palavra por palavra?
Quem que tem paciência
De aprender a dizer
E quem diz de vez, só atropela
Pois o amor nem sempre se revela
E se revela, vira uma novela
Choro e lenço, que apela
Pro consenso
Nem penso, dispenso
Silêncio
Mas...
Não vou dizer mais não!
Pela manhã
Fabio Tagliaferri & David Calderoni
Dista o quebra-mar
desta embarcação
cento e dez
aflições
ao nordeste sul
mede a direção:
graus e pés
nós e mãos
Grita a megalópole e arranha o céu
Porém cosmopolita astrolábio do'eu
saturnais
viração
passa-anéis
vão e vão
Freme a incandescência germinal da névoa vã
Cruza e se entrecruza a cabralina luz-balão
Brota ao léu
a inicial
dos confins
Hora de partir
flecha do olhar
Desfechar
Acordar
Zéfiro a zunir
dardo harpejador
Despertar
dessa dor
Calma pulsação febril da estrela-anã
nos galos do poema "Tecendo a Manhã"
Dor de amor
é ilusão
Ilusão
é ilusão
Amar, não!
Show
Fábio Tagliaferri & Luiz Tatit
É só uma voz
A minha voz
Sem coral
Cadê o coral?
Cantava aqui
Estava aqui
Cadê o pessoal?
A música avança
Lança
Em mim
Um gelo geral
Solidão
Voz sem coral
É só uma vez
É a minha vez
De fazer
O solo final
Eu entro aqui
Eu entro em mim
Voz principal
Solei, solei
E um coro virtual
Eu ouvia
Anunciando sem dó
Sou eu e só
E assim eu refiz meu caminho
Com voz e com muita emoção
O coro virtual eu troquei
Por um vigoroso violão
E quem sonhou, sofreu, chorou
Pode fazer de uma só voz um show
Pode não ser
Um megashow
Um festival
Com multidões
Mas quem chorou
Já tem na voz
Um show
sexta-feira, janeiro 19, 2007
TATIT (IV)
Dante Ozzetti & Luiz Tatit
Vem me abraçar, vem
Vem reparar bem
Quem é que abraçou quem
Pois vou lhe abraçar também
Quem dá um abraço
Não sabe se deu
Ou se devolveu
Ou se perdeu
Quando o abraço sai de alguém e não volta
Não envolveu
Anunciou
Renunciou
Dissolveu
Quem quer um pedaço
Um pouco de alguém
Abraçando tem
E ainda mais
Se o abraço for além de um minuto
Aí é fatal
Envolveu
Você tem
Um alguém total
Ficha técnica:
voz: Ceumar
violões (nylon & aço): Dante Ozzetti & Webster Santos
bandolim: Milton Mori
violoncelo: Dimos Goudaroulis
bateria: Sérgio Reze
baixo: Du Moreira
CD: Achou!
Ceumar & Dante Ozzetti
Links:
http://www.mpbnet.com.br/canto.brasileiro/dante.ozzetti/index.html
http://mpbnet.com.br/canto.brasileiro/ceumar/
Ficha técnica:
voz: Consiglia Latorre
violão & arranjo: Ulisses Rocha
CD: Tempo da delicadeza
Consiglia Latorre
Links:
http://oglobo.globo.com/blogs/antonio/post.asp?cod_Post=6817
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/subindex.cfm?paramend=1&IDCategoria=3955