segunda-feira, julho 23, 2007

 

VIRGINDADES




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Adquiri, tempos atrás, uma edição portuguesa de A queda, de Albert Camus. Lembro que ao tentar folheá-lo, já em casa, percebi que suas páginas estavam lacradas. Usei um estilete ou tesoura pra separá-las, com cuidado, pois não desejava danificá-las. Pensei ser um erro de encadernação, quando me dei conta que, antigamente, os livros eram assim...

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VIRGINDADES


Ganhei uma espátula da Universidade de Salamanca, trazida por um amigo, também amante de livros. Não a uso para abrir cartas, sou afoito demais quando o assunto é correspondência, rasgo o envelope, insensível aos bons modos. A espátula de inox dorme em minha escrivaninha, sem muita utilidade, mas pronta para o serviço raro a que foi destinada: desvirginar velhos livros que me chegam lacrados. Quando a biblioteca de Temístocles Linhares foi vendida a um sebo, quase todos os seus livros estavam devidamente lidos. Encontrei sem abrir apenas exemplares de suas próprias obras. Os que trouxe para casa foram logo passados pela lâmina cega de minha espátula. Se não estou com ela, uso uma régua que, embora menos nobre, também se presta a esse tipo de tarefa galante.

Quando os livros ainda vinham lacrados, ficava explícita uma face do leitor. Observando sua biblioteca, víamos sua preferência. Tinha lido este livro até a página tal, nem sequer abrira aquele outro – dava para levantar dados de uma história da leitura de cada proprietário a partir do lacre dos volumes.

Gostaria que os livros voltassem a sair fechados, isso ajudaria a detectar o nível de leitura das bibliotecas particulares. Mas sei que é impossível. Como o mercado espera que o leitor compre uma grande quantidade de obras, tudo que possa despertar nele uma consciência de que esta aquisição desbragada é inócua será evitado. Saudoso de um tempo do qual não participei, ando pelos sebos à procura daqueles volumes intocados, mesmo que não tenham muito interesse, pois os quero como objetos de recuperação memorialística de uma outra idade editorial. Diante de um livro fechado, aflora urgente minha missão de leitor.

Publicando seu primeiro livro em 1946, pela José Olympio, então nossa mais prestigiosa casa editorial, Wilson Martins esteve no Rio para o lançamento. Graciliano Ramos tinha lugar cativo na livraria e Wilson foi levado a dedicar um exemplar de seus ensaios ao grande romancista, que, assim que o recebeu, tirou um pente do bolso e pôs-se a abrir suas páginas, sem nem ler a dedicatória. Talvez diante dos olhos entusiasmados do jovem crítico, Graciliano se viu obrigado a explicar sua atitude.

_ Um dia desses um amigo foi em casa e viu em minha estante seu livro ainda fechado. Agora, sempre que recebo algum exemplar, abro na hora. Para evitar confusões.

Cuidado que outros intelectuais nem sempre tinham. Bisbilhotando a biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, hoje pertencente à Unicamp, encontrei um velho volume de Mário Quintana que nunca tinha sido manuseado pelo crítico. Pensei na hora em abri-lo, mas aquele era um dado importante sobre preferências de leitura, refletindo certo descaso pelo grande poeta gaúcho, embora Sérgio Buarque tenha escrito dois parágrafos sobre O aprendiz de feiticeiro em um artigo de 1951 (O espírito e a letra, p. 347). Se nenhum leitor mais ousado avançou sobre o voluminho de poemas, Quintana permanece intocado numa prestigiosa biblioteca moderna. E este fato dá indícios de como era a recepção de sua poesia no centro do campo literário.

Morando em quartos de hotel, sempre com uma vida financeira complicada, Mário Quintana não chegou a formar biblioteca pessoal, embora em várias fotos apareçam muitos livros empilhados em cantos de seu modesto aposento. Mas era um leitor criterioso, que abominava, entre outras coisas, livros lacrados. E escreveu sobre isso em "alma errada" (Baú de espantos, p. 71):

Há coisas que minha alma, já tão mortificada, não admite:

assistir novelas de TV
ouvir música Pop
um filme apenas de corrida de automóvel
uma corrida de automóvel no filme
um livro de páginas ligadas
porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo:
espátulas não há... e quem é que hoje faz questão de virgindades...

Se me deprime ver um livro ruim lacrado, pois penso em todas as ilusões do autor, em todo o seu desejo de comunicação, sofro muito mais ao saber que um poeta essencial ficou tanto tempo fechado, esperando um leitor imprevidente.

Enquanto não passar pelos olhos do leitor, que o incorporará, na maioria das vezes inconscientemente, ao seu universo de referências, o livro não chega a ser propriamente livro. É apenas papel impresso. Um objeto que só ocupa espaço no mundo físico, uma ferramenta desprovida de sua principal função, a de interferir na constituição do humano.

Uma de minhas professoras de catequese, em nossa primeira aula, nos contou a história de sua relação com a bíblia. Tem o tom das narrativas edificantes, mas talvez, ao tirá-la de seu contexto, eu consiga dar-lhe nova roupagem. Ela nos trouxe duas bíblias, uma velha, pequena, a encadernação esgarçada, marcas de dedos no papel, e uma de capa dura, letras douradas e marcador vermelho, de seda, colado na lombada. E nos perguntou qual bíblia era melhor. Nós, crianças pobres, desejosas de uma vida material mais requintada, escolhemos a grande. A professora disse-nos que também tinha sido esta a sua escolha. Comprara aquela porque se envergonhava da outra, que a acompanhava desde a adolescência. Mas, depois que comprou, não quis estragar a bíblia nova, destinada a decorar o balcão da sala de jantar. Ela continuou fazendo suas leituras religiosas na antiga. E então nos perguntou, de que vale uma bíblia que não foi lida?

Olho os livros velhos em minha estante, encadernações estragadas (os que eram apenas colados soltaram suas folhas) e penso que eles podem ser chamados de livros, pois seguem em mim.

[extraído do livro "Herdando uma biblioteca", Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 77-81]
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MIGUEL SANCHES NETO
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É autor do romance Chove sobre minha infância, Um Amor Anarquista e do livro de contos Hóspede secreto (Prêmio Cruz e Sousa 2002). Crítico literário da Gazeta do Povo e da revista Carta Capital, leciona literatura brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR.


Comments:
Tenho alguns "papéis impressos", na estante, que comprei há 4 ou 5 anos e até hoje não li... Um dia se tornarão livros.

Belo texto! Abraços!
 
Tenho mais livros na minha estante do que eu serei capaz de ler na minha vida. esta constatação me sufoca.
 
Ah! eu conheço o escritor.

Por um momneto levei um sussto, me perguntei:
Será que a Clélia é bibliotecária?
Porque eu também sou, ou fui:-)
beijos, querida
Tá provado seu blog é bo e vou já djá linka-lo.
Merece.
Beijão
Meg
 
Nós temos uma porção deles, Diego! E, como diz o Arnaldo, não sei se conseguiremos torná-los todos livros um dia...
bjo,
Clé
 
Meg,

Conheci Miguel Sanches através de artigos na Carta Capital. Fui, então, atrás dos seus livros.

Não, não sou bibliotecária, mas bem que gostaria de ser... Adoro livros! Adoro as palavras!

Trabalho com revisão de textos: TCCs, monografias, dissertações, teses...

Que bom que você aprovou meu blog! Explore-o mais... e comente os posts, se quiser.

Visitarei o seu tb.

bjão,
Clé
 
Acho que fui arrogante dizendo que eles tornariam-se livros um dia... talvez não tornem-se... ou talvez sim... são tão poucos... bem menos do que eu gostaria de ler em uma vida...
 
Arrogância não, Diego, é uma questão de priorização. Seu tempo está sendo empregado em outras coisas, tão ou mais importantes que a leitura deles...
 
minha mais doce amiga!! milhões de abraços a todos. essa semana estive com a Cecília literalmente nas mãos. uma foto dada a mim, como pontes que ligam destinos e confortam distâncias.numa sede de conversas e abraços molhados estarei esperando seu contato. comverdier@hotmail.com. grazi
1/2 século te abraça!! bjs
 
Grazi, é você???
Já lhe enviei um e-mail...
 
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