quinta-feira, maio 24, 2007
Alfonsina y el mar
Dentes de flores, coisa de orvalho
mãos de ervas, tu, amável nutriz,
prepara-me os lençóis de terra
e a colcha de musgos capinados.
Vou dormir, ama-de-leite, deita-me,
põe uma lâmpada à minha cabeceira,
uma constelação qualquer;
todas são boas; inclina a luz mais um pouco.
Deixa-me só: ouve brotar os ramos...
lá do alto do céu um pé te embala
e um pássaro desenha teus compassos
para que esqueças... Gracias. Ah, um recado:
se ele chamar novamente ao telefone
diga-lhe que não insista, que me fui...
Ela caminhou na areia, com o passo lento e os olhos frios e a boca muda deixou-se levar pelo mar, a fria esmeralda, transformando em poesia sua própria morte. Crepúsculo. Como Safo, atirou-se ao mar, de um rochedo. Como Virginia Woolf, que afogou-se no rio com uma pedra amarrada aos tornozelos. Trágica coerência. Alfonsina Storni criou uma perfeita metáfora da morte em "Yo en el fondo deI mar" (1934): a morte é uma cidade marítima de beleza alucinante, edificação desesperada, casa de cristal, peixe de ouro que lhe traz um ramo vermelho de flores de coral sereias de nácar, verde-mar, colunas de prata, veludos de coral são a arquitetura da nova e definitiva "casa humana", que nada pode perturbar, onde nenhum ruído chega. O silêncio. "Um sol branco, uma luz esmerilhada e ambarina banha esse páramo de estranha quietude onde os poucos seres vivos - sereias, animais do mar - apenas balançam." O desenlace. Se a vida começou no mar, no mar termina.
Alfonsina Storni é uma das maiores musas latino-americanas, a mais popular de todas as poetisas argentinas, famosa não apenas pela zamba gravada por Mercedes Sosa: "Te vas Alfonsina con tu soledad que poemas nuevos fuiste a buscar?"
Não apenas por suas poesias de uma natureza exultante e amorosa, de uma simplicidade lingüística admirável para a época, não apenas por suas inquietações, sua luta contra as condutas sociais encobridoras da feminilidade, mas também por uma existência dramática.
Sua vida foi de grande desamparo econômico e carência afetiva. Nasceu na Suíça italiana, em 1892, filha de argentinos. Viveu a infância em San Juan e depois em Rosario, onde seu pai abriu uma cafeteria chamada Café Suizo. Alfonsina teve uma breve experiência como atriz mambembe. Fez a escola normal em Corondo e tomou-se professora em Buenos Aires. Num período muito difícil de sua vida teve um filho, Alejandro, e precisou trabalhar como caixa, balconista de loja, redatora publicitária.
Quando seus trabalhos em poesia lhe deram um pouco mais de estabilidade, com a publicação de livros e a consagração por meio de um importante prêmio literário, Alfonsina passou a colaborar com revistas e jornais, a freqüentar as rodas literárias, tertúlias de pintores, a viajar para a Europa e a dar conferências. Foi a primeira mulher a comparecer aos banquetes de escritores, reservados até então aos homens. Fez uma célebre apresentação que deslumbrou o público, junto à poetisa que recebeu o Nobel, Gabriela Mistral, e Juana de Ibarbourou.
Alfonsina deixou oito livros publicados. Logo depois de sua morte, seus poemas de amor, os mais espontâneos e atávicos, do começo, uma celebração instintiva da experiência erótica, passaram a ser recitados nas casas, nas ruas, aos ouvidos dos enamorados. Com o tempo sua poesia posterior, mais enigmática, foi sendo compreendida e apreciada.
Ela escrevia com a intuição. Os poemas vinham à sua mente "prontos na forma e no conteúdo". Quase em transe ela escrevia a "maioria dos sonetos em poucos minutos, a lápis, em um lugar público, um veículo em movimento, ou em seu leito, acordando a toda hora" - ainda que depois gastasse meses em revisões. Seus livros foram escritos entre tarefas esmagadoras que a impediram de "serenar-me, completar minha cultura, fazer uma sossegada obra de arte".
Atrás dessa história banal de uma vida de escritora, há a sua verdadeira biografia, que se passa numa dimensão mais profunda: seus desencontros, suas decepções, seu definitivo pessimismo quanto às possibilidades do amor, o suicídio do melhor amigo, o escritor Horacio Quiroga, o câncer no peito, seu isolamento, o seu irreversível desassossego, até sua morte em 1938, aos 46 anos de idade.
Sua vida e sua poesia são cheias de pressentimentos, "tengo el presentimiento que he de vivir muy poco" (1918), uma víbora branca que docemente lhe pique o coração, "Un día estaré muerta, blanca como Ia nieve" (1919), a morte foi tomando seus poemas, "una luz tamizada que ha de cubrirme toda, con su velo impalpable como un velo de boda", o silêncio a chamava, o silêncio e a morte aos poucos se tornaram uma obsessão, o silêncio era a imagem da morte, a água azul, a melancolia era a morte, "Oh, muerte, yo te amo, pero te adoro, vida...", o mar surgiu como a paz final, os traços de seu destino se delineavam, em frente ao mar; das ondas prisioneira, "Oh, mar, dame tu cólera tremenda", mar, eu sonhava ser como tu és, mar, dá-me o inefável empenho de tornar-me soberba, inalcançável, como dizer o mal que me devora, o qual me devora e não se acalma? O seu corpo e a sua alma cada vez mais invadidos pelos musgos, ervas, camadas de terra, "Epitafio para mi tumba" (1934): "Aquí descanso yo: dice Alfonsina", o mar sem fundo, almas abraçadas a suas largas crinas. O mar imóvel. Paredes de água me farão cortejo na tarde resplandecente, a morte: mística flor, técnica e fria. Lua minguante. A poesia: não me atrevo a mirar teus olhos puros.
[extraído do livro “Deus-dará – crônicas publicadas na Caros Amigos”, de Ana Miranda, 2003, Casa Amarela, pp. 34-38]
Glossário:
zamba
substantivo feminino
Rubrica: dança, música.
dança tradicional argentina com acompanhamento musical em compasso binário
[verbete extraído do Dicionário Eletrônico Houaiss]
páramo [De or. pré-romana, pelo lat. paramu]
S. m.
1. Planície deserta: "O mar dorme tranqüilo e sossegado, / E o céu daquele dia / É como infindo páramo azulado." (Gonçalves Crespo, Obras Completas, p. 73.)
2. P. ext. A abóbada celeste; o firmamento.
3. A porção alpina dos Andes.
[Plural: páramos]
tertúlia [Do esp. tertulia]
S. f.
1. Reunião familiar.
2. Agrupamento de amigos.
3. Assembléia literária: "de regresso, as reuniões de quinta-feira no habitáculo desarrumado dos ficcionistas ..... Naturalmente, nessas tertúlias, .... os censores à Pontmartin e Planche eram desancados" (Agripino Grieco, Estrangeiros, p. 158).
atávico [Do lat. atavu, 'quarto avô', + -ico]
Adj.
1. Adquirido ou transmitido por atavismo.
atavismo [Do lat. atavus, 'quarto avô', + -ismo]
S. m.
1. Reaparecimento, em um descendente, de um caráter não presente em seus ascendentes imediatos, mas, sim, em remotos: "Quanto mais homens conheceres, mais diferentes almas sentirás em ti. Folias com os alegres; sonhas com os poetas; os aristocratas, criados entre artifícios, amam em ti, pelo atavismo de seus apetites grosseiros, teus instintos rudes, e tu amas neles suas fidalgas maneiras" (Antero de Figueiredo, Cômicos, pp. 168-169).
[Cartão postal com a poesia “Dolor” e o monumento à memória da grande poeta, em frente ao mar (em Mar del Plata), onde ela um dia entrou para não mais voltar.]
DOLOR
Alfonsina Storni
Quisiera esta tarde divina de octubre
Pasear por la orilla lejana del mar;
Que la arena de oro, y las aguas verdes,
y los cielos puros me vieran pasar.
Ser alta, soberbia, perfecta, quisiera,
Como una romana, para concordar
Con las grandes olas, y las rocas muertas
Y las anchas playas que ciñen el mar.
Ver cómo se rompen las olas azules
Contra los granitos y no parpadear;
Ver cómo las aves rapaces se comen
Los peces pequeños y no despertar;
Pensar que pudieran las frágiles barcas
Hundirse en las aguas y no suspirar;
Ver que se adelanta, la garganta al aire,
El hombre mas bello, no desear amar...
Perder la mirada, distraídamente,
Perderla, y que nunca la vuelva a encontrar;
Y, figura erguida, entre cielo y playa,
Sentirme el olvido perenne del mar.
Links:
http://es.wikipedia.org/wiki/Alfonsina_Storni
http://cvc.cervantes.es/actcult/storni/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Safo
Pelo título da crônica, lembrei-me, imediatamente, da linda canção, homônima, interpretada por Mercedes Sosa e citada por Ana:
Alfonsina y el mar
Ariel Ramirez et Félix Luna
Intérprete: Mercedes Sosa
(em homenagem à poetisa argentina Alfonsina Storni)
Por la blanda arena que lame el mar
su pequeña huella no vuelve más
y un sendero solo de pena y silencio llegó
hasta el agua profunda
y un sendero solo de penas puras llegó
hasta la espuma
Sabe Dios que angustia te acompañó
qué dolores viejos calló tu voz
para recostarte arrullada en el canto
de las caracolas marinas
la canción que canta en el fondo oscuro del mar
la caracola
Te vas Alfonsina con tu soledad
¿ qué poemas nuevos fuiste a buscar ?
Y una voz antigua de viento y de sal
te requiebra el alma
y la está llamando
y te vas, hacia allá como en sueños,
dormida Alfonsina, vestida de mar.
Cinco sirenitas te llevarán
por caminos de algas y de coral
y fosforescentes caballos marinos harán
una ronda a tu lado.
Y los habitantes del agua van a jugar pronto a tu lado.
Bájame la lámpara un poco más
déjame que duerma, nodriza en paz
y si llama él no le digas que estoy,
dile que Alfonsina no vuelve.
y si llama él no le digas nunca que estoy,
di que me he ido.
Te vas Alfonsina con tu soledad
¿ qué poemas nuevos fuiste a buscar ?
Y una voz antigua de viento y de sal
te requiebra el alma
y la está llamando
y te vas, hacia allá como en sueños,
dormida Alfonsina, vestida de mar.
(letra extraída do site: http://egophelia.free.fr/7ophelie/alfonsina.htm)
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E fiz, ainda, outra associação, ao assistirmos, Cecília & eu, ontem à tarde (ela, pela 1ª vez, eu pela enésima), o filme As horas (2002), dirigido por Stephen Daldry, com Nicole Kidman, Julianne Moore & Meryl Streep, baseado no romance homônimo de Michael Cunningham, que apresenta trama paralela de um dia na vida de três mulheres, uma delas, Virginia Woolf, escrevendo seu livro Mrs. Dalloway. Com a belíssima trilha sonora de Philip Glass.
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Para ouvir uma das faixas, "Morning Passages", clique aqui.
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Pra Jaqueline.