quarta-feira, agosto 01, 2007
A CASA DE PAPEL (II)

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Nunca escrevo em livros, nem a lápis. Raramente, uso caneta de realce (como a ferramenta disponível no Word) pra destacar trechos ou palavras. Faço anotações em caderno, ou papel avulso (adoro escrever em guardanapos!) pra recapturar o que desejo e minha memória não reteve. Sou aficionada por palavras e seus significados, por isso, muitas vezes, há glossários, no final de alguns posts. Hábito meu. De pesquisa e tentativa de aprendizado. Minha memória é mais visual que auditiva; mais olfativa, gustativa & tátil (como vêem, ouço mal!). Tenho cuidado com nossos livros e discos e dificilmente os empresto. Lendo este capítulo, refleti um pouco sobre isso tudo...
[prólogo pro G.].
“(...) morava sozinho em sua casa da rua Cuareim e devorava quantos livros chegassem às suas mãos, junto a inúmeros pacotes de balas e caramelos que coalhavam o chão de seus quartos. O hábito dos caramelos substituía o do cigarro, que os médicos lhe haviam proibido, e era tão aflitivo como sua paixão pelos livros, reunidos em longas estantes que ocupavam os quartos, do chão ao teto, de ponta a ponta; empilhavam-se na cozinha, no banheiro e também em seu dormitório. Não o original, porque dali havia sido desalojado, mas no sótão onde fora dormir, junto a um pequeno banheiro. A parede da escada que levava até lá também estava apinhada de livros, e a literatura francesa do século XIX velava, digamos, seu magro sono.
“Teve coleções completas de revistas antigas, muita história clássica, quase toda a literatura russa do século XIX, coleções de literatura americana, livros de arte, ensaios de filosofia e comentários sobre esses ensaios; todo o teatro grego e o isabelino, a poesia peruana até meados do século XX, vários incunábulos mexicanos, primeiras edições de Arlt, Borges, Vallejo, Onetti, e de Valle-Inclán, sem contar as enciclopédias, dicionários, folhetos e edições dos viajantes pelo rio da Prata.
“Chegou a ter tantos volumes (acredito que tenha superado os vinte mil) que a sala, nada pequena, acabou atravessada por estantes similares às das bibliotecas públicas. O banheiro tinha livros em todas as paredes menos nas do chuveiro, e se não se estragavam era porque deixara de banhar-se com água quente para evitar o vapor. No verão ou no inverno, tomava banho de água fria.” (...)
_ Sabe o que ele chegou a fazer? (...) _ Deu o carro de presente a um amigo para poder ocupar a garagem. Não teve sorte com a mudança. Naquele ano o inverno foi terrível e as goteiras estragaram uma coleção da Summa Artis, que tem um papel muito fino, acetinado, e se perdeu definitivamente. Como eu tinha duas coleções, dei-lhe uma para repô-la. (...)
_ Teve a sorte de aposentar-se cedo e recebeu uma herança da mãe. Exatamente, discutimos muito sobre o destino desse dinheiro. Insisti em que não o gastasse nos leilões, e sim na conservação de suas estantes. Mas já lhe disse: era um leitor voraz e passava não quatro horas, mas grande parte do dia e uma noite inteira com os livros.
Suas edições ficavam fatalmente manuscritas.
“Eu não marco os livros. Faço as anotações à parte e as introduzo nas páginas enquanto trabalho. Depois as tiro e jogo-as no lixo.”
_ Por que não as conserva? - perguntei, espantado.
_ Veja, não é qualquer um que escreve. Quer dizer: não deveria fazê-lo. Anoto as coisas que me interessam. Associações. As indicações que me levam a outros livros e uma que outra reflexão. São as notas de um leitor. (...)
“Confesso-lhe que algumas reflexões me tentaram, mas um leitor é um viajante a passar por uma paisagem que foi construída. E é infinita. A árvore foi escrita, e a pedra, e o vento no galho, a nostalgia por esse galho e o amor ao qual emprestou sua sombra. E não encontro uma felicidade maior do que percorrer, em poucas horas diárias, um tempo humano que de outro modo me seria alheio. Uma vida não é suficiente para percorrê-lo. Roubo a metade de uma frase de Borges: uma biblioteca é uma porta no tempo.
“Freqüentemente costumávamos conversar sobre essas coisas. Pedia-lhe que não arruinasse edições muito valiosas com seus horrendos garranchos. É claro que ele não me dava ouvidos. Eu o acusava de ser insensível e ele a mim de dissimulado, assuntos que nos recriminávamos, deve entender, com total confiança. Dizia que se escrevia nas margens e sublinhava, muitas vezes com várias cores cifradas, conseguia dar sentido. Acredito não incomodá-lo se repito uma de suas expressões, um tanto grosseiras: ‘Eu trepo com cada livro, e se não há marca não há orgasmo.’ A mim, em compensação, o garrancho sempre me pareceu uma brutalidade semelhante à arrogância de suas palavras. Tenho um prazer enorme em abrir uma edição em qualquer parte e que não fiquem páginas levantadas, contemplar um bom entrelinhamento, a tipografia, as amplas margens brancas; abrir, em cada aniversário, um livro de páginas não cortadas.”
(...) interrompeu-se, como se acabasse de fazer uma confissão imprudente. (...)”
["A Casa de Papel", de Carlos Maria Domínguez, 2006, Editora: Francis, pp. 41-46]
Pra Bia Alessi, amiga, artesã, devoradora cuidadosa de livros.
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incunábulo [Do lat. *incunabulu, ‘berço’, sing. do lat. incunabula (pluralia tantum).]
Substantivo masculino.
1. Começo, origem: “nos seus nebulosos incunábulos a filosofia grega é essencialmente naturalista. É sobre a matéria que ela firma .... os seus primeiros alicerces” (Latino Coelho, A Oração da Coroa, pp. LXXXVIII-LXXXIX).
2. Bibliol. Livro impresso nos primórdios da imprensa, i. e., a partir de meados do séc. XV, até o último dia, inclusive, do séc. XVI: “No seu exílio na Inglaterra foi no que principalmente se empenhou o último rei de Portugal: em reconquistar, a alfarrabistas, manuscritos, incunábulos e livros raros portugueses.” (Gilberto Freire, Aventura e Rotina, p. 161.)
3. P. ext. Impresso produzido nos primórdios de qualquer sistema de gravar, compor ou imprimir: incunábulo da fotocomposição.
Adjetivo.
4. Diz-se de incunábulo (2).
incunábulo [Do lat. *incunabulu, ‘berço’, sing. do lat. incunabula (pluralia tantum).]
Substantivo masculino.
1. Começo, origem: “nos seus nebulosos incunábulos a filosofia grega é essencialmente naturalista. É sobre a matéria que ela firma .... os seus primeiros alicerces” (Latino Coelho, A Oração da Coroa, pp. LXXXVIII-LXXXIX).
2. Bibliol. Livro impresso nos primórdios da imprensa, i. e., a partir de meados do séc. XV, até o último dia, inclusive, do séc. XVI: “No seu exílio na Inglaterra foi no que principalmente se empenhou o último rei de Portugal: em reconquistar, a alfarrabistas, manuscritos, incunábulos e livros raros portugueses.” (Gilberto Freire, Aventura e Rotina, p. 161.)
3. P. ext. Impresso produzido nos primórdios de qualquer sistema de gravar, compor ou imprimir: incunábulo da fotocomposição.
Adjetivo.
4. Diz-se de incunábulo (2).
Comments:
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Tem alguma coisa fora da ordem mundial. Falar em livros, ok, ótimo mesmo, também adoro. Citar, idem. Mas você é refém de você - fica numa cilada metafórica porque os textos terminam sendo teus! - quando cita, cita e não escreve. Como se não pudesse. Afinal, estamos eternamente escrevendo e reescrevendo histórias. Se me entende.
Os textos não são meus, G(?), mas, na maioria das vezes, expressam o que sinto e penso, ou fazem-me refletir, repensar, considerar outra óptica. Daí transcrevê-los... Escolher capítulos ou trechos de um livro, uma música ou um filme, isso diz muito de mim, sem que eu precise falar/escrever. E não quero. É uma prerrogativa que me concedo. Foi esta a proposta, desde o início do blog (se você pôde acompanhá-lo, ou observou o cabeçalho). Te entendo, sim. E acho importante e pertinente a tua intervenção. Mas eu sou assim. E o blog reflete o qu’eu sou.
Valeu a visita. Volte + vezes...
Clélia
Valeu a visita. Volte + vezes...
Clélia
Clélia
Conforme o livro eu marco ou escrevo a lápis, outros marco no índice e outros não marco nada. Aí não teve orgasmo, hehehe.
Comecei meu blog com a intenção de transcrever o que os outros escrevem, pois não tenho o dom. No fim viste no que deu? Mas eu adoro isso aqui!
Bjs.
Conforme o livro eu marco ou escrevo a lápis, outros marco no índice e outros não marco nada. Aí não teve orgasmo, hehehe.
Comecei meu blog com a intenção de transcrever o que os outros escrevem, pois não tenho o dom. No fim viste no que deu? Mas eu adoro isso aqui!
Bjs.
Cada um com seu jeito, seu estilo, seu dom, Rosa... Há espaço pra todos!
Bom te ver por aqui!
Já voltou de Floripa?
bjos,
Clé
Bom te ver por aqui!
Já voltou de Floripa?
bjos,
Clé
e agora? eu escrevo nos meus. a lápis, nas margens. faço anotações. circulo palavras. desenho carinhas. rabisco coisas. às vezes até a caneta, e às vezes até mesmo coloridinhas.
um de meus livros preferidos, "Fragmentos de um Discurso Amoroso", do Barthes, é totalmente rabiscado. é um intertexto. é do Barthes e é meu. tenho até vergonha de emprestar, pois diz muito de mim. aliás, tem livro meu que nem empresto, por pudor mesmo. minto que não tenho. morro de vergonha que me vejam nas margens.
puxa, que coisa maluca este teu post.
ah, sei lá. eu gosto deste teu blog. quando vc transcreve outros, esta seleção diz muito. nunca é apenas uma seleção. pra mim tá ótimo. :)
um de meus livros preferidos, "Fragmentos de um Discurso Amoroso", do Barthes, é totalmente rabiscado. é um intertexto. é do Barthes e é meu. tenho até vergonha de emprestar, pois diz muito de mim. aliás, tem livro meu que nem empresto, por pudor mesmo. minto que não tenho. morro de vergonha que me vejam nas margens.
puxa, que coisa maluca este teu post.
ah, sei lá. eu gosto deste teu blog. quando vc transcreve outros, esta seleção diz muito. nunca é apenas uma seleção. pra mim tá ótimo. :)
Pois é, Pinta... Como aqui em casa somos 4 (contando com minha mãe, que passa a maior parte do ano fora), portanto, 4 potenciais leitores de todos os livros que temos, seria injusto um de nós sair riscando, grifando, realçando coisas pessoais neles! Arnaldo, certamente, não tem este hábito. Um livro, nas mãos dele, volta pra estante praticamente como saiu. Parece intocado. Mas ele o leu, integralmente, e o assimilou. Depois disso, deixa de ter sentido, pra ele, tê-lo na estante. Poderia ser emprestado, doado, ou vendido a um sebo. Eu, ao contrário, gosto de voltar aos livros, relê-los, extrair trechos significativos, transcrevê-los/digitalizá-los, indicá-los (como faço no blog). É também uma forma d’eu assimilar melhor o que li. Cecília, com os didáticos, agora, na faculdade, usa aqueles papeizinhos coloridos com adesivo nas bordas (sticks?), facilmente removíveis. Quando sei que o livro será lido apenas por mim (tipo livro Clélia), aí, sim, pego a canetinha lumicolor(?) amarela, e saio pintando, como você! Deixar marcas, vestígios num livro o personifica. Ele passa, mesmo, a ser teu. Te revela. Achei muito interessante esta passagem de Carlos Maria Domínguez. Um contraste de posições que me fez pensar...
Legal que 'cê goste do blog, pois sei que és uma pintinha muito exigente! Eu adoro visitar o seu...
bjão,
Clé
Legal que 'cê goste do blog, pois sei que és uma pintinha muito exigente! Eu adoro visitar o seu...
bjão,
Clé
Pinta,
Não tenho, nem li Barthes. Pesquisei sobre o autor e o livro Valeu como dica!
Clé
Em tempo: Você não colocou este livro na sua lista TOP 5 books... ;-o
Não tenho, nem li Barthes. Pesquisei sobre o autor e o livro Valeu como dica!
Clé
Em tempo: Você não colocou este livro na sua lista TOP 5 books... ;-o
Tenho uma relaçao quase sexual com livro não lido. Eu o pego, ainda na estante da livraria, e começo a namorá-lo. Folheio suas páginas, aprecio a ilustração, acaricio sua capa com carinho, como se estivesse acariciando uma bunda, com delicadeza. Quando ele chega em casa, o namoro continua, mesmo que ele fique meio esquecido, na fila de prioridades. E mesmo que muitos anos se passem, que ele fique velho e manuseado por outras pessoas, ele continua me seduzindo.
O processo de lê-lo é o ápice da relação. Eu interajo com ele de maneira tão prazerosa que extraio dele tudo o que ele tinha a me oferecer. Com isso, quando o termino, ele passa a ser um vazio sem nenhuma importância. O que me encantava nele não está mais em suas páginas,mas na minha cabeça.
O processo de lê-lo é o ápice da relação. Eu interajo com ele de maneira tão prazerosa que extraio dele tudo o que ele tinha a me oferecer. Com isso, quando o termino, ele passa a ser um vazio sem nenhuma importância. O que me encantava nele não está mais em suas páginas,mas na minha cabeça.
"O que me encantava nele não está mais em suas páginas, mas na minha cabeça."
Uma cabeça privilegiada, qu'eu admiro, invejo & adoro...!
bjo
Uma cabeça privilegiada, qu'eu admiro, invejo & adoro...!
bjo
Eu escrevo à parte, em um caderninho ou papel solto. O ruim é que depois fica uma paeplada toda solta, aí sou obrigada a guardar tudo junto pra não perder.
Se não gosto do livro, não consigo passar das primeiras páginas. tento, mas não consigo. Tenho mania de ler uns dois livros ao mesmo tempo. Comecei a ler Cem anos de solidão mas já estou com sentido em outro que vou ganhar emprestado.
Minha filha de oito anos adora ler e escrever também.Adora poesias, guarda na memória as que mais gosta. Tomara que continue assim, devorando os livros, mais que eu.
Bjs
Se não gosto do livro, não consigo passar das primeiras páginas. tento, mas não consigo. Tenho mania de ler uns dois livros ao mesmo tempo. Comecei a ler Cem anos de solidão mas já estou com sentido em outro que vou ganhar emprestado.
Minha filha de oito anos adora ler e escrever também.Adora poesias, guarda na memória as que mais gosta. Tomara que continue assim, devorando os livros, mais que eu.
Bjs
Oi, Lu, surpresa boa te ver por aqui!
Pois é, eu tb sou a rainha dos papeizinhos...! Arnaldo costuma ler 2 livros ao mesmo tempo, geralmente, 1 de ficção, outro não. Às vezes, também faço isso, mas sem me importar muito com a classificação, daí, os personagens invadem a história uns dos outros!
Que graça, a sua filha memorizando poesias! Na verdade, ela gosta de ler e escrever por seguir o seu modelo... Está no caminho certo!
Bjo,
Clé
Pois é, eu tb sou a rainha dos papeizinhos...! Arnaldo costuma ler 2 livros ao mesmo tempo, geralmente, 1 de ficção, outro não. Às vezes, também faço isso, mas sem me importar muito com a classificação, daí, os personagens invadem a história uns dos outros!
Que graça, a sua filha memorizando poesias! Na verdade, ela gosta de ler e escrever por seguir o seu modelo... Está no caminho certo!
Bjo,
Clé
também leio mais de um livro ao mesmo tempo. :P
compra o Fragmentos, do Barthes. acho que vc vai adorar este livro. é para a vida toda.
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compra o Fragmentos, do Barthes. acho que vc vai adorar este livro. é para a vida toda.
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