segunda-feira, outubro 29, 2007

 

Zélia Gattai (V)


AINDA CARNAVAL

Jorge não era, como já disse, um folião, mas, por vezes, entregou os pontos. Chegou mesmo a desfilar, em 1989, no Rio de Janeiro, sobre um carro alegórico da Império Serrano, desfile comandado pelo carnavalesco Oswaldo Jardim.

Na semana anterior ao carnaval, visitamos o barracão da Império, já apelidado de Tenda dos Milagres, onde se encontravam os carros do desfile. (...)

O presidente da Império, Oscar Lino da Costa Filho, convidou-me para ser madrinha das baianas e, com elas, em sua ala, desfilar na passarela. Ofereceu-me uma roupa da escola, linda de morrer! Aceitei a fantasia, agradeci o convite, mas preferi estar ao lado de Jorge no carro alegórico, vestindo a mesma roupa da ala de minhas afilhadas que se exibiriam no asfalto.


MANHÃ DE TERÇA-FElRA

(...) A Império Serrano seria a última escola a desfilar, já na terça-feira pela manhã. A preocupação de Jorge não era a de ficar horas a fio de pé naquela altura, mas temia o sol daquela manhã de verão carioca, castigando. "Não se preocupe", disseram-lhe, "fará parte da decoração do carro uma tenda branca de cetim, colocaremos uma cadeira embaixo, onde o senhor poderá descansar se quiser e ficar abrigado."

De pé o tempo todo, Jorge desfilou no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, como tema do enredo Jorge Amado Axé Brasil. A seu lado, a família (...), amigos baianos vindos ao Rio (...), como nossos convidados (...). Amigos (...) vindos especialmente de Salvador (...), atores consagrados, amigos inesquecíveis (...) estavam na primeira fila, ao alto, do carro alegórico. Por vontade de Jorge, todos os amigos ficariam conosco lá em cima, mas ele não conseguiu, acabou se convencendo: o carro não resistiria ao peso.

Enquanto aguardávamos o sinal para a saída, lá de cima ficamos localizando os amigos, todos de branco, que acompanhariam, no chão, o nosso carro. Não foi difícil descobrir entre tanta gente nossas amigas francesas (...). As francesinhas pulavam e cantavam no maior entusiasmo, mais brasileiras do que qualquer uma. (...)

A Beija-Flor penúltima do desfile, acabara de passar. Às nove horas em ponto, sol alto, foi dado o sinal de partida. Nosso carro, empurrado por homens fortes, foi deslizando lentamente pela passarela do samba, rodeado pelo cortejo de amigos, todos cantando o samba-enredo Jorge Amado Axé Brasil, dos compositores Beto Sem Braço, Aluísio Machado, Bicalho e Arlindo Cruz, tendo como puxador Silvinho:
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Sob os olhos graciosos de Oxalá
Desce a Serrinha
Esquenta o País do Carnaval
É muita pimenta, dendê e cacau.
Você sabe que tem festa, meu amor
Lá na Tenda dos Milagres, vem que eu vou, eu vou
Jubiabá tá no portão
E as iaôs jogam Pitangas pelo chão
Com os pastores da noite
Vem gente lá das Terras do Sem-Fim
Oriundo lá das matas de Oxóssi e Ossain
O famoso Valentim
E ao som dos atabaques
Rola o suor dos Ogãs
Olha que papo maneiro
Entre os velhos marinheiros e
Os novos capitães
Vem gente que sofreu demais
Lá do sertão e da beira do cais
É doce morrer no mar
Nos braços de Iemanjá
Tereza Batista cansada de guerra
No samba de roda esquece as mágoas
Tieta se beber faz graça
Quincas Berro D’água agitando a massa
Põe tempero na panela, Gabriela
Mexe, mexe com amor, cozinha com teu calor
Bota logo o vatapá na tigela
Quem mandou foi Dona Flor
É gente que chega e tem gente pra chegar
Êkchêupa ba ba, ê, êkchêupa ba ba
Axé Brasil, pai Amado saravá, saravá.

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Entre aplausos, ovacionado pelo público, o povo das arquibancadas e os graúdos dos camarotes, nosso carro seguia lentamente. Milhares de pessoas que haviam passado a noite inteira ali, assistindo ao desfile de todas as escolas, não arredaram pé, continuavam firmes em seus postos e, na maior animação, saudaram a passagem de Jorge, aplaudindo-o de pé.

Em ritmo de samba, axé Brasil, axé Jorge Amado, lentamente, a Império Serrano percorreu a passarela e chegou nos oitenta minutos cronometrados, nem um a mais, nem um a menos, à praça da Apoteose. Tempo curto demais para tantas e tamanhas emoções que jamais se apagariam.

Embora cercado de seguranças, ao descer do carro, Jorge não deixou de abraçar e distribuir autógrafos aos integrantes da escola, que, segundo ele, lhe deu o maior prêmio de sua vida literária.

Rodeado de fotógrafos e repórteres, Jorge dizia: "Meu coração foi posto à prova hoje e acabei de descobrir que ele é forte. Jamais esquecerei este dia e acho que o desfile renderá muitas histórias."

No dizer de Charles Chaplin, "as coisas boas duram o tempo necessário para se tornarem inesquecíveis".

(...)
Fico às vezes pensando se tantas e tais emoções não teriam contribuído para o agravamento da saúde de Jorge, mas prefiro achar que tantas e tais emoções o teriam ajudado a aproveitar a beleza da vida, teriam prolongado sua alegria de viver.

[texto extraído do livro “Vacina de sapo e outras lembranças”, Zélia Gattai, Editora Record, 2005, pp. 65-70 e 76]


Comments:
Bela narração!
Acredito que tão prazeroso quanto vivenciar esses momentos, é compartilhá-los a partir de palavras impressas. Como agora quando leio e me pego envolvido com a descrição de emoções, como os de uma criança, ansiosa e temerosa da experiência que vai viver...

TEr o coração posto à prova!

Lendo, senti saudades e espero poder presenciar novamente (com a Bah)o carnaval paulistano, que mesmo diferente do carioca, tem sua cor própria!

Bj Clélia
:-]
 
Eli,

Nunca vi uma escola de samba ao vivo! Deve ser emocionante ouvir e sentir o pulsar da bateria...

Escrever é algo mágico. Ler também.

bjo,
Clé
 
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