sexta-feira, agosto 17, 2007

 

Minha biblioteca




Arnaldo já falou do livro e eu transcrevi uma crônica, num post sobre o “Herdando uma biblioteca”, de Miguel Sanches Neto. Esta também se encaixa no contexto. A ilustração acima, extraída do próprio capítulo, é de Laurabeatriz:
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Minha biblioteca
Ana Miranda


Existe uma estranha geografia em minha cabeça, que se refere a um mundo em torno de mim, um mundo físico, palpável, mas de significados infinitos. Essa estranha geografia surgiu do meu hábito de viver trancada num escritório cheio de livros. Esses livros dispostos numa serena ordem um ao lado do outro representam a minha mente como um mapa a um país. Se fecho os olhos, as prateleiras de livros se acendem dentro de minha cabeça, como se minha cabeça fosse também um aposento forrado de estantes de livros em que cada um deles é uma porta para um mundo diferente. Todos são logicamente posicionados, de acordo com um sistema funcional. Se me recordo de um desses livros, meu olhar vai diretamente ao lugar em que se encontra. Raras vezes algum se perde, mas quando isso acontece caio numa espécie de desespero. Algumas vezes basta olhar a lombada de um deles para receber sua influência, como uma secreta ligação, feito as ondas do mar em relação à Lua. Às vezes sinto um apelo irresistível, como se um deles me chamasse, e seja em que momento for, levanto da cadeira, retiro o livro da estante e o folheio, para ouvir o que tem a dizer. Esses livros determinam meus sentimentos, meus pensamentos, meu entendimento do mundo. Eles são o mapa de minha alma. Cada um deles representa uma região, um lugar onde estive, e onde ainda estou.

Há entre eles, claro, os livros escritos por mim, mesmo os traduzidos em outras línguas. Ficam separados numa das prateleiras, rabiscados desde a primeira página onde se encontram as palavras manuscritas: “meu exemplar de trabalho”. A leitura sistemática e assídua que realizei nestes últimos anos, sendo grande parte sobre livros de história ou história literária, dotou minha mente de uma desconfortável consciência histórica. Assim, tenho sempre a sensação de que nada me pertence, de que nenhuma palavra que escrevi é minha, de que não sou autora de meus próprios trabalhos, mas apenas um elo na construção literária da humanidade, uma pequena e frágil conexão entre um e outro tempo, massacrada pelas circunstâncias históricas.

Todos esses livros são para mim seres vivos, que sorriem, choram, zombam, ensinam, atraiçoam, respiram. Há cerca de vinte anos vivo por eles dominada. Quando criança tive uma pequena biblioteca, da qual me lembro de apenas alguns títulos. Ao sair da casa de meus pais, aos dezessete anos, ela ficou em meu quarto, e se perdeu. Tive depois disso apenas uma biblioteca que se foi ampliando com o tempo. A cada vez que eu me mudava de casa, levava caixotes repletos de livros. A cada mudança eram mais e maiores caixotes. Houve um momento em que a minha coleção de livros passou a ser realmente uma biblioteca, quando precisei criar uma ordem, a fim de que pudesse encontrar os volumes. Isso aconteceu cerca de quatro anos antes de eu publicar o meu primeiro romance, quando eu morava numa mansarda cujas janelas se abriam para uma paisagem de telhados, quando aprendi a conhecer o mundo dos telhados, povoado de gatos, estrelas e a Lua, além de alguns animais repugnantes, como lagartixas ou algum camundongo perdido. A mansarda tinha apenas dois ambientes: um escritório, uma cozinha-armário e um jirau que servia de quarto formavam o primeiro ambiente; o outro era apenas um desproporcionalmente grande banheiro onde cabiam máquina de lavar e de secar roupas. O escritório tinha apenas uma das paredes coberta de livros, organizados por gêneros, como romance e conto, poesia, ensaio, livros de referência. Eu tinha uma vida austera e comprava livros com parcimônia. Cada livro que passava a fazer parte de minha biblioteca tinha um significado para mim, havia sofrido uma espécie de prova e se integrado à minha estrutura pessoal. Eu os sentia todos ligados a mim por fios invisíveis. Sair de perto deles era uma espécie de rompimento, e eu me sentia perdida. Passei a gostar de permanecer apenas ali perto deles, uma espécie de prisioneira voluntária, conformada, até mesmo feliz.

Em seguida me mudei para um lugar maior, onde o escritório todo em madeira era voltado para um jardim – também apareciam gatos, estrelas, a Lua, ratos e lagartixas, além de caracóis, lesmas, vorazes lagartas verdes que acabaram se tornando minhas amigas, minhocas, joaninhas, uma infinidade de bichos moradores ou visitantes – e três paredes de estantes abrigavam uma quantidade bem maior de livros. Lembro-me de minha atividade ao mesmo tempo frenética e monótona, subindo e descendo degraus, tirando e devolvendo livros, abrindo e fechando páginas, guardando, registrando na mente cada lugar, cada palavra, cada frase que se tornava importante para mim. Na época eu ainda dispunha de espaço, estava numa situação financeira um pouco melhor e tinha ganância em adquirir livros, que se amontoavam na minha cabeceira esperando a vez de serem lidos até merecerem entrar no recinto sagrado de meu escritório. Eu buscava não apenas livros novos, quer dizer, ainda não lidos por mim, como tentava recuperar os que havia lido na adolescência ou mesmo na idade adulta e que estavam perdidos, fisicamente. Ainda tinha a ilusão de que poderia guardar comigo todos os livros do mundo.

Hoje vivo num escritório mais amplo, branco, com janelas de vidro rasgando uma das paredes de um a outro lado, por onde se avistam a cidade do Rio de Janeiro, o mar, as ilhas Cagarras, Palmas, Redonda etc., o céu, estrelas, a Lua. Em vez de gatos ou insetos vejo pássaros ou surpreendentes balões dirigíveis, ou helicópteros, ou aviões. A biblioteca que me circunda é imensamente maior do que as anteriores, apesar de meu rigor na entrada e permanência dos volumes. Os meus livros convivem pacificamente com os livros de meu marido. É uma casa onde os livros são o centro de tudo. Há livros na sala, no quarto, na cozinha, no corredor, nos quartos das crianças, claro, no quarto da empregada (minha assessora especial diz que na próxima vida voltará como escritora), livros no banheiro. Os livros, como as pessoas, têm seu destino. Penso sempre no que acontecerá com esses livros, depois de minha morte, se é que algum dia eu vá morrer, sempre tenho a esperança de assistir à descoberta da fonte de imortalidade. Meu filho não terá interesse por eles? Quem sabe algum neto. Alguém os comprará a quilo para serem vendidos num sebo? Talvez eu possa doá-los a uma instituição, ou a pessoas amadas, como fez um amigo meu que morreu muito jovem e sua morte anunciada permitiu que ele fizesse um testamento distribuindo sua biblioteca.

Graças a ele, tenho edições antigas de Proust, Updike, Milan Kundera ou Guimarães Rosa.

[texto extraído do livro “Deus-dará – crônicas publicadas na Caros Amigos”, Ana Miranda, Casa Amarela, 2003, pp. 46-51]



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Ana Miranda nasceu em Fortaleza, em 1951. Cresceu em Brasília e morou no Rio. Mora atualmente em São Paulo. Publicou dois livros de poesias, e os romances Boca do Inferno (1989, prêmio Jabuti 1990), O retrato do rei (1991), A última quimera (1995), Desmundo (1996), Amrik (l997) e Dias & dias (2002, prêmios Jabuti e Academia Brasileira de Letras 2003), assim como o livro de contos, Noturnos (1999), editado pela Companhia das Letras. Em 1996 publicou a novela Clarice. Em 1998, a antologia Que seja em segredo e em 2000, Caderno de sonhos, pela Dantes Editora. Tem livros publicados em diversos países. Colabora com a revista Caros Amigos desde maio de 1997.

[extraído da orelha do livro]
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mansarda [Do fr. mansarde]
Substantivo feminino.
1. Arquit. Telhado formado por águas [v. água (12)] quebradas, com duas inclinações, sendo a inclinação inferior quase vertical e a superior quase horizontal.
2. Arquit. O último andar de uma edificação, formado pela inclinação inferior do telhado em mansarda (1).
3. Morada miserável.

jirau [Do tupi]
Substantivo masculino. Bras.
1. Estrado de varas sobre forquilhas cravadas no chão, us. para guardar panelas, pratos, legumes, etc.: “Em frente, ou no chão, ou sobre um jirau de madeira, vasos, paneiros, pedaços de panelas, restos de potes, cheios de flores.” (José Veríssimo, Cenas da Vida Amazônica, pp. 342-343.)
2. Armação de madeira sobre a qual se edificam as casas a fim de evitar a água e a umidade.
3. P. ext. Qualquer armação de madeira em forma de estrado ou palanque.
4. Cama de varas: “quedou imóvel, em aparente tranqüilidade, sobre o jirau soerguido do solo por quatro espeques toscos” (Coelho Neto, Sertão, p. 20).
5. Arquit. No interior de um compartimento, piso (3) a meia altura que cobre, apenas parcialmente, a sua área. [Cf. pódio (4).]
6. Bras. V. sobreloja.


Comments:
Queria eu herdar um Guimarães Rosa...

No começo, a impressão que se tem é de que "lá vem uma daquelas maníacas por livros". Mas vejo como uma paixão pura mesmo, que só faz bem.

A casa muda, o endereço se altera, mas os livros (como se fossem a alma), seguem juntos de seu dono.


Bj, Clélia
:-]
 
"(...) os livros (como se fossem a alma), seguem juntos de seu dono."

Bonito isso, Eli!

bjo,
Clé
 
Clélia,
Cresci rodeado por livros. Meu pai recebia muitos de presente, comprava outros tantos. Houve época em que eu, pequeno, achava que todos os livros que fossem escritos apareceriam, automaticamente, em minha casa. Você já reparou como livro ocupa espaço? Todo ano havia como que um ritual. Meu pai e minha mãe faziam uma seleção, separavam aqueles volumes que não queriam, tiravam a primeira página caso houvesse dedicatória, colocavam no porta-malas do carro e levavam a um sebo. Se não fosse assim, em muito pouco tempo, teríamos que dormir no quintal. Certa vez, ainda novinho, assisti a um filme e considerei que talvez fosse a solução. Um nativo da Índia, com aquelas roupas típicas, sentado no chão, lia um livro. Conforme ia lendo arrancava a página, amassava, jogava no lixo. Achei o cúmulo do desprendimento. A veia rebelde, do jovem que eu era, se deliciou.
Grande beijo
 
Caro Lord,

"Houve época em que eu, pequeno, achava que todos os livros que fossem escritos apareceriam, automaticamente, em minha casa."

Muito bom isso!

"Certa vez, ainda novinho, assisti a um filme e considerei que talvez fosse a solução. Um nativo da Índia, com aquelas roupas típicas, sentado no chão, lia um livro. Conforme ia lendo arrancava a página, amassava, jogava no lixo. Achei o cúmulo do desprendimento. A veia rebelde, do jovem que eu era, se deliciou."

Jamais teria este desprendimento, apegada, que sou, aos meus livros, CDs, papéis... (pensando bem, até aos arquivos guardados em meu computador!)

bjo gde,
Clélia
 
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