sábado, janeiro 06, 2007

 

Veia Bailarina


(...) “Temos a incrível e maravilhosa capacidade de nos defender,
caminhando fora do real.
Quem quer realidade o tempo inteiro?
A realidade é insuportável e não somos heróis, somos apenas humanos e fracos.
Nestes momentos a vida se mostra em todo seu mistério e fragilidade.
E afirma que não temos controle sobre ela, por mais que queiramos.
Ela tem seus caminhos próprios, escondidos,
atalhos, becos, cuja existência tem um só sentido:
reduzir-nos à humildade.” (...)


Extraí este fragmento do livro Veia Bailarina de Ignácio de Loyola Brandão, que narra sua experiência ao descobrir-se portador de um aneurisma cerebral; sua convivência com a possibilidade da morte iminente e, ao mesmo tempo, o pavor de tentar evitá-la através de uma cirurgia delicada...

A certa altura, obtemos a explicação do título:

(...) “A enfermeira apareceu com a seringa e agulha, precisava colocar um cateterzinho em meu braço esquerdo, para os soros. E começou a procurar uma veia na parte superior do pulso, jamais imaginei que aqui houvesse uma. ‘Vai sentir um friozinho’, avisou, passando o álcool. Preocupam-se com o friozinho, não com a picada.
Então, espetou. Não pegou a veia. Uma segunda. Nada. Terceira tentativa, a veia fez uma bolha. Na quinta vez, sangrou, pensei: Se um cateterzinho de merda dá este trabalho, imagine o que vai acontecer na hora de me serrarem a cabeça!
A enfermeira, na sétima vez, quase chorou.
_ Puxa, fui logo pegar uma veia bailarina!
A minha irritação desapareceu, fiquei com a imagem da veia bailarina. Uma veia que dança, recusa a agulha, tem vontade própria, diz ‘comigo não, procure outra, me deixe em paz’. Não descobri se é gíria de hospital, só sei que a poesia estava ali, naquele momento. Achei linda a gota de sangue que a veia bailarina tinha chorado. A enfermeira desistiu, desconsolada, pediu ajuda (...)”

Prefiro a capa da minha 2ª edição [1997, Global Editora], de Lu Rodrigues, à atual:


página inicial:

“A morte dentro da graça da vida”
Lygia Fagundes Telles



Reflexões sobre a vida e sobre a morte:

(...) “O túmulo, campa, a lousa, a laje. Basta uma pedra lisa por cima e o nome Loyola, como fui conhecido a vida inteira. Minha família e os íntimos me chamam de Ignácio. (...) Ou então ILB 1936. Como se fosse a matrícula de um automóvel. Ou nada. O que interessa quando nasci, morri?
Morremos quando perdemos a paixão pelas pessoas, quando sonhar não nos anima mais, quando escrever livros já não nos atrai. A solução para o túmulo é o nada. Nenhum nome, data. Para quê? Quem irá me procurar no cemitério fazendo turismo necrófilo? Para que visitar cemitérios se podemos pedir pelas pessoas em qualquer lugar onde estejamos? Para lembrarem-se de mim, o melhor é lerem meus livros. Esta é a maior incerteza de quem faz arte. O que vai acontecer? O que ficará? Existe túmulo maior que os livros fechados, esquecidos? Pensando bem, este é o meu único medo da morte, ter os livros esquecidos. (...) Ninguém sabe onde Mozart foi enterrado. Qual a diferença? A música dele está aí.”

(...) “Ao mesmo tempo, a calma me invadia. Porque não tenho medo da morte? Será que a estou desejando? Será uma forma de suicídio que me isenta de responsabilidade?
Os pensamentos que me torturavam nada mais eram que o apego à vida. Não ter medo da morte significa apreciar a vida. Aceitar a morte como natural. Não há nada que possa impedi-la, quando chega. E há uma determinada hora. Não é um pensamento fatalista, é a aceitação. A vida tem seus caminhos, o que fazemos de nossa existência é nos ajeitarmos aqui e ali da melhor maneira possível.”

(...) “Na sexta-feira anterior, tinha escrito algumas crônicas. (...) Deixei com Andréa, minha secretária, dois envelopes. “Se a cirurgia correr bem, publique a crônica 1. Se der catástrofe e eu morrer, publique a 2”. Ela ficou perplexa, (...) A crônica 2, num envelope lacrado, era um até logo aos amigos, aos leitores. Até logo, porque mais dia, menos dia, nos encontraremos em alguma parte (então acredito?), na continuação de tudo isto aqui. Quem nunca sonhou com a morte e com a passagem para o outro lado, um mundo que, semelhante ao nosso em configuração, e no entanto invertido, o branco é preto; o bom, ruim; o alto, baixo; a verdade, mentira; os cachorros, gatos; a música, silêncio? “Meus amigos”, começa a crônica 2, “por motivo de força maior, não estou mais aqui com vocês”, e ia por aí afora. É fácil brincar com a própria morte, quando se tem certeza que não vamos morrer. Porém, eu estava de pé atrás com o destino. Pois ele não me aprontara aquele aneurisma?”

(...) “Surgem dúvidas. Com a possibilidade de morrer a qualquer momento, o melhor é não iniciar nada? Então, ninguém faria mais nada, porque ao nascer estamos condenados à morte. Alguém já disse esta frase, (...)”

(...) “Por que não reajo, abandono meu emprego, deixo família, livros, papéis, roupas, sapatos, discos, cartões postais, cartas colecionadas, anotações, toda a tralha que enche minha casa, minha cabeça e me prende, amarra? Por que não continuo andando por esta rua, sempre em frente, até sair da cidade, do Estado, do mundo? (...) Sair do país, penetrar em alguma terra desconhecida, onde me sinta renascer. E se o renascer vem com a minha morte?
O que existe do outro lado? Mas nenhuma pessoa, entidade, livro, estudo me convence de que este espaço em que vivo não seja de fato o outro lado. Em Berlim Ocidental, referindo-se à Berlim Oriental, as pessoas diziam: o outro lado. Mas em Berlim Oriental, referiam-se à Berlim Ocidental também como o outro lado. Qual é o lado de cá e o de lá? Súbito, me veio intensa curiosidade. A de atravessar a fronteira e penetrar em outra dimensão desconhecida, sobre a qual nada sabemos.
Percebo que passei a viver numa espécie de limbo. Tudo adquire intensidade. Não sei definir o real e o irreal em cada objeto, situação.”

(...) “Uma tarde, sem muito o que fazer, sem conseguir me concentrar no trabalho, obcecado por aquela bolha na cabeça, sempre buscando me aquietar, não ficar muito tenso, abri um livro pequeno intitulado “Os Salva-Vidas do Destino”. Fui, é óbvio, atraído pelo subtítulo: “Como se manter à tona nos momentos difíceis”. Como intelectual, sempre desprezei estes livros de auto-ajuda. Caça-níqueis. Tudo depende do momento, da situação, das necessidades. Se estamos afundando, agarramos até numa cobra para nos salvar. Com vergonha, escondido, comecei a ler o que dizia o autor, um certo Paul Coleman, sobre o qual não há nenhuma informação no volume. Folheei aleatoriamente. Bem não faz, mal não faz, experimentemos.
Lendo aqui e ali, li tudo, por mais que considerasse clichê. Há instantes em que lugares comuns acabam fornecendo uma brecha. Aí entendi o porquê desses livros que formam massa compacta de best-sellers. As pessoas buscam qualquer coisa para não afundar. (...) Sei, claro, que sei, da manipulação que existe nesse gênero de livros, este é o gancho deles, os espertos. No entanto, entra outro componente. Só quem está bem, está de fora, numa boa, pode reduzir a cacos os argumentos destes livros. É fácil. Quando assiste ao jogo, da arquibancada, o torcedor “sabe” o que fazer com a bola. Analisa, deita falação, cria teorias. Coloque-o dentro do jogo e a situação se modifica, decisões devem ser tomadas em frações de segundos, pedem intuição, sangue-frio, visão abrangente, um olhar grande angular, e talento. Precisamos de talento para viver. (...)
Ali estava eu, entrando no que Coleman chama de espiral descendente. Tinha de abrir o olho. Seria tudo tão grave? Eu podia morrer, era mais do que certo. Por que estou lendo o livro, eu que ironizo tanto tudo isso? Minha raiva aumentou quando Coleman deu a resposta: “Qualquer coisa que o traga de volta à sua rotina pode ajudar a aliviar a dor, embora a princípio você não consiga extrair muito prazer dessas tarefas”. E havia ainda um alerta: Por que você está se fazendo de vítima?”
Vítima. Será que eu era vítima? Era necessário dar um sentido àquilo tudo.”

(...) “Primeiro preciso afastar esta curiosidade de ver o outro lado. Não quero ver nada, é um preço alto, o mais alto que se possa pagar. A vida depois da vida pode existir, só que não passa de consolo. Quero ficar por aqui mais uns anos, vivendo ao lado de Márcia e dos meus filhos, escrevendo, observando o mundo mudar, acordando na madrugada com insônia e estudando o silêncio da cidade, maravilhando-me com as nuvens negras num final de tarde ( por que gosto tanto de chuva?), fazendo viagens de trem, ouvindo as músicas que me impulsionam a escrever, pentelhando os críticos e os acadêmicos, vivendo minhas loucas fantasias.”

"Caio [Fernando Abreu] escreveu:

"Somos todos imortais. Porque nunca consideramos a morte uma possibilidade cotidiana, feito perder a hora no trabalho ou cortar-se fazendo a barba, por exemplo. Na nossa cabeça, a morte acontece como pode acontecer de eu discar um número telefônico e, em lugar de alguém atender, dar sinal de ocupado. A morte, fantasticamente, deveria ser precedida de certo clima, certa preparação. Certa grandeza."

[trechos extraídos do livro Veia Bailarina, de Ignácio de Loyola Brandão]



Comments:
Clélia, ele falou bastante desse livro quando fez aquela palestra lá na cpfl. Uma hora eu blogo isso. Beijos.
 
Veja só. Até tu, Brutus, blogou!
Muito bom, muito bom mesmo.
Virei sempre porque você é um farol valioso.
Beijos
 
Eu tenho esse livro!
Na verdade foi um presente seu pra minha mãe, tentando convertê-la...
Ela nunca leu, mas eu li... E adorei!
Saudades!!!
 
Vivien,

Blog tb o lance da tal sandália... Fiquei curiosa!
bjo,
Clé
 
Tati,

Veja só, até eu!!! Entrei no barco e estou sendo mto bem acolhida...
bjos,
Clé
 
É isso mesmo, Bá, tentei convertê-la (ótimo!), mas não consegui. Ainda bem que você já havia sido convertida e pôde desfrutar da leitura... Valeu!
bjos,
tia Clé
 
Vivien,

Esqueci de flexionar o verbo, mas ele não exite, mesmo: blogar. "Blogue tb o lance da sandália..."
 
Clélia, se vc soubesse como isso já rendeu piadas....risos....mas qq hora eu blog sim.;0)
 
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