quinta-feira, janeiro 25, 2007

 

O caçador de pipas (II)


Acabei pinçando mais alguns trechos significativos do livro. Transcrevo-os, então:

DOIS

QUANDO ÉRAMOS CRIANÇAS, HASSAN e eu trepávamos nos choupos da entrada da casa de meu pai e ficávamos chateando os vizinhos, usando um caco de espelho para mandar reflexos de sol para as suas casas. Sentávamos um defronte do outro, nos galhos mais altos, com os pés descalços pendurados no ar e os bolsos das calças cheios de amoras e nozes secas. Ficávamos nos alternando com o espelho enquanto comíamos amoras, jogando os frutos um no outro, entre risinhos e gargalhadas. Ainda posso ver Hassan encarapitado naquela árvore, com o reflexo do sol faiscando por entre as folhas no seu rosto quase perfeitamente redondo, um rosto de boneca chinesa talhado em madeira de lei: o nariz grande e chato, os olhos puxados e oblíquos como folhas de bambu, uns olhos que, dependendo da luz, pareciam dourados, verdes e até cor de safira. Ainda posso ver as suas orelhas miúdas, dobradas feito conchas, e a protuberância do queixo, um apêndice de carne que parecia ter sido acrescentado como simples lembrança de última hora. E o lábio fendido, bem naquela linha do meio, em um ponto em que a ferramenta escorregou, ou, quem sabe, foi apenas porque o artesão das bonecas chinesas já estava cansado e se descuidou.

Às vezes, lá no alto daquelas árvores, dizia para Hassan pegar o estilingue e atirar nozes no pastor alemão caolho do vizinho. Ele não queria, mas, se eu pedisse, pedisse de verdade, ele não me diria não. Hassan nunca me negava nada. E era fera com a atiradeira. Seu pai, Ali, sempre nos apanhava e ficava furioso, ou tão furioso quanto possível, no caso de alguém gentil como Ali. Com o dedo em riste, mandava que descêssemos da árvore. Pegava o espelho e repetia o que sua mãe lhe dizia: que o diabo também faz os espelhos reluzirem, e faz isso para distrair os muçulmanos durante as orações.

_ E ri, depois que já conseguiu o que queria – acrescentava ele invariavelmente, olhando para o filho com ar severo.

_ Está bem, pai – murmurava Hassan, fitando os próprios pés.

Mas ele nunca me entregava. Nunca disse que tanto o espelho quanto as nozes atiradas no cachorro do vizinho tinham sido idéia minha.

Os choupos margeavam o caminho de tijolos vermelhos que levava a um portão de duas folhas, todo feito de ferro fundido. Por seu turno, este se abria para a rua que dava acesso à propriedade de meu pai. A casa ficava à esquerda, e tinha um quintal nos fundos.

Todos eram unânimes em dizer que meu pai, o meu baba, tinha construído a casa mais bonita do distrito de Wazir Akbar Khan, um bairro novo e rico ao norte de Cabul. Havia até quem dissesse que era a casa mais bonita de toda a cidade. Uma ampla alameda ladeada por roseiras conduzia à casa espaçosa, com piso de mármore e janelas enormes. Intrincados mosaicos de ladrilhos, que baba escolheu a dedo em Isfahan, recobriam o chão dos quatro banheiros. Tapeçarias com fios dourados, que baba comprou em Calcutá, revestiam as paredes. E um lustre de cristal pendia do teto abobadado.

Meu quarto ficava no andar de cima, junto com o de meu pai e o seu escritório, também conhecido como "sala de fumar", eternamente cheirando a tabaco e canela. Era lá que baba e seus amigos se reclinavam nas poltronas de couro preto depois que Ali tinha acabado de servir o jantar.

Todos enchiam os cachimbos – só que meu pai sempre dizia "engordar o cachimbo" – e conversavam sobre os seus três assuntos favoritos: política, negócios, futebol. Às vezes eu perguntava se podia ir sentar lá, junto com eles, mas baba ficava parado na porta.

_ Agora, vá – dizia ele. – Isso é coisa de gente grande. Por que não vai ler um daqueles seus livros? - Fechava a porta e me deixava imaginando por que, com ele, tudo era sempre coisa de gente grande. Sentava junto da porta, abraçando os joelhos contra o peito. Algumas vezes ficava sentado ali uma hora, outras vezes, duas, ouvindo as conversas e os risos deles.

(...) Na parte sul do jardim, à sombra de um pé de nêspera, ficava a casa dos empregados, uma casinha modesta onde Hassan morava com o pai.

Foi ali, naquele pequeno casebre, que Hassan nasceu no inverno de 1964, um ano depois que minha mãe morreu durante o meu parto.

Nos dezoito anos que vivi em Cabul, só entrei na casa de Ali e Hassan umas poucas vezes. Quando o sol começava a se pôr atrás das colinas, e tínhamos acabado de brincar, nos separávamos. Eu passava pelas roseiras a caminho da mansão de baba, Hassan ia para a casinha de pau-a-pique onde nasceu e morou por toda a vida. Lembro que ela era minúscula, limpa e fracamente iluminada por dois ou três lampiões de querosene. Havia dois colchões, em lados opostos da sala, um velho tapete Herati, com uns rasgões no meio, um tamborete de três pernas e, em um canto, uma mesa de madeira onde Hassan fazia os seus desenhos. As paredes eram nuas, exceto por uma única tapeçaria bordada com contas que formavam as palavras Allah-u-akbar. Um presente que baba trouxe para Ali de uma de suas viagens a Mashad.

Foi nesse casebre que Sanaubar deu à luz Hassan, em um dia frio do inverno de 1964. Enquanto minha mãe morreu de hemorragia durante o parto, Hassan perdeu a sua menos de uma semana depois de nascer. E para um destino que a maioria dos afegãos considera pior que a morte: ela fugiu com uma trupe de cantores e dançarinos ambulantes.

Hassan nunca falou da mãe, como se ela jamais tivesse existido. Sempre me perguntei se sonharia com ela, se tentaria saber que aparência tinha, por onde andaria. Ficava imaginando se gostaria de conhecê-la. Teria saudade dela, como eu tinha da mãe que não conheci?

(...) tanto Ali quanto Hassan tinham os traços mongolóides característicos dos hazaras. Durante anos, isso foi tudo o que soube a respeito desse povo: que descendiam dos mongóis e eram parecidos com os chineses. Os livros didáticos raramente os mencionavam e só se referiam às suas origens de passagem. Até que um dia, quando estava bisbilhotando as coisas de baba no seu escritório, encontrei um dos velhos livros de história de minha mãe. O autor era um iraniano chamado Khorami. Soprei a poeira que o cobria, levei-o comigo para a cama naquela noite e fiquei espantadíssimo ao ver um capítulo inteiro sobre a história dos hazaras. Um capítulo inteiro dedicado ao povo de Hassan! Foi aí que fiquei sabendo que meu povo, os pashtuns, tinha perseguido e oprimido os hazaras. Li que estes tentaram se rebelar contra os pashtuns no século XIX, mas foram "dominados com violência indescritível". O livro dizia ainda que meu povo matou os hazaras, expulsou-os das suas terras, queimou as suas casas e vendeu as suas mulheres como escravas. Dizia também que essa opressão de um povo pelo outro se deveu em parte ao fato de os pashtuns serem muçulmanos sunni, ao passo que os hazaras são shi’a. O livro falava de muitas coisas que eu não sabia, de coisas que os professores não mencionavam. Coisas que baba também não mencionava. Por outro lado, falava de coisas que eu sabia, como, por exemplo, que as pessoas chamavam os hazaras de "comedores de camundongos", "nariz achatado", "burros de carga". Já tinha ouvido alguns meninos da vizinhança gritarem essas palavras para Hassan.

(...) Depois repetia que as pessoas que mamavam no mesmo peito eram como irmãs, ligadas por uma espécie de parentesco que nem mesmo o tempo poderia desfazer.

Hassan e eu mamamos no mesmo peito. Demos os nossos primeiros passos na mesma grama do mesmo quintal. E, sob o mesmo teto, dissemos nossas primeiras palavras.

A minha foi baba.

A dele, Amir. O meu nome.

Olhando para trás, agora, fico pensando que os alicerces do que aconteceu no inverno de 1975 – e de tudo o que veio depois – já estavam contidos nessas primeiras palavras.

[trecho extraído das págs. 11-19, do livro “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini]




“(...) Durante o ano letivo, tínhamos uma rotina diária. Enquanto eu me levantava a duras penas e ia me arrastando até o banheiro, Hassan já tinha se lavado, rezado as namaz matinais junto com Ali e preparado meu café da manhã: chá preto quente, com três torrões de açúcar, e uma fatia de naan torrado com minha geléia favorita, de cereja ácida, tudo isso muito bem arrumado na mesa da sala de jantar. Enquanto eu comia e reclamava do dever de casa, Hassan fazia minha cama, engraxava meus sapatos, passava as roupas que eu ia usar naquele dia, arrumava meu material escolar. Eu o ouvia cantando no saguão enquanto passava roupa, entoando velhas cantigas hazara com sua voz nasalada. Então, baba e eu saíamos no seu Ford Mustang preto - um carro que atraía olhares invejosos por onde quer que passasse, já que era o mesmo modelo que Steve McQueen dirigia em Bullit, filme que ficou seis meses em cartaz em um cinema de Cabul. Hassan ficava em casa e ajudava Ali nas tarefas diárias: lavar à mão toda a roupa suja e estendê-Ia no quintal para secar, varrer a casa, ir ao bazaar para comprar naan fresco, marinar a carne para o jantar, regar o gramado.

Depois da aula, Hassan e eu passávamos a mão em um livro e corríamos para uma colina arredondada que ficava bem ao norte da propriedade de meu pai em Wazir Akbar Khan. Havia ali um velho cemitério abandonado, com várias fileiras de lápides com as inscrições apagadas e muito mato impedindo a passagem pelas aléias. Anos e anos de chuva e neve tinham enferrujado o portão de grade e deixado a mureta de pedras claras em ruínas. Perto da entrada do cemitério havia um pé de romã. Em um dia de verão, usei uma das facas de cozinha de Ali para gravar nossos nomes naquela árvore: "Amir e Hassan, sultões de Cabul." Essas palavras serviram para oficializar o fato: a árvore era nossa. Depois da aula, Hassan e eu trepávamos em seus galhos e apanhávamos as romãs encarnadas. Depois de comer as frutas e limpar as mãos na grama, eu lia para Hassan.

Sentado ali, com as pernas cruzadas e o jogo de sol e sombra da folhagem do pé de romã no rosto, Hassan arrancava distraído pedacinhos de grama do chão enquanto eu ia lendo as histórias que ele não podia ler sozinho. Pois Hassan cresceria analfabeto como Ali e a maioria dos hazaras: isto já estava decidido desde o minuto em que nasceu, talvez até mesmo desde o instante em que foi concebido no útero nada receptivo de Sanaubar – afinal, para que um criado precisaria da palavra escrita? Mas, apesar de ser analfabeto, ou quem sabe até por isso mesmo, Hassan era atraído pelo mistério das palavras, seduzido por um mundo secreto cujo acesso lhe era vedado. Lia para ele poemas e histórias, às vezes enigmas – embora sempre parasse de ler estes últimos quando percebia que ele tinha muito mais facilidade que eu para decifrá-los. Lia então coisas menos arriscadas, como as desventuras do vaidoso mulá Nasruddin e seu burro. Passávamos horas sentados debaixo daquela árvore, até que o sol começasse a se pôr, e, mesmo assim, Hassan insistia dizendo que ainda havia luz suficiente para eu ler uma outra história, um outro capítulo. (...)”

[trecho extraído das págs. 34-35, do livro “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini]



SEIS

INVERNO.

Todo ano, no primeiro dia em que começa a nevar, faço a mesma coisa: saio de casa bem cedo, pela manhã, ainda de pijama, apertando os braços contra o peito para enfrentar o frio. Vejo a entrada, o carro de meu pai, o muro, as árvores, os telhados e as colinas cobertos por mais de um palmo de neve. Sorrio. O céu está limpo e azul, e tudo é tão branco que os meus olhos chegam a arder. Enfio um punhado de neve na boca, fico ouvindo aquele silêncio abafado que só é rompido pelos grasnidos dos corvos. Desço os degraus, descalço, e chamo Hassan para vir ver também.

O inverno era a estação favorita de todas as crianças de Cabul, pelo menos daquelas cujos pais tinham condições de comprar um bom aquecedor de ferro. E o motivo era simples: as escolas fechavam durante a estação gelada. Para mim, a chegada do inverno significava não ter que fazer longas divisões nem dar o nome da capital da Bulgária, e o princípio de um período de três meses jogando cartas com Hassan perto da lareira, indo ver filmes russos no cinema Park na terça-feira de manhã, comer qurma de nabo doce com arroz na hora do almoço, depois de uma manhã inteira fazendo bonecos de neve.

E pipas, é claro. Soltar pipas. E correr para apanhá-las. (...)

Adorava o inverno em Cabul. Adorava por causa do suave tamborilar na minha janela à noite, quando estava nevando; por causa do barulhinho da neve fresca debaixo das minhas galochas pretas; do calor do fogareiro de ferro fundido enquanto o vento assobiava pelos quintais e pelas ruas. Mas principalmente porque, quando as árvores ficavam congeladas e a neve recobria as estradas, o gelo entre mim e baba diminuía um pouco. E a razão disso eram as pipas. Baba e eu morávamos na mesma casa, mas vivíamos em esferas de existência completamente diferentes. As pipas eram a minúscula área de interseção que havia entre essas esferas.

TODOS OS BAIRROS DE CABUL SEMPRE organizavam campeonatos de pipas no inverno. E se você fosse um menino de Cabul, o dia do torneio era incontestavelmente o ponto alto da estação fria. Nunca conseguia dormir na véspera da competição. Rolava na cama, fazia animais de sombra na parede, chegava até a ir sentar na varanda no escuro, enrolado em um cobertor. Eu me sentia como um soldado tentando dormir na trincheira na véspera de uma batalha importante. E não era muito diferente, não. Em Cabul, empinar pipas era um pouco como ir para a guerra.

Como em toda guerra, você precisa se preparar para uma batalha. Durante algum tempo, Hassan e eu fizemos as nossas próprias pipas. Passávamos o outono economizando dinheiro da mesada e guardávamos essas economias em um cavalinho de porcelana que meu pai trouxe uma vez de uma viagem a Herat. Quando começavam a soprar os ventos do inverno e a neve começava a cair em quantidade razoável, abríamos o fecho que ficava debaixo da barriga do cavalo. Corríamos para o bazaar e comprávamos bambu, cola, barbante e papel de seda. Passávamos horas a fio aparando o bambu para a vareta central e as outras duas que se cruzavam para fazer a armação, cortando o papel finíssimo, indispensável para a pipa debicar e voltar a subir com facilidade. E, é claro, tínhamos que fazer também a nossa própria linha, ou tar. Se a pipa era o revólver, o tar, o fio cortante recoberto de cerol, era a munição. Íamos para o quintal e enchíamos uns duzentos metros de barbante com aquela mistura de cola e vidro moído. Depois, pendurávamos o barbante entre as árvores para secar. No dia seguinte, enrolávamos a linha pronta para a guerra em um carretel de madeira. Quando a neve derretia e começavam a cair as chuvas da primavera, todos os meninos de Cabul ostentavam nos dedos talhos horizontais, traços reveladores de um inverno inteiro passado nessas batalhas. Lembro de como os meus colegas e eu nos reuníamos para comparar as cicatrizes de guerra no primeiro dia de aula. Os cortes eram doloridos e levavam umas duas semanas para sarar, mas isso não tinha a menor importância. Aquelas eram as marcas da estação que eu tanto amava e que, mais uma vez, tinha acabado depressa demais. Então, o monitor da turma soava o apito e, em fila, todos nos dirigíamos para a sala de aula, já sonhando com a volta do inverno e, no entanto, indo ao encontro do espectro de mais um longo ano letivo.

Logo se viu, porém, que Hassan e eu éramos muito melhores empinando pipas do que tentando fabricá-Ias. Uma falha ou outra nosso projeto sempre acabava determinando o seu destino. Baba começou então a nos levar à loja de Saifo para comprar nossas pipas. Saifo era um homem quase cego, moochi de profissão – que ganhava a vida consertando sapatos. Mas também era o fabricante de pipas mais famoso da cidade, com a sua minúscula lojinha na Jadeh Maywand, a rua mais movimentada ao sul das margens lamacentas do rio Cabul. Lembro que as pessoas tinham de se agachar para entrar naquele cubículo do tamanho de uma cela de prisão, e, depois, levantar a tampa de um alçapão para descer alguns degraus de madeira que levavam ao porão úmido onde Saifo guardava as tão cobiçadas pipas. Baba comprava para cada um de nós três pipas idênticas e carretéis de linha com cerol. Se eu mudasse de idéia e resolvesse pedir uma pipa maior e mais extravagante, ele a compraria, mas compraria a mesma também para Hassan. Às vezes gostaria que não agisse assim. Que me deixasse ser o seu favorito.

O campeonato de pipas era uma velha tradição de inverno no Afeganistão. O torneio começava de manhã cedo e só acabava quando a pipa vencedora fosse a única ainda voando no céu - lembro de uma vez que a competição terminou quando já era noite fechada. As pessoas se amontoavam pelas calçadas e pelos telhados, torcendo pelos filhos. As ruas ficavam repletas de competidores dando sacudidelas e puxões nas linhas, com os olhos fixos no céu, tentando se pôr em condições de cortar a pipa do adversário. Todo pipeiro tinha um assistente - no meu caso, Hassan -, que ficava segurando o carretel e controlando a linha.

(...) As regras eram simples: não havia regras. Empine a sua pipa. Corte a dos adversários. E boa sorte.

Só que isso não era tudo. A brincadeira começava mesmo depois que uma pipa era cortada. Era aí que entravam em cena os caçadores de pipas, aquelas crianças que corriam atrás das pipas levadas pelo vento, até que elas começassem a rodopiar e acabassem caindo no quintal de alguém, em uma árvore ou em cima de um telhado. Essa perseguição podia se tornar bastante feroz; bandos de meninos saíam correndo desabalados pelas ruas, uns empurrando os outros como aquela gente da Espanha sobre quem li alguma coisa, aqueles que correm dos touros. Uma vez, um garoto da vizinhança subiu em um pinheiro para apanhar uma pipa. O galho quebrou com o seu peso e ele caiu de mais de dez metros de altura. Quebrou a espinha e nunca mais voltou a andar. Mas caiu segurando a pipa. E quando um desses caçadores põe a mão em uma pipa, ninguém pode tirá-Ia dele. Isso não é uma regra. É o costume.

Para eles, o prêmio mais cobiçado era a última pipa que caía em um campeonato de inverno. Era como um troféu, algo a ser posto em um lugar de destaque e exibido para as visitas. Quando o céu se esvaziava, e sobravam apenas as duas últimas pipas, todos aqueles caçadores se preparavam para tentar conquistar aquele prêmio. Procuravam se posicionar de jeito a estarem prontos para a largada. Músculos tensos, prestes a disparar. Pescoços espichados. Olhos apertados. Surgiam as brigas. E, quando a última pipa era cortada, era um deus-nos-acuda.

Ao longo dos anos, vi milhares de garotos correrem atrás de pipas. Mas Hassan foi de longe o melhor que jamais vi. Era impressionante como ele percebia onde a pipa poderia ir parar antes mesmo que ela começasse a cair, como se tivesse uma espécie de bússola interior. (...)

[trecho extraído das págs. 54-58, do livro “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini]




.
.
Retomando o artigo da revista Língua Portuguesa, comentado no post anterior, no qual Ruy Castro é citado, gostaria de fazer um link com o livro: Os dez livros que abalaram meu mundo (comentado no blog do Arnaldo). Transcrevo seu depoimento:

.
.
Começou com Alice

O OBJETO VEIO EMBRULHADO NUM PAPEL VERDE ES-

TAMPADO DE MOTIVOS INFANTIS, CREIO QUE DE UM

URSINHO TOCANDO UM TAMBOR. MUITO JUSTO. ERA

UM PRESENTE DE ANIVERSÁRIO PARA UMA CRIANÇA

QUE FAZIA 5 ANOS.

O objeto era um livro. O garoto o desembrulhou, contemplou aquele volume vermelho, de capa dura, cheio de páginas impressas com texto e outras ilustradas. Por coincidência, o menino tinha à mão ou no bolso um lápis de cor, também vermelho. Abriu o livro e escreveu logo na primeira página: "Ruy - 5".

A pessoa que lhe dera o presente, uma mulher, talvez uma amiga de sua mãe, comentou: "Ih, já começou a rabiscar o livro!".

Mas ele não o rabiscou mais. Depositou o livro na cama junto com os outros presentes e só o retomou depois que a festa de aniversário acabou. O título na capa, ele o leu com alguma facilidade: Alice no país das maravilhas. Para as outras informações, que constavam do frontispício, ele não deu muita importância na hora:

"Lewis Carroll. Tradução e adaptação de Monteiro Lobato. Companhia Editora Nacional". Sentou-se, cruzou as pernas e abriu o livro na página 11, onde começava a história.
Nunca mais foi o mesmo menino.

Mais de cinqüenta anos depois, posso manusear, folhear e até reler esse livro. Para dizer a verdade, ele está à minha frente neste momento. Naturalmente, não é o exemplar original, que ganhei naquele remoto dia de fevereiro de 1953 - este se perdeu na adolescência ou ficou para trás em alguma mudança. Mas, há tempos, achei outro, da mesma fornada, com a capa e suas 124 páginas em perfeito estado, num sebo aqui do Rio. E não o achei por acaso. Eu estava à procura dele esse tempo todo.

Sim, antes dos 5 anos eu já conseguia ler. Aprendera meio sozinho, sentado diariamente no colo de minha mãe enquanto ela lia em voz alta, a meu pedido, a coluna de Nelson Rodrigues na Última Hora, "A vida como ela é...". De tanto ouvir o som e o significado daqueles símbolos impressos no jornal, descobri com naturalidade o mecanismo deles – as letras formavam sílabas, as sílabas formavam palavras. A partir dali, passei a aplicá-lo aos outros símbolos impressos e saí lendo tudo que via pela frente. E escrevendo, também. Antes que você se espante, saiba que não há nada de mais nisso – já aconteceu com milhares de outras crianças. Equivale ao "jeito" que alguns meninos têm para desenhar, outros para música e ainda outros para jogar futebol. (Se pudesse escolher, teria preferido este último.)

A vida nunca mais é a mesma depois que se penetra no reino das palavras. Na verdade, não me recordo de mim a não ser cercado por elas. Meus pais não liam livros, mas eram grandes consumidores de jornais. Correio da Manhã e O Jornal chegavam diariamente, por assinatura. À tarde, meu pai saía à rua e comprava nas bancas a Última Hora, de cuja linha política discordava, mas por causa de minha mãe, que gostava do Nelson Rodrigues. Para purgar o getulismo da Última Hora, comprava o seu oposto, que era a Tribuna da Imprensa, do Carlos Lacerda. Só aí já eram quatro jornais por dia. Aos domingos, às vezes surgia em casa o Diário de Notícias. Todos esses eram poderosos jornais cariocas. Revistas, várias - O Cruzeiro, Fon-Fon, Vida Doméstica. Detalhe: os jornais e revistas raramente iam para o lixo. As pilhas se acumulavam e atravessavam os anos. Os exemplares com as catástrofes históricas – acidente que matou Francisco Alves, suicídio de Getulio Vargas, morte de Carmen Miranda, incêndio da boate Vogue – eram guardados para sempre. Não se devia jogar as palavras fora.

Desde aquele dia remoto, já tive muitas Alices – em edições de luxo, de bolso, comentadas, com ou sem as ilustrações e em duas ou três línguas. Em 1994, eu próprio cometi uma adaptação para o português, publicada pela Companhia das Letrinhas – na verdade, foi o primeiro livro da Letrinhas. Voltar a Alice e recriá-la com minhas palavras foi uma viagem. Mas não só. Era como se eu estivesse pagando uma dívida – para com a pessoa que me abrira os olhos aos 5 anos para o insuperável prazer da leitura e para com aquele menino que, tantos anos depois, eu fazia de conta que continuava sendo.

Ruy Castro

[extraído das págs. 89-92, do livro “Dez livros que abalaram meu mundo”,
Organizadores: Martha Ribas & Julio Silveira, Casa da Palavra, RJ, 2006]

Links:
http://www.facasper.com.br/jo/entrevistas.php?id_noticias=618
http://www.releituras.com/ruycastro_mauhumor.asp



Comments: Postar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?