sábado, outubro 27, 2007
Zélia Gattai (IV)
A RAINHA DA RUA ALAGOINHAS
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Durante muitos anos as festas do Rio Vermelho se estenderam até nossa casa. O aniversário de Lalu, também a 2 de fevereiro, era festejado desde o romper da aurora até as tantas da noite. Carybé, o infalível, era o primeiro a chegar. Despertava-nos e a toda a vizinhança, soltando, de nosso jardim, barulhentos rojões, saudando a alvorada.
Para essa festa do aniversário da mãe, Jorge abastecia a casa com tudo do bom e do melhor e em grande quantidade. Mesmo assim, houve dia de faltar até água para os retardatários, no final da noite.
A presença de Viturina, mãe-pequena do candomblé do Bate Folha, era infalível, com seu famoso tabuleiro repleto de cocadas, brancas e pretas, e abarás. Com seu traje de baiana, instalada no jardim, não parava de fritar, num fogareiro ao lado, os mais deliciosos e dourados acarajés.
Nesse dia, Lalu era a própria Iemanjá, a receber cumprimentos, presentes e flores, de parentes, amigos ou de apenas conhecidos. Até desconhecidos iam chegando - não era open house? Sabendo do aniversário da mãe do escritor, havia quem aproveitasse a chance de conhecer a tão falada casa, levando, ao mesmo tempo, um presente para a rainha do mar e outro para a rainha da rua Alagoinhas.
Um gavetão da cômoda de Lalu ficava abarrotado de perfumes, talcos e sabonetes que ela recebia com prazer. Os presentes chegavam e mergulhavam no tal gavetão, jamais eram devolvidos, como, por vezes, acontecia com alguns de sua colega de festa, a caprichosa Iemanjá. Nas flores Lalu nem tocava, passava-as em seguida para mim, eu que tratasse de colocá-las em vasos, tantos que nem davam conta do recado. “A casa é tua”, dizia, “são para enfeitar tua casa...”
O que mais encantava Lalu era receber seus parentes, os sobrinhos que ela amava muito, e, sobretudo, abraçar seu irmão Firmo Ferreira Leal, a quem ela chamava de Zé Pedro. Coronel do cacau, desbravador da mata, homem direito, tio Firmo, mais do que a irmã, muito mais, tinha traços indígenas, não negava a raça. Ferreira Leal ele herdara do bisavô português que caçara a bisavó a dente de cachorro.
Até mamãe veio de São Paulo, certa vez, para o aniversário de Lalu. Ela tricotara um xale de lã para oferecer à aniversariante. Achamos que ela devia entregá-lo pessoalmente, aproveitando assim a ocasião de conhecer a festa de Iemanjá.
Enfrentando o medo do avião - ela dizia só temer a decolagem e a aterrissagem. Quando se via sobrevoando as nuvens, sentia-se garantida e o medo passava.
Lalu ficou contente com a vinda da velhinha. Era assim que ela se referia à mamãe, sendo que a velhinha era alguns anos mais nova do que ela. Em outras ocasiões que mamãe viera à Bahia, ficavam as duas conversando horas sem parar, mamãe grudada num tricô ou num crochê e Lalu contando histórias dos filhos, elogiando-os a mais não poder.
Lalu recebeu o xale: “Bonito, hem?” E em seguida comentou: “Coitada de dona Angelina, vive em São Paulo, uma geladeira, e pensa que na Bahia também faz frio.” Inda bem que a velhinha não ouviu o comentário.
Jorge fez questão de acompanhar mamãe à festa do largo para vê-la encantada com o movimento e a fila interminável de gente levando presente para Iemanjá: “Será que eles acreditam mesmo em milagres de sereia?”
Depois, em casa, mais assombrada ficou ao ver o entra-e-sai de pessoas que cumprimentavam a aniversariante, comiam, bebiam e iam embora.
Já bem tarde, fazíamos comentários sobre o movimento do dia quando mamãe disse: “Achei uma beleza a baiana fritando os acarajés, um cheiro se espalhando dava até água na boca!”
_ E quantos a senhora comeu? – perguntou-lhe Jorge.
_ Nenhum - respondeu.
_ Nenhum? Por quê?
_ Eu nem sabia quanto custava...
Todo mundo caiu na gargalhada, e dona Angelina tratou de mudar de assunto:
_ As pessoas aqui na Bahia são muito educadas. Teve até um homem que beijou minha mão.
_ E a senhora beijou a mão dele? – perguntou Lalu rindo.
_ Se eu beijei a mão dele? – admirou-se mamãe. _ Imagine...
Lalu não perdeu a ocasião de divertir-se:
_ Pois devia ter beijado. Aqui quando um homem beija a mão de uma mulher, ela beija a dele... Faz parte da educação baiana...
Mais tarde, a sós, mamãe comentou: “Essa sua madona é mesmo original!”
Não sei por que razão, mamãe sempre se referia a Lalu, chamando-a madona. Seria sogra em veneto?
O último aniversário de Lalu foi festejado em 1972. Ela partiu, nos deixou em março desse mesmo ano. Desde então, nessa data, em nossa casa de portas fechadas restou apenas um vazio enorme, uma saudade imensa.
Durante muitos anos as festas do Rio Vermelho se estenderam até nossa casa. O aniversário de Lalu, também a 2 de fevereiro, era festejado desde o romper da aurora até as tantas da noite. Carybé, o infalível, era o primeiro a chegar. Despertava-nos e a toda a vizinhança, soltando, de nosso jardim, barulhentos rojões, saudando a alvorada.
Para essa festa do aniversário da mãe, Jorge abastecia a casa com tudo do bom e do melhor e em grande quantidade. Mesmo assim, houve dia de faltar até água para os retardatários, no final da noite.
A presença de Viturina, mãe-pequena do candomblé do Bate Folha, era infalível, com seu famoso tabuleiro repleto de cocadas, brancas e pretas, e abarás. Com seu traje de baiana, instalada no jardim, não parava de fritar, num fogareiro ao lado, os mais deliciosos e dourados acarajés.
Nesse dia, Lalu era a própria Iemanjá, a receber cumprimentos, presentes e flores, de parentes, amigos ou de apenas conhecidos. Até desconhecidos iam chegando - não era open house? Sabendo do aniversário da mãe do escritor, havia quem aproveitasse a chance de conhecer a tão falada casa, levando, ao mesmo tempo, um presente para a rainha do mar e outro para a rainha da rua Alagoinhas.
Um gavetão da cômoda de Lalu ficava abarrotado de perfumes, talcos e sabonetes que ela recebia com prazer. Os presentes chegavam e mergulhavam no tal gavetão, jamais eram devolvidos, como, por vezes, acontecia com alguns de sua colega de festa, a caprichosa Iemanjá. Nas flores Lalu nem tocava, passava-as em seguida para mim, eu que tratasse de colocá-las em vasos, tantos que nem davam conta do recado. “A casa é tua”, dizia, “são para enfeitar tua casa...”
O que mais encantava Lalu era receber seus parentes, os sobrinhos que ela amava muito, e, sobretudo, abraçar seu irmão Firmo Ferreira Leal, a quem ela chamava de Zé Pedro. Coronel do cacau, desbravador da mata, homem direito, tio Firmo, mais do que a irmã, muito mais, tinha traços indígenas, não negava a raça. Ferreira Leal ele herdara do bisavô português que caçara a bisavó a dente de cachorro.
Até mamãe veio de São Paulo, certa vez, para o aniversário de Lalu. Ela tricotara um xale de lã para oferecer à aniversariante. Achamos que ela devia entregá-lo pessoalmente, aproveitando assim a ocasião de conhecer a festa de Iemanjá.
Enfrentando o medo do avião - ela dizia só temer a decolagem e a aterrissagem. Quando se via sobrevoando as nuvens, sentia-se garantida e o medo passava.
Lalu ficou contente com a vinda da velhinha. Era assim que ela se referia à mamãe, sendo que a velhinha era alguns anos mais nova do que ela. Em outras ocasiões que mamãe viera à Bahia, ficavam as duas conversando horas sem parar, mamãe grudada num tricô ou num crochê e Lalu contando histórias dos filhos, elogiando-os a mais não poder.
Lalu recebeu o xale: “Bonito, hem?” E em seguida comentou: “Coitada de dona Angelina, vive em São Paulo, uma geladeira, e pensa que na Bahia também faz frio.” Inda bem que a velhinha não ouviu o comentário.
Jorge fez questão de acompanhar mamãe à festa do largo para vê-la encantada com o movimento e a fila interminável de gente levando presente para Iemanjá: “Será que eles acreditam mesmo em milagres de sereia?”
Depois, em casa, mais assombrada ficou ao ver o entra-e-sai de pessoas que cumprimentavam a aniversariante, comiam, bebiam e iam embora.
Já bem tarde, fazíamos comentários sobre o movimento do dia quando mamãe disse: “Achei uma beleza a baiana fritando os acarajés, um cheiro se espalhando dava até água na boca!”
_ E quantos a senhora comeu? – perguntou-lhe Jorge.
_ Nenhum - respondeu.
_ Nenhum? Por quê?
_ Eu nem sabia quanto custava...
Todo mundo caiu na gargalhada, e dona Angelina tratou de mudar de assunto:
_ As pessoas aqui na Bahia são muito educadas. Teve até um homem que beijou minha mão.
_ E a senhora beijou a mão dele? – perguntou Lalu rindo.
_ Se eu beijei a mão dele? – admirou-se mamãe. _ Imagine...
Lalu não perdeu a ocasião de divertir-se:
_ Pois devia ter beijado. Aqui quando um homem beija a mão de uma mulher, ela beija a dele... Faz parte da educação baiana...
Mais tarde, a sós, mamãe comentou: “Essa sua madona é mesmo original!”
Não sei por que razão, mamãe sempre se referia a Lalu, chamando-a madona. Seria sogra em veneto?
O último aniversário de Lalu foi festejado em 1972. Ela partiu, nos deixou em março desse mesmo ano. Desde então, nessa data, em nossa casa de portas fechadas restou apenas um vazio enorme, uma saudade imensa.
[texto extraído do livro “Vacina de sapo e outras lembranças”, Zélia Gattai, Editora Record, 2005, pp. 55-59]
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