domingo, agosto 26, 2007

 

O Texto, ou: a vida (II)


Surpreendi-me ao saber que Moacyr Scliar, como eu, havia lido, quando criança, o “Thesouro da Juventude” (minha coleção, com capa dura azul, continua guardada na estante da casa dos meus pais). Já a “Barsa”, também amplamente usada em trabalhos escolares, foi doada, há um bom tempo. Meu livros do Monteiro Lobato entreguei a uma amiga, que participava de uma gincana, em São José dos Campos (minha cidade natal). Arrependi-me, depois. Queria tê-los conservado...

De minha mãe adquiri o gosto pela leitura. Éramos pobres, não indigentes; não chegávamos a passar fome, mas tínhamos de economizar. Apesar disto nunca me faltou dinheiro para livros. Minha mãe me levava à tradicional Livraria do Globo e eu podia escolher à vontade. Desde pequeno estava lendo. De tudo, como até hoje: literatura infantil e revistas em quadrinhos, divulgação científica e romances.

Monteiro Lobato (1882-1948) era meu autor preferido. Mas eu também lia o Thesouro da juventude, uma enciclopédia infanto-juvenil em dezoito volumes e dividida em livros: O livro da Terra, O livro da natureza, O livro da nossa vida (belo títu­lo). Os textos despertavam a curiosidade dos leitores sob a forma de perguntas: De que é feito o Sol? Poderemos trans­portar-nos um dia para outro planeta? O que é o vácuo? (...)

Eu lia, lia, lia. Deitado num sofá, o livro servindo como barreira para o mundo exterior. Barreira para o mundo real, porta para o mundo imaginário que habitei durante grande parte de minha infância.

Interrompo a tarefa de escrever estas linhas, levanto-me, vou até a prateleira onde estão os meus livros infantis. Não os exemplares que devorei na infância: estes sumiram. Aos poucos, num sebo e em outro, fui refazendo parte de minha modesta biblioteca de então: Rute e Alberto, de
Cecília Meireles (1901-1964); Os nenês d'água, de Charles Kingsley (1819-1875); Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (1832-1898); As aventuras de Tibicuera, de Erico Veríssimo (1905-1975); História de um quebra-nozes, de Alexandre Dumas (1802-1870); Robin Hood, Tarzan, livros sobre pira­tas... Apanho um volume: é a trigésima edição de Cazuza, de Viriato Correia (1884-1967), obra concluída pelo autor jus­tamente no ano em que nasci – 1937. Folheio-a com a mesma sensação que tive pela primeira vez, a de descobrir um Brasil que eu não conhecia, (...). O Brasil do professor João Câncio dizendo – numa época em que o ufanismo era a tônica: "Somos um país pobre, um povo pobre... Mas justamente porque a terra não é a mais doce, nem a mais generosa, nem a mais rica é que é maior o valor de nossa gente". Humildes livros, bravos livros.

Minha mãe me introduziu à literatura tanto pelos livros que me comprava, como pelos outros, os que ela escondia de mim. Leituras proibidas: as obras do mesmo Erico Veríssimo que eu admirava como autor de histórias infantis, e que, na provinciana Porto Alegre de então, eram consideradas moralmente reprováveis. Porque falavam em sexo, claro, ainda que o sexo desses livros fosse até inocente comparado com o que a tevê mostra hoje. Minha mãe escondia esses livros no roupeiro, fechados à chave. Era a única coisa cha­veada em nossa casa; mas eu sabia onde ficava a tal chave, e tão logo minha mãe saía, eu voava para o roupeiro e ficava lendo aquelas páginas proibidas. Foi uma dupla iniciação, ao sexo e à literatura.

Erico Veríssimo foi uma grande influência, inclusive porque morava em Porto Alegre e a gente às vezes o via na rua, caminhando junto com a esposa, Mafalda: um homem simples, sorridente. O outro escritor que conheci precoce­mente foi
Jorge Amado (1912-2001). Amigo de meu primo, o artista plástico Carlos Scliar (1920-2001), muitas vezes se hospedou na casa do meu tio Henrique, pai de Carlos, junto com Zélia Gattai (1916- ). A chegada deles era uma festa; íamos até lá, e tudo o que eu queria era não falar com Jorge Amado, pois não me atreveria a tanto (ainda que ele fosse um homem acolhedor, afetivo), mas olhá-Io, olhar o homem que escrevia livros. Em seu livro de memórias, Um chapéu para viagem (1982), Zélia lembra as visitas a Porto Alegre e conta que entre as pessoas que vinham vê-Ios na casa do tio Henrique estava um garotinho bonitinho, loirinho, que depois viria a ser o escritor Moacyr Scliar. No processo de transformar garotinhos bonitinhos e, loirinhos em escritores, a vida nos castiga um bocado.

[extraído do livro “O texto, ou: a vida - Uma trajetória literária”, de Moacyr Scliar, Bertrand Brasil, 2006, capítulo 2, pp. 36-39]

Pesquisando sobre a coleção, na Internet, encontrei este artigo, do Luís Nassif, na Folha de S.Paulo:

São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

O meu "Thesouro da Juventude"
LUÍS NASSIF

Mudam os tempos, e hoje em dia se sabe, em tempo real, as transformações que ocorrem no mundo. Nos anos 20, o mundo também atravessava um processo de transformações profundas. O sistema educacional nem de longe tinha condições de acompanhar o que ocorria.

É nesse quadro que o "Thesouro da Juventude" cumpriu papel essencial na formação de gerações e gerações de brasileiros, dos anos 20 aos anos 70, não apenas trazendo novidades tecnológicas como descobertas científicas, novos hábitos, novos conceitos.

Aprendi a ler no "Thesouro da Juventude", assim mesmo, com "th", da W. M. Jackson Editores, edição de 1925, com prefácio de Clóvis Bevilacqua. Era de meu avô Issa. Contava os minutos para chegar à farmácia do meu pai, subir as escadas externas que davam no andar de cima, onde morava vovô. Corria para a estante, tirava um volume, abria no chão forrado por um cobertor e ficava de bruços devorando as páginas e as ilustrações a bico de pena.

Na "Introducção", Clóvis Bevilacqua indicava a obra para "meninos, adolescentes e homens do povo que teem sede de saber". Os editores definiam-no como uma enciclopédia popular, "um livro acerca de tudo para todos e especialmente para os jovens".

Eram 18 volumes, todos contendo uma seqüência de temas. A primeira gravura do primeiro tomo era uma pintura do Sistema Solar, com astros de todos os tamanhos e trens se lançando ao espaço para alcançá-los. De cara, éramos apresentados à nossa insignificância, passeando por todas as lições de "O Livro da Terra". Em seguida, entrava-se em "O Livro da Natureza", que tratava especificamente da vida nos animais e das plantas. Uma página colorida, finamente ilustrada, mostrava "os seres mais interessantes da Terra", dos conhecidos, águia, gaivota, gavião, leopardo, aos menos votados, sariguéa, píton, maçarico e buccinum.

Depois, pelo "Livro de Nossa Vida", destinado a desvendar a maravilha da humanidade. Havia "O Livro do Novo Mundo", que tratava desde os homens primitivos até a construção da América, e "O Livro do Velho Mundo", falando das antigas civilizações, com amplo relato sobre a China, sobre o seu isolamento que tirou-lhe a noção de progresso e de como, pouco a pouco, voltava a se abrir para o mundo.

Grandes invenções

Em um período de grandes inovações, as invenções eram tratadas no capítulo "Cousas que Devemos Saber" e as curiosidades em "O Livro dos Porquês".

Meu tema predileto eram os "Homens e Mulheres Célebres, Nobres Vidas, Nobres Feitos". Marco Polo inaugurava o primeiro tomo da coleção. Depois, abordavam-se a criação da famosa Escola de Sagres em Portugal e os navegadores portugueses.

Menos épico, mais infantil, era "O Livro dos Contos", estreando com "Sindbad o Marinheiro", e um bico de pena magnífico mostrando "A Ave Gigantesca e o Homem do Mar".

Uma parte que não me interessava muito, dada a minha invencível falta de habilidade para trabalhos manuais, era o "Cousas que Podemos Fazer", que ensinava desde como fazer uma caixa de madeira até a cortar o cordel mágico.

E aí se entrava em outro dos meus temas prediletos, "O Livro das Bellas Acções, Heroes e Heroínas do Mundo". A primeira história era "Irmãs pelo Sangue e pelo Heroísmo", narrando um capítulo familiar da resistência portuguesa contra a invasão espanhola no século 17. Depois, "O Sacrifício do Padre Damien", um belga que partiu para as Ilhas dos Mares do Sul para cuidar de leprosos.

Voltava-se para a literatura, com "O Livro da Poesia, o Bello Mundo dos Poetas", com "O Gigante Adamastor", trecho dos "Lusíadas". Depois, a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, uma das paixões da minha infância. E "Manhã em Petrópolis", de um certo José Maria Amaral, que, "se não é dos maiores poetas brasileiros, ocupa um lugar muito honroso na nossa história literária". Acho que houve alguma proteção em sua inclusão.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br

[http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1812200509.htm]


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Luis Nassif, introdutor do jornalismo de serviços e do jornalismo eletrônico no país. Comentarista econômico da TV Cultura. Vencedor do Prêmio de Melhor Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comunique-se, em 2003 e 2005, em eleição direta da categoria. Membro do Conselho do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Conselho de Economia da FIESP. Autor de "O Jornalismo dos anos 90", e "Menino de São Benedito". Finalista do Prêmio Jabuti, de 2003, na Categoria Contos/Crônica. Em 1995 lançou o CD "Roda de Choro", solando bandolim, semi-finalista do Prêmio Sharp de Música Instrumental.

[http://luisnassifonline.blog.uol.com.br/]


Comments:
Clélia,
Sua postagem emocionou-me por vários motivos. Primeiro pelas referências literárias. Muitas delas são semelhantes demais às minhas. Também li e tive durante muito tempo o meu Thesouro da Juventude, e fiz pesquisas usando a Barsa. Arrepiei-me quando você citou As Aventuras de Tibicuera e Cazuza. São dois dos livros que guardo com mais carinho em minha memória afetiva. Depois, quando citou Jorge, e a impressão que tinha dele, lembrei-me das minhas próprias. Também sempre o considerei um cara afável e amabilíssimo, só que mantive-me reverencialmente distante. Ontem, em casa de minha irmã, encontrei meu tio James, irmão de Jorge. Vindos da Bahia, ele e minha tia Luísa passam uns dias em São Paulo. A semelhança entre os dois é um assombro. O mesmo jeito alegre, irreverente, bonachão. Legal ouvir falar de Carlos Scliar. Toda minha vida ouvi meu tio James falar dele com muito carinho.
Grande beijo
 
Caro Lord,

Legal conseguir tocar/emocionar as pessoas. Moacyr Scliar também me tocou com seu relato, por isso quis deixá-lo aqui.

Pelo que entendi, você é sobrinho de Jorge Amado!? Faz, mesmo, jus ao título nobre, pois Jorge devia ser chamado de "meu rei", na Bahia...

bjo gde,
Clélia
 
Clélia

Eu também lia e adorava o Thesouro da Juventude. Acho que era uma coleção obrigatória na nossa época. Como foi comprada quando meu irmão e irmã mais velhos eram pequenos, eu não entrei na herança e eles repartiram a coleção, o que acho uma pena ter acontecido. Acho que eu abriria mão pra não separar os volumes.

Bjs.
 
Pois é, Rosa, estas relíquias, da nossa infância/adolescência, acabam se perdendo no tempo... Pena.

bjo,
Clé
 
Clélia para béns pelo lindo post.
Acho que todos nós, nos sentimos "um tanto normais", quando vemos que pessoas donas de uma inteligência e uma sensibilidade tão grande, tem semelhanças conosco, com a nossa vida ou maneira de viver.
Também não tive oportunidade de ter livros na minha infância e adolescencia, porém, isso não impediu que eu tomasse gosto pela leitura, não eram meus, mas eu os devorava, um após o outro.
Depois que casei sim, aí tive o gosto de ter muitos livros, pilhas deles.
Meu marido como um devorador de livros, tinha muitos deles.
Nos desfizemos de muitos, doando para escolas, adquirimos outros.
Incentivamos nossos filhos, e criamos bons leitores, hoje já o fazemos com nosso neto, que já gosta, e tenta imitar o vovô em tudo.
Enfim, isso é uma plantação, quanto mais plantamos, masi colhemos.
Adorei o post.
Um beijo
 
Anna,

Que bom receber sua visita, soube que estava doente... Melhorou?

A criançada gosta de nos imitar, mesmo! Se lemos, ouvimos música, assistimos filmes, eles adquirirão gosto por essas coisas tb...

bjão,
volte sempre,
Clélia
 
Clélia,
Não sou sobrinho de Jorge, infelizmente. O James Amado, irmão dele, é casado com minha tia Luísa, irmã de meu pai. Sou sobrinho de James.
Grande beijo
 
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