domingo, agosto 05, 2007

 

O homem que conhecia as mulheres



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Arnaldo já falou deste livro, em seu blog, aproveito o gancho pra deixar aqui a nossa crônica preferida (qu'ele sonegou...):

DORA

Trinta e dois, paulistana da gema, descende de italianos. Até conseguiu, depois de anos de giro por repartições, um passaporte italiano. Mas nunca usou. Orgulha-se de suas raízes. Mas é brasileira, sente-se assim, é paulistana, adora ser. Seus avós paternos vieram para o Brasil no começo do século, cada um em um navio. Fizeram esta cidade, diziam. Já morreram há tempos. Ela se lembra bem. Do avô comendo com babador, raspando o prato com pão. Da avó reclamando que ela, Dora, era muito magrinha e devia comer mais. Deles assistindo ao JN e se despedirem do locutor:

“Boa-noite para o senhor também.”

Eram amáveis, alegres, risonhos. Irônicos. Mas algo destoava. Não gostavam de nordestinos. Diziam que eles estragaram esta cidade, que eram ignorantes, sujos, analfabetos. Dora se perguntava: como é possível pessoas tão amáveis, que foram recebidas de braços abertos pelos brasileiros, detestarem outros brasileiros migrantes?

Dora amava seus avós. Mas essa lembrança a incomoda até hoje. E, para jogar com sua memória, ela sempre viaja ao Nordeste nas férias, adora, só ouve Chico Science e Otto e já dançou muito Luiz Gonzaga em forrós de Pinheiros.

Dora trabalha num sebo no centrão. Cruza sempre com um sanfoneiro na praça da Sé. Diverte-se com seu sotaque arrastado. Ela se pergunta: como alguém de São Paulo não ama tantos povos se cruzando? Dora se orgulha de sua cidade. No Oriente Médio, eles guerreiam. Aqui, vivemos em paz, cada um com sua doutrina. Dora concluiu: São Paulo é uma utopia, tem seus problemas, mas é única. Ela compra livros em casas de famílias. Em casas de judeus, árabes, japoneses, coreanos, russos, bolivianos. Seu carro está sempre cheio de livros.

Ela vive cercada por eles. Roda a cidade em busca deles. Compra de noite, deixa-os no carro e os leva no dia seguinte para o sebo. São Paulo tem de tudo, diz, quando perguntam no Nordeste sobre a cidade. Ela adora sair de carro, visitar famílias se desfazendo de livros, escolher e olhar capas emboloradas, adora o que faz, fazer passar de mão em mão tantas histórias, personagens e imagens bonitas de uns povos, que serão lidas por outros.

Numa noite, chegando ao seu apartamento de Perdizes, o garagista a cumprimentou. Era novo, recém-contratado, nordestino, aquele sotaque inconfundível, seu Luiz Carlos. Ele logo ofereceu ajuda para levar os livros para cima. Não precisa. Somos cercados por nordestinos, pensou. Eles fazem nossa segurança, nos ajudam. Paraibanos, pernambucanos, baianos. Cearenses, alagoanos, sergipanos. Eles fazem esta cidade. Seu Luiz gostou do título de um livro que estava jogado no banco traseiro e perguntou se ela podia emprestar.

Era A Queda, de Camus. Logo ela se lembrou dos avós. Será que vai gostar? Vai entender? É literatura para garagistas? Perguntou por que ele queria ler aquele um.

“Gostei do título”, ele repetiu. Claro, ela o emprestou. E subiu.

Na noite seguinte, ao estacionar o carro, esperou que seu Luiz dissesse algo. Mas ele, nada. Não deve ter lido. Ou parou na primeira página. Cumprimentou-o com um aceno e, quando estava para entrar no elevador, reparou que ele olhava para dentro de seu carro.

“Dona Dora, dona Dora, um minutinho. Seu livro.” Ela voltou para o carro. Ele apontou para um exemplar de O Velho e o Mar.

“Posso agora ler este aqui?”, perguntou.

Hemingway, frases curtas, linguagem sem metáforas. Sim, claro. Ela o emprestou. E ele devolveu o de Camus. “Gostou?”, Dora perguntou.

“É triste...”

Só disse isso. Que era triste.

Todas as noites, o novo garagista Luiz Carlos se aproximava, assim que ela encostava o carro, apontava um livro, pedia emprestado e devolvia o anterior.

Lia em uma noite. Provavelmente no banquinho da garagem. Seus comentários eram sempre sintéticos. Sobre O Velho e o Mar, disse: “Que dureza...” Sobre Dom Casmurro, disse: “Que infelicidade...” Sobre Cem Anos de Solidão, disse: “Que injustiça...” Sobre A Metamorfose, disse: “Que maluquice...”

Numa noite, assim que ela estacionou, ele já estava de olho no banco traseiro. Ela fechou os vidros, pegou sua bolsa, saiu do carro. E ele continuava intrigado. Ela aguardou, com a porta ainda aberta. Ele, mudo.

“Então, já escolheu?”, perguntou.

“Que nome lindo... Eu quero este aqui”, disse hipnotizado, devolvendo o exemplar da noite anterior.

“Qual vai ser?”

“Este aqui.
Grande Sertão: Veredas.”

“Tem certeza?”

“João Guimarães Rosa... É brasileiro, né?”

“É.”

“E é bom?”

“Dizem...”

Dora ficou envergonhada. Nunca tinha lido. Quer dizer, tentou diversas vezes, mas não conseguiu. Parava na página 40, sempre. Esperava um dia pegar hepatite ou se perder numa ilha deserta com um exemplar para lê-lo com paciência. Pensou em dizer para seu Luiz, olha, esse livro é difícil, muitos não conseguem ler. Mas se lembrou de seus avós. E achou que seria o teste definitivo. Todos dizem, não há nada superior a Grande Sertão. Aí está, senhor Guimarães, prove.

Dora o emprestou sem fazer um comentário. Na cama, antes de dormir, imaginou seu garagista naquele banquinho, com os olhos assustados, procurando os significados daquela língua inventada e invertida, livro que muitos levam meses para ler.

Na noite seguinte, Dora entrou com o carro e viu seu Luiz com o livro aberto no colo, sem desgrudar dele. Ela não o interrompeu. E, mesmo se precisasse de ajuda, ele não tiraria os olhos do livro. Isso aconteceu nos outros dois dias. Foi na quarta noite que, ao estacionar o carro, seu Luiz se aproximou. Assim que ela saiu, ele estendeu o livro, devolvendo-o.

“Então?”, ela perguntou.

Ele só suspirou. Não deve ter gostado, concluiu.

“Qual livro o senhor vai querer hoje?”

“Hoje? Nenhum. Não preciso mais...”

Disse e voltou pensativo para o seu banco. Quando ela estava para entrar no elevador, ouviu ele repetir:

“Eu sabia. Desde o começo. Era uma mulher. Aqueles olhos verdes... Diadorim era mulher. Eu sabia, desde o começo...”


[Extraído do livro: "O homem que conhecia as mulheres", Marcelo Rubens Paiva*, Editora Objetiva, 2006, pp. 62–66]



Pra Grazi, que vive, hoje, em Campo Grande/MS,
vizinho, por um estreito e pequeno trecho,
das Minas Gerais de
Guimarães Rosa.


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*Marcelo Rubens Paiva, paulistano, nasceu em 1959. Ganhador do Prêmio Jabuti (1983), Moinho Santista (1985) e Shell de Teatro (2000), estudou na Escola de Comunicações e Artes da USP, freqüentou o mestrado de Teoria Literária da Unicamp e o Knight Fellow Program da Universidade de Stanford, Califórnia. Publicou os romances Feliz ano velho (1982), Blecaute (1986), Ua:brari (1990), Bala na agulha (1992), Não és tu, Brasil (1996) - todos reeditados pela Arx -e O amor e outras curvas (2003). Publicou o livro de crônicas As fêmeas (1994), também reeditado pela Arx. Foi traduzido para o inglês, espanhol, francês, italiano, alemão e tcheco. Atua também como jornalista desde 1982: destacou-se como crítico literário da revista Veja, apresentador do programa Fanzine da TV Cultura e colunista e articulista do jornal Folha de S.Paulo e da revista Vogue RG.

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Adendo: Lendo Moacyr Scliar (“O texto, ou: a vida – Uma trajetória literária”, Bertrand Brasil, 2006, 272 p.), encontrei:

(...) como se sabe que uma idéia é boa? “Quando os pêlos do braço se arrepiam”, respondia Hemingway; o que faz sentido. Trata-se de uma reação visceral que não controlamos, mais autêntica, portanto, do que aquilo que passa pelo nosso raciocínio. Os pêlos do braço, movidos por músculos lisos (não dependentes de nossa vontade), são sinceros: se eles se põem de pé para aplaudir a idéia, podemos ter certeza de que ela brotou do mais íntimo, do mais visceral, do nosso ser.

que vem ao encontro do que acontece comigo ao ler esta crônica do Marcelo Paiva: o final dela sempre me arrepia...

[Pro Eli, que, sei, também gosta destas coincidências e associações.]





Comments:
Clélia que lindo texto, não conhecia esse do Marcelo Rubens Paiva.
As vezes sou sr. Luis, outras sou dona Dora, acho que todos somos um pouco assim.
Me envergonho as vezes de nunca ter lido algo, que todo mundo fala e fala, e me sinto uma ignorante.
Me orgulho outras, por já ter lido tanats coisa lindas e boas, e que tantas vezes me identifiquei, ou mesmo me serviram de parâmetro ou exemplo de vida.
Tenha um bom domingo.
Um beijo
 
Cara Anna,

Adoro esta crônica do Marcelo! Considero-a simples, sensível, criativa. Devo confessar que, como Dora, não li também GSV...

Mas não há do quê se envergonhar, nem se achar ignorante. Fazemos, constantemente, escolhas e, com isso, algo sempre é preterido...

Gostei de saber que continua vindo aqui!

Um ótimo domingo pra você também!

bjo,
Clélia
 
Oi, Clélia!
Eu tenho o mesmo sentimento da Anna quanto à leitura de livros e confesso que não tenho muita paciência tb.

Gostei da crônica!

Bom fim de domingo.

Bjs.

ps: e o braço como está?
 
Belo texto mesmo!
:-]
 
Ah, Rosa, ler é tão bom...!

Saímos, ontem, no final da tarde, pra assirtir a um show do Francis Hime, no Café Filosófico da CPFL, em Campinas. Ele & piano, composições clássicas, lindas, gravadas num songbook, agora relançado. Ficamos em pé, e isso, na nossa idade e condição física, é um tanto desconfortável. Cecília, sentou-se no chão, próxima ao palco.

Meu braço está melhor, o médico aboliu a tipóia, passou novos exercícios, mas ainda há restrições de movimento e dor, se abuso. Mês que vem iniciarei fisioterapia. Ainda não estou dirigindo.

E a sua cirurgia, qdo será?

bjão,
Clé
 
Eli,

Fiz um adendo ao post e me lembrei de você.

bjo,
Clé
 
Clélia!

Fico imaginando como é bom ter um marido companheiro pra sair e assistir um bom show, ou simplesmente sair pra passear!
Passeamos quando vamos a Florianópolis, mas nunca a shows, ele não gosta. Em compensação passa os dias lendo agora que está aposentado, últimamente livros sobre o Egito ou civilizações antigas. Mas ele tem uma cabeça incrível, o que lê nunca esquece, ao contrário de mim. Acho que por isso não tenho muita paciência.

E eu adoro shows ou qualquer encontro que tenha música. Meu genro é cantor profissional, tenho um filho que toca gaita ponto muito bem, o outro toca violão, não tão bem, pois nem tem tempo e um cunhado que é percussionista. Então, qdo se juntam, é uma festa! E tu acreditas que às vezes meu marido vai dormir? É pra matar!!!

Desculpa o jornal!
Bjs.
 
Uma família musical, Rosa... que delícia!

Arnaldo e eu temos muita coisa em comum e foi exatamente isso que nos aproximou... Conheci-o num festival de música, onde amigos concorriam com uma canção, que, no final, acabou ganhando! Isso aconteceu em dezembro de 1980, em São Paulo. Desde então, estamos juntos!

Não há do quê se desculpar... Imagina!?!

bjo,
Clé
 
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