quarta-feira, agosto 08, 2007

 

O texto, ou: a vida (I)


Eis o que estou lendo:


Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que se ainda não aprendi não foi por falta de prática. Comecei cedo; minhas recordações de infância estão ligadas a isso: a ouvir e contar histórias. Não só histórias de personagens que me emocionaram, me intrigaram, me encantaram, me assustaram – o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os Macabeus, os piratas, Emília, João Felpudo, Huck Finn –, mas também as histórias que eu ouvia de meus pais, de parentes, dos vizinhos, e aquelas que eu próprio inventava.

Contar e ouvir histórias é fundamental para os seres humanos; parte de nosso genoma, por assim dizer. Sob a forma de mitos, as histórias proporcionavam, e proporcionam,
explicações para coisas que parecem, ou podem parecer, misteriosas. De onde veio o mundo? De onde surgiram as criaturas que o habitam? O
que acontece com o sol quando ele se põe? Mitos ou histórias proporcionam explicações que, mesmo fantasiosas (ou exatamente por serem fantasiosas), acalmam nossa ansiedade diante da vida e do universo. (...)

[Introdução de “O texto, ou: a vida – Uma trajetória literária”, Moacyr Scliar*, Bertrand Brasil, 2006, pp. 7-8]
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Pra Cecília, Bartira & Cauê.
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*Moacyr Scliar Traduzido para cerca de 15 idiomas, adaptado para a tevê, o cinema, incontáveis vezes premiado nacional e internacionalmente. Scliar, além de escritor é médico. E, além de médico, um escritor que não completa apenas a sua segunda face, mas um raro escritor, merecedor, como poucos, da palavra prolífico. Cronista (há 23 anos assina uma coluna semanal em importante periódico); contista (mestre do gênero em nossa língua, legítimo clássico vivo); romancista (O Exército de um Homem Só, de 1973; O Centavo no Jardim, de 1980; A Majestade do Xingu, de 1997; e Os Vendilhões do Templo, de 2006 – para ficarmos com um único título por década –, são referência obrigatória quando se trata de narrativa longa); autor infanto-juvenil e ensaísta. Só na poesia Scliar não se aventurou. Pior para a poesia.

[extraído da orelha do livro]

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Escrever, para mim, é um ato que preenche várias finalidades. Em primeiro lugar, é uma forma de organizar o mundo, de dar sentido às coisas, através daquela progressão lógica: princípio, meio, fim. Em segundo lugar, é um grande meio de comunicação com nossos semelhantes: a palavra escrita é um território que partilhamos em silêncio, em amável cumplicidade.

Escrever é contar histórias. Cheguei à literatura por causa disto, porque gostava de ouvir as histórias que meus pais, emigrantes, contavam e queria fazer como eles, contar também as minhas histórias, mas contar como os escritores que li desde pequeno (Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Jorge Amado) e que eu admirava. Por último, quero dizer que há, no escrever, um componente lúdico. Colocar as palavras uma ao lado da outra é um jeito de organizar o pensamento, mas é, sobretudo, um jogo, como aqueles jogos de armar. Tudo isso para dizer que escrever tem de ser sinônimo de prazer e emoção. Dar prazer e emoção ao leitor é a primeira tarefa do escritor.

Acredito, sim, em inspiração, não como uma coisa que vem de fora, que "baixa" no escritor, mas simplesmente como o resultado de uma peculiar introspecção que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas — o sonho, por exemplo. Mas só inspiração não é suficiente.

Moacyr Scliar

Links:
http://almanaque.folha.uol.com.br/moacyrscliar.htm
http://www.klickescritores.com.br/mscliar00.html
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=298
http://almanaque.folha.uol.com.br/moacyrscliar2.htm


Comments:
Moacyr Scliar me vicia.
 
que coisa interessante isso de escrever para organizar o mundo.
Queria desenvolver mais essa idéia.
Se é para ele, pessoalmente, e assim, a organização do mundo - por assim dizer restringe-se aos que escrevem.. ou a organização do mundo é algo nã-natural (por certo) mas convencional, dependendo de consenso.
Mas aí, vem a grande questão filosófica de Rousseau: quem escreveu primeiro para fazer e impor essa ordenação.
E mais ainda, só se escrve aquilo de que se já - anteriormente -participou.

Minha linda olhe o que vc faz comigo eu vir aqui num tempo absuradamente imposível, com o médico feito um garoto, esperando eu dizer: doutor só um minutinho:-)
Eu adro vc... continue a fazer isso conosco.
mas, por favor não deixe de ir lá no meu cantinho e iluninar o que se vê, com aqueilo que vc escreve e a gente l~e.
beijos, todos carinhosos
Meguita
 
Claudia,
Concordo com o Scliar, aliás um grande cara, sujeito muito bacana. Também escrevo para organizar o mundo, só que o interno. Preciso por em palavras escritas minha emoção. Só não acredito em inspiração. Se fosse esperar baixar o santo não escrevia nunca. Escrever é um trabalho como qualquer outro, exige disciplina.
Beijão
 
Cara Meguita,

Não tenho deixado de ir ao seu cantinho, não, apenas sinto-me incapaz de comentar seus posts... Vi, inclusive que o último, por coincidência, dá a definição também de um escritor (Haroldo Maranhão) do que seja, pra ele, escrever:

"Escrevo feito um possesso: como se me restassem horas de vida e precisasse escrever um romance de trezentas páginas. Escrevo. Como um possesso. E no entretanto deixo minutos escaparem, quartos e quartos de hora. (...)

Para mim, inventar nunca foi uma calma tessitura de palavras hesitantemente juntadas a outras palavras, plácido trabalho, costura lentíssima, lentíssimo enfiar de linha nas agulhas, o estirar o tecido passando-se as mãos para desenrugá-lo. Para que urgências, por que não começar amanhã a afiar os lápis, arrumar os papéis, pensar as palavras, a palavra inaugural, e qual será a palavra inaugural? A letra inaugural?, vogal, consoante, que consoante e que vogal, meu deus? Me surpreendo irado ao perceber que antes da primeira nota há pausas, um silêncio de anos, uma espera de anos, que a mim mesmo precede. (...)

Abcdefghijklmnopqrstuvwxzyz, as peças todas do meu puzzle, e mais cedilhas, vírgulas, acentos gravíssimos, agudos. E as pausas. As pausas. O não conseguir preencher vazios. O não conseguir preencher vazios. (...)"


[Texto introdutório, do livro "Senhoras & Senhores", Haroldo Maranhão, Rio, Ed. Francisco Alves, 1990]

Scliar, aqui, fala da necessidade de escrever como forma de organizar o mundo e o pensamento (externa e internamente) e como meio de comunicação: "a palavra escrita é um território que partilhamos em silêncio, em amável cumplicidade." Acho isso ótimo! Gosto, também, de me comunicar assim. E outro aspecto interessante, qu’ele aborda, é o lado lúdico da escrita: "é, sobretudo, um jogo, como aqueles jogos de armar. Tudo isso para dizer que escrever tem de ser sinônimo de prazer e emoção."

Falamos, coincidentemente, do mesmo tema, só não comentei. Que bom que você esteve aqui e o fez!

Adorei: olhe o que vc faz comigo eu vir aqui num tempo absurdamente impossível, com o médico feito um garoto, esperando eu dizer: doutor só um minutinho :-)

Bjão,
Clé
 
Olá, Lord, prazer recebê-lo aqui, mais uma vez!

Também não creio em inspiração, mas acho que, em alguns momentos, temos insights!

O Gil fala isso, em relação a compor: que é algo elaborado, penoso, braçal, mesmo...!

No livro "Todas as letras" (organizado por Carlos Rennó, 1996), há o comentário, sobre a composição "Drão" (1981): "Há canções de maturação, que começam por uma pílula de criação – por uma gota que colore a água no jarro e vai decantando; um dia você pega aquele precipitado lá no fundo e trabalha nele. (...)"

Farei um post sobre isso, qualquer dia... é um bom mote.

Também passei pelo seu blog, hoje, e li seu novo (e terno) texto:

"Aos quatorze às vezes sentia-me estranho. Sem saber por que surgia uma vontade enorme de estar sozinho. Recolhia-me. O quarto era grande. (...)

Mergulhava na escuridão. Punha um long-play na vitrola e deitava com a barriga para cima, olhando o teto com os olhos fechados. O primeiro disco de Maria Bethânia era o mais ouvido. Lançado em 1965, três anos depois continuava me fazendo companhia. Um pouco gasto, começando a chiar sob a agulha, ainda trazia inspiração. As letras das músicas acompanhando os sonhos, ajudando, alimentando a fantasia. (...)

O amor como um fogo ardendo sem doer. Estava no soneto que aprendi. Nunca esquecia. Tantos amores e nenhum. Ouvia música a tarde toda. Quando acabava o disco, repetia. Versos lindos. Caetano, Noel, Batatinha, Caymmi, Benedito Lacerda, João do Vale e Monsueto ensinando o menino que eu era.

À noitinha, sentia o vazio no peito abrandar. Descer para o estômago. A confusão de sentimentos em que estava mergulhado sofria violento estímulo externo. O cheirinho da comida de Alice invadia o quarto sem pedir licença. Abandonava correndo o exílio voluntário. Fome. Não havia fossa que resistisse."


Não comentei. Agora já sabe que gostei e, inclusive, me identifiquei. Sempre gostei de estar só...

Bjo,
Clélia
 
hum... eu acredito em inspiração. e em disciplina. acredito que escrever é uma combinação destas duas coisas, além de outra essencial: talento.

às vezes vc até tem tempo para escrever, mas onde foram parar as idéias? e as palavras? ou seja: a inspiração foi passear. :(
 
Ah, Pintinha, talento é, mesmo, essencial! E poucos têm...
 
inspiração [Do lat. tard. inspiratione]
Substantivo feminino
1. Ação ou efeito de inspirar(-se) ou de ser inspirado.
2. Fisiol. Ato de introduzir o ar nos pulmões, de inspirar (1 e 6).
3. Qualquer estímulo ao pensamento ou à atividade criadora.
4. P. ext. O resultado de uma atividade inspiradora.
5. Pessoa ou coisa que inspira; inspirador.
6. Ver estro 1 (1).
7. Teol. Moção divina que, segundo a crença cristã, teria dirigido os autores dos livros da Bíblia.

A acepção 3 parece-me a mais usual e pertinente. Este estímulo pode ser tanto interno quanto externo.

estro 1 [Do gr. oîstros, pelo lat. oestru]
Substantivo masculino
1. Engenho poético; imaginação criadora, inspiração, talento: “E Virgílio para viver necessitou que Augusto o violentasse pela sua generosidade criminosa a profanar o seu estro e a deslustrar o seu nome, comprando pela adulação o pão de cada dia.” (Latino Coelho, Cervantes, p. 154.)
2. Desejo sexual [v. cio (2)]: “A puberdade, a menstruação, a gravidez, a amamentação, os estros, o erotismo, .... demonstram como se tornam delicadas as questões de origem psicológica e ética que se relacionam ao instinto reprodutor.” (A. Austregésilo, Obras Completas, I, pp. 152-153.)
3. Biol. Período em que o macho é recebido pela fêmea e em que esta tolera o acasalamento ou coito; cio (3).
 
Clélia

Eu adoro ler os blogs das pessoas que sabem escrever!
Aqui eu sempre me encanto! Olha só! Hoje tem Moacir Scliar, Haroldo Maranhão, Lord (adorei!)e uma verdade que a Márcia falou: "além de disciplina e inspiração, precisa ter talento", como em qualquer outra arte e a minha arte é outra.

Mas adoro essa arte de vocês!

Bjs.
 
Rosa, querida

Eu também adoro ler quem sabe escrever bem... por isso, transcrevo!

O seu talento está em pintar, bordar, costurar, fazer chocolates maravilhosos! Coisas para as quais minha habilidade é ZERO! Cada um com seu dom, né não?

bjos,
Clé
 
Arnaldo, o seu vício me contagia...
bjo
 
*




ei!
vim deixar um beijo grandão.
grandão quanto tua capacidade de se expressar, emocionar, comunicar.
grandão quanto a vida.
felicidades.




*
 
mimosa, vim deixar aqui uns ovinhos especiais. :)
cheios de bons desejos.
parabéns!!!
 
'brigadão, Sean, 'brigadão Pintinha... Adorei a visita dos 2!

bjos
Clé
 
Pinta,

Ganhei "Fragmentos de um discurso amoroso" de presente, ontem, do Arnaldo e da Cecília. Adorei! 'Tô louca pra lê-lo, mas não posso abandonar o Scliar... Tentarei conciliar a leitura dos 2!

bjo,
Clé
 
contar histórias... Você contava pra nós quando éramos crianças... Me lembro da história do Caloca, do joelho, do umbigo, dos dedinhos...rs... Eu e a Cê já prometemos uma pra outra que faremos igual com nossos filhos e com os do Caco se ele deixar...
Saudades...
Smaaaaaaaaaaaaack!
 
Lembrei-me disso, Bá, ao postar as palavras do Scliar. Os livrinhos do Ziraldo; do Monteiro Lobato; as fábulas clássicas infantis; histórias de Shakespeare pra crianças... Era um tempo delicioso, com vocês 3 pequeninos!
Saudade tb.

bjos, pra você e o Caco,
tia Clélia (ou mãe 2)
 
Em tempo: Caloca, Bá... que personagem era este???
 
O Caloca era o dono da bola! Que no meio da brincadeira pegava a bola e ia embora quando era contrariado e ninguém mais brincava.

A história dele ficava num livro junto com a do Marcelo, Marmelo, Martelo!
 
Isso mesmo, agora eu me lembro! "O dono da bola", ambas da Ruth Rocha.
 
Bá, te escrevi no blog do tio Arnaldo, dê um pulinho lá tb... (nos comentários do post HOMENAGEM)
 
Clélia,
Só agora vi sua resposta e o elogio ao meu texto. Emocionei-me.
Obrigado
 
Como pôde ver, Lord, adoro transcrições! Pra mim, é uma forma de absorver o texto. Gostei muito do seu.

Volte sempre.

Clélia
 
Lord,

Respondi tb seu comentário no post A redenção do "y". Voltou lá?
 
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