sábado, outubro 20, 2007
Zélia Gattai (I)
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O PRIMEIRO BEIJO
Foi naquela noite, a da reunião de amigos no apartamento de Jorge, com a revelação do sangue pataxó correndo em suas veias, que aconteceu nosso primeiro beijo.
Em certo momento, ele me pediu que o ajudasse a servir os convidados. Fui à cozinha buscar uns copos. Estava eu acabando de ajeitar os copos na bandeja, quando Jorge apareceu. "Vim buscar os vinhos", disse. Ambos de mãos ocupadas, voltávamos à sala, Jorge com uma garrafa em cada mão, eu segurando a bandeja, equilibrando os copos. Ao passarmos por uma porta, juntos um ao outro, paramos, de repente, sem saber por que, e nos fitamos. Nem a barreira de copos entre nós dois impediu que nossas bocas se aproximassem. Sem braços para abraçar, sem mãos para acariciar nem voz para sussurrar, apenas os lábios livres, sequiosos, se uniram num beijo delicado e ardente, de labareda e brasa.
Um contido tesão rolando entre nós dois desde o início, escravizado, reprimido a duras penas, rompeu as amarras, conquistou a alforria. Nessa noite não voltei para minha casa. Nem nessa noite, nem nunca mais. Ao lado de Jorge ficaria para sempre, até o fim de minha vida.[texto extraído do livro "Vacina de sapo e outras lembranças", Zélia Gattai, Editora Record, 2005, pp. 25-26]
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REMINISCÊNCIAS
Costumo contar, e não me canso de repetir, que ao conhecer Jorge Amado pessoalmente, em 1945, eu tudo sabia dele. Lera e adorara os dez livros que ele escrevera até então; entusiasmavam-me suas idéias políticas, sabia de seus exílios. Só não sabia que ele era tataraneto de uma índia pataxó.
Certa noite, numa reunião de amigos no apartamento que ele alugara e onde vivia em São Paulo, na praça Júlio de Mesquita, ao lado da São João, o tema da conversa, muito ao gosto do dono da casa, girava em torno de miscigenação. Entre outros amigos, lá estavam Dorival Caymmi - na ocasião seu hóspede -, Di Cavalcanti, Clóvis Graciano, Paulo Mendes de Almeida com Aparecida.
_ Por exemplo – dizia Jorge –, a começar por mim, nenhum de nós aqui é branco puro, todos nós temos mistura de raças. O sangue branco que eu trago vem do português que caçou na mata minha tataravó, uma índia pataxó. O sangue negro é do avô de meu pai, um negro africano.
Todo mundo caiu na risada ao ouvir a revelação de Jorge sobre a existência de uma tataravó índia e de um bisavô africano.
Para dizer a verdade, por mais apaixonada que eu estivesse por ele, não consegui acreditar nessa declaração. Achei que era uma invenção criada na hora para causar impacto. Nunca ouvira falar que Jorge tivesse sangue indígena e para mim ele era tão branco quanto eu. Entrei na conversa:
_ Pois eu - respondi - só tenho sangue branco. Meus pais são italianos puros.
Jorge soltou uma gargalhada:
_ Pois é o que você pensa! E OteIo? Você não sabia que é descendente de Otelo?
Esse Jorge inventava cada uma!
_ Eu tenho parentesco com OteIo assim como você é tataraneto de uma índia pataxó - respondi, na maior gozação.
_ Você não acredita que eu tenha sangue índio? Pois vai acreditar um dia quando conhecer minha mãe. Ela não tem apenas traços indígenas como também cabelos lisos, escorridos como os dos índios. Quanto a você, de seu parentesco com o negro OteIo, nunca vai se livrar...
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CANTADA EM POEMA
Um clima de encanto existia entre Jorge e eu desde o primeiro encontro, porém, nenhuma manifestação concreta ainda acontecera. Ele apenas declarava seu amor através de crônicas diárias, na coluna "Conversa Matutina" que escrevia para um jornal de São Paulo. "Leu a de hoje?", perguntava-me, encabulado, como se um adolescente fosse. Afirmando com a cabeça que sim, também voltava à adolescência, e ficava nisso.
Uma dessas crônicas, verdadeiro poema de amor, quase me mata:
Eu te darei um pente
para te pentear
Colar para teus
ombros enfeitar
Rede para te embalar
O céu e o mar eu vou te dar....
NOVAS ESTROFES DE AMOR
Três anos mais tarde, em Paris, Jorge fez novas estrofes para o poema que me dedicara em 1945 na sua coluna "Conversa Matutina". O maestro Cláudio Santoro a musicou e orquestrou. (...)Outra coisa já não sei fazer
Onde quer que te encontres, ai
Meu distante pensamento
Terno carinho meu
Hei de sempre te amar.
Venha, que a noite é longa
Triste da tua ausência
Meu infinito amor...
[texto extraído do livro “Vacina de sapo e outras lembranças”, Zélia Gattai, Editora Record, 2005, pp. 23-25 e 30-31]

Obras:
ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS - 1979 (memórias)
UM CHAPÉU PARA VIAGEM – 1982 (memórias)
SENHORA DONA DO BAILE – 1984 (memórias)
REPORTAGEM INCOMPLETA - 1987 (memórias)
PIPISTRELO DAS MIL CORES - 1989 (literatura infantil)
O SEGREDO DA RUA 18 – 1991 (literatura infantil)
CHÃO DE MENINOS – 1992 (memórias)
CRÔNICA DE UMA NAMORADA - 1995 (romance)
A CASA DO RIO VERMELHO - 1999 (memórias)
CITTÀ DI ROMA - 2000 (memórias)
JONAS E A SEREIA - 2000 (literatura infantil)
CÓDIGOS DE FAMÍLIA – 2001 (memórias)
UM BAIANO ROMÂNTICO E SENSUAL – 2002 (memórias)
MEMORIAL DO AMOR - 2004 (memórias)
VACINA DE SAPO E OUTRAS LEMBRANÇAS – 2005 (memórias)
http://www.record.com.br/detalhe.asp?titulolivro=7244&busca_tipo=T&busca_palavra=vacina%20de%20sapo
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT861446-1655,00.html
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT861053-1666,00.html
Já li muitas coisas esparsas escritas por ela, todas mostradas por você. Nunca li um livro inteiro dela. Lia Anarquistas graças a deus, mas parei na metade pois esqueci o livro na sala de espera do dentista. Perdi o livro. A gente até já deve ter comprado outro, mas nunca mais voltei a ele.
Gosto muito da Zélia escritora. Da maneira simples, clara, objetiva, confessional, como você mesmo disse, de escrever.
bjo
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