terça-feira, outubro 30, 2007

 

Zélia Gattai (VI)


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ANO 2000

Das festas nacionais ou comemorativas, a que Jorge mais gostava era a da passagem do ano. Não havia Natal, São João, Carnaval, Sete de Setembro ou Dois de Julho entre outras festas que o entusiasmassem tanto quanto a do Réveillon.

O Réveillon daquele ano de 2000 se aproximava e eu podia sentir melhoras no estado de ânimo de Jorge. O tratamento que fazia, (...), surtia efeito. Ele já não vivia de olhos fechados e, às vezes, até respondia a algumas questões.

Jorge melhorava, mas, mesmo assim, não íamos fazer nada em casa nem convidar os amigos de sempre, como era o hábito, para brindar com champanhe, à meia-noite, a passagem do ano. Os meninos tinham compromisso, passariam o Réveillon com seus tios e primos e os familiares de Graciliano Ramos, chegados de fora para festejar a virada do ano 2000, aqui em Salvador.

Brindamos a passagem do ano aqui em casa, com champanhe, às sete horas da noite durante o jantar com nossos filhos. Depois, sozinhos, diante da televisão, assistimos ao movimento das festas e ouvimos o foguetório ensurdecedor, bombas e rojões espocando por toda parte.

À meia-noite em ponto, de pé os dois, como jovens namorados, nos abraçamos e nos beijamos com muito amor.

Se essa virada de ano passáramos sós, em compensação, no dia 12, atendemos a um convite de Marise Ramos para almoçar na casa que ela alugara em Itapuã, onde reunira as famílias Ramos e Amado no Réveillon. Jorge estreava um novo ano animado, falante, a tal ponto que chegou a conversar por telefone com nossa amiga Mafalda, viúva de Erico Veríssimo, que vivia em Porto Alegre. Encantou-se com o sobrinho Maurício, filho de James, seu irmão. Não o via há vários anos e o reencontrava agora, casado, pai de família. Jorge parecia voltar à sua antiga forma, programando um almoço em nossa casa. "É um almoço para Maurício", declarou, abraçando o sobrinho.

O almoço foi feito, a família toda estava presente, mas, nesse dia, Jorge já não se encontrava tão eufórico. Sentíamos, eu e os meninos, que mais uma fase de depressão se aproximava a passos largos.

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ALMA NOVA

Eu ficara pessimista com os resultados de minhas experiências em busca de milagres. (...)

Jorge melhorava lentamente, passáramos mais um Réveillon tranqüilo, o de 2001, mas ele ainda não manifestara desejo de escrever. "E por que não tentar?", pensei um dia.

Coloquei um bloco de papel ao seu lado, dei-lhe uma caneta.

_ Escreva aqui, Jorge - disse-lhe, ao vê-lo bem disposto.

_ O quê? - perguntou-me, a voz fraca.

_ O que você quiser... Faça, por exemplo, uma dedicatória, escreva uma frase...

Debruçado sobre o papel ele escreveu rapidamente: "Uma frase, o que você quiser", e assinou. (...)

Sem perder os traços e o estilo de sua caligrafia, às vezes quase ilegível, ele parecia ter tomado gosto. Virou a página do bloco, e, sem que nada eu lhe dissesse, voltou a escrever: (...)

Guardo estes manuscritos e ainda outros, de momentos de tanta emoção quando, num grande esforço ele tentava recuperar a vida e eu criava alma nova.
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ADEUS, MEU QUERIDO

Faltavam apenas quatro dias para o aniversário de Jorge: ele completaria 89 anos. (...)

Os males do coração, que havia algum tempo não davam sinal de vida, voltavam novamente a se manifestar, desta vez dando sinal de morte.

Nesse mesmo 6 de agosto, Jorge nos deixou. Leio parte de uma frase, a última de Navegação de cabotagem:

Não vou repousar em paz, não me despeço, digo até logo, minha gente, ainda não chegou a hora de jazer sob as flores e o discurso.

Sentada no banquinho, sob a frondosa mangueira onde estão as suas cinzas, ao lado do sapo com o filhinho nas costas, invento uma cantiguinha que me traz de volta o sorriso de Jorge:

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Cadê o seu Jorge?
Está no seu jardim
Ao lado de Zélia
E de um pé de jasmim.

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Salvador, 28 de março de 2005.
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[texto e fotos extraídos do livro “Vacina de sapo e outras lembranças”, Zélia Gattai, Editora Record, 2005, pp. 102, 103, 104, 106, 107, 110 e 111]



Comments:
Clélia,
A festa do ano 2000 foi linda. Estávamos todos lá. Revi primos, inclusive o Maurício, que não via há anos. Foi maravilhoso. A Marise Ramos citada é minha mãe.
Grande beijo
 
Foi o qu'eu imaginei, Lord. Você e sua família...
 
Clélia

"À meia-noite em ponto, de pé os dois, como jovens namorados, nos abraçamos e nos beijamos com muito amor."
Que lindo, Clélia, me emocionei.

Agora, ao escrever teu nome, lembrei do abraço que minha tia Clélia me deu noite passada, em sonho.

Hoje virei manteiga...
Bjs.
 
Rosa,

É bom virar manteiga, às vezes...

bjo gde,
Clé
 
Clélia, lindo.
Pesoas lindas que estão presentes na minha vida, ainda que elas não tenham sabido disso.
Descobri a política com Jorge Amado e me apaixonei pelo anarquistmo com a Zélia Gattai.
beijos.
 
(Lord Caco, me descabelo e dou pulinhos quando vc conta essas coisas.);0)
 
Clélia

Estou sentindo falta de ti!

Bjs.
 
Oh, Rosa, é verdade. Tenho andado quieta, ultimamente. Mas vou postar alguma coisa, logo, logo.

bjão, querida
Clé
 
Vivien,

Não respondi, mas já nos falamos por outras vias (inclusive pessoalmente!).

O Lord é invejável, em alguns aspectos, mesmo!

bjo,
Clé
 
Olá, querida!
Realmente ando em estado de loucura esses tempos.
Somente hoje passou pela cabeça.
Entrei no baú errado e nem me dei conta.
Mas o bom é que mesmo lá, tudo é sempre guardado!
Voltarei com mais calma depois!

Bj
:-]
 
Percebi seu engano, Eli. Volte, sim. Estou preparando um novo post. Venha vê-lo, depois.

bjão,
Clé
 
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