segunda-feira, janeiro 15, 2007

 

Saudade


por Ana Miranda

Os meus amigos niilistas diriam que a saudade não existe, que não existe a saudade de um país, de um neto distante, da mulher amada, da aurora de nossas vidas que os anos não trazem mais, diriam que aquilo que chamamos saudade é apenas um sentimento de que perdemos alguma coisa nossa dentro de nós mesmos e não somos capazes de encontrar, diriam que saudade é apenas a nostalgia do outro, que sentimos saudades do que gostaríamos de ser, saudades do futuro, saudades do paraíso, do que não soubemos agarrar, do que não pudemos viver, do que nos foi oferecido e deixamos escapar, e o nome verdadeiro da saudade seria possessividade, ah teorias, diriam que sente saudades aquele que não ama a si mesmo o bastante para se bastar a si mesmo, mas, meu Deus, quem é o bastardo que se basta a si mesmo? Somos todos órfãos de nós mesmos, Clarice Lispector escreveu a bela frase, Ah quando eu morrer vou sentir tanta saudade de mim... e diriam que sentimos saudades de nós mesmos, mas seja assim, seja assado, a saudade dói, e como dói, e parece que mais da metade da humanidade passa mais da metade da vida sentindo saudade, seja a saudade assim ou assada e tenha este nome ou tenha outro, a verdade é que ela fica ali como um buraco no peito, um vazio, uma frente fria que não passa, uma muda cotovia, a saudade é uma contra-flor, diria o poeta Marco Lucchesi, a saudade é a sombra do nada, a superfície do nada, o não-perdão por aquilo que se foi, ou que nunca foi nem é e nem será, e vagamos à procura de um rosto, de uma infância, de um país, de um paraíso perdido, em estado de quase, o quase-ser no quase-dia, e a saudade nos deixa sensíveis, pálidos e felizes, reclamando a vida, ansiando o outro, invadidos pela inquietação dos anjos, e cheios de pedaços perdidos aos nossos pés ou dentro de nós graças a Deus, e somos escritos pelo vento, perto do fundo das coisas, tomados das memórias, das miragens e dos sonhos que, de outro modo, não poderíamos ver.

Ana Miranda
(escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Deus-dará, entre outros livros)

[texto extraído da revista Caros Amigos/Fevereiro de 2004]

__________
niilista [Do fr. nihiliste]
Adj. 2 g.
1. Relativo a, ou próprio do niilismo, ou que é adepto dele.
S. 2 g.
2. Adepto do niilismo.

niilismo [Do fr. nihilisme]
S. m.
1. Redução a nada; aniquilamento.
2. Descrença absoluta.
3. Filosofia Doutrina segundo a qual nada existe de absoluto.
4. Ética Doutrina segundo a qual não há verdade moral nem hierarquia de valores.
5. Política Doutrina segundo a qual só será possível o progresso da sociedade após a destruição do que socialmente existe.

[Aurélio Buarque de Holanda Ferreira]



Comments:
(da Ana Miranda só li O Retrato do Rei, que gostei muito, aliás.)
Eu tenho saudades intensas, dos meus avós, creio que deva se a mais dolorosa.
As vezes tenho saudade de olhar o mundo como eu olhava.
 
Vivien,

"Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida."

Clarice Lispector
[extraído do livro Aprendendo a viver, Editora Rocco, 2004]
 
Existe saudade sim. É exatamente o que eu estou sentindo agora, longe de você. Vou dormir agora.
 
Eu também.
bjo,
Clé
 
oi Clé, não tinha lido ainda, que texto lindo!
dia 31 estou indo pro RJ matar minhas saudades, passarei 10 dias lá amando! estou muito feliz! aliás, tenho estado assim desde que conheci meu amor!
vou lá ler o chico agora!!!!
beijocas
 
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