quarta-feira, janeiro 03, 2007

 

A louca da casa (II)



Referente à foto da capa, uma passagem, no capítulo 6, pág. 52 (a observação sobre as notas de rodapé, do outro post, continua valendo):

(...) Sempre tive uma fraqueza especial pelos anões. Pelos deformes de cabeça achatada; e pelos perfeitos liliputianos[1] minúsculos. Sinto-me identificada com eles de uma estranha maneira; sempre me comovem, despertam em mim afeto e respeito. Coleciono frases sobre anões, como a famosa de Augusto Monterroso: "Os anões têm uma espécie de sexto sentido que lhes permite se reconhecerem à primeira vista"; e fotos de anões, como o emocionante retrato de Lucía Zárate, uma liliputiana do século XIX que era exibida nos circos e cujo rosto marcado pela tristeza foi outra das sementes de Bela e escura. Também compilo casos de anões, como aquela história supostamente verdadeira que o genial jornalista mexicano Pedro Miguel me contou: um sujeito se separou e deixou a casa para a ex-mulher. Precisava de um lugar onde ficar e, por economia, alugou uma casa num povoado próximo da cidade.

Era uma construção de um andar que havia pertencido a um anão e, lá dentro, tudo conservava as dimensões mínimas: tetos baixos, dintéis[2] quebra-cabeças, pias na altura dos joelhos. E o homem dizia: "Além de estar recém-separado e tão deprimido, tenho que caminhar todo encolhidinho..."

Há uns dez anos, depois de escrever Bela e escura, descobri que os meus textos eram cheios de anões. Tive que admitir o fato porque a protagonista do romance é uma liliputiana chamada Airelai, um dos personagens que mais me agradam de todos os que imaginei. Assombrada por não ter percebido antes essa assiduidade dos baixinhos, comecei a refletir sobre o porquê dessa mania. Minha laboriosa razão propôs várias explicações razoáveis, como, por exemplo, a que o anão é um ser crepuscular e fronteiriço, no meio do caminho entre a meninice e a maturidade, uma indeterminação temporal que, pelo visto, simboliza muito para mim. Com esta e outras considerações sensatas arquivei o assunto, convencida de que, uma vez descoberto o fantasma, e depois de instalá-lo no nível consciente, eu nunca mais voltaria a imaginar algum anão, porque já dissemos que a criação precisa sair do mais fundo, fluir sem motivo e sem travas a partir do informe. "A escrita vem dos bastidores do artista", diz Martin Amis.

Passaram-se lentamente quatro anos e durante todo esse tempo fiquei imaginando e construindo o romance seguinte, A filha do canibal. Por fim terminei a obra, entreguei o original, corrigi as provas, lancei o livro e comecei a divulgação, e dois ou três meses depois, para meu total espanto, um dia percebi que tinha feito de novo a mesma coisa. Que tinha incluído novamente um anão. Lucía, a protagonista do romance, é uma mentirosa compulsiva. Ela começa o livro descrevendo-se como uma mulher bonita e alta de olhos cinzentos; mas alguns capítulos adiante diz que mentiu, que não é uma beleza, e sim uma mulher qualquer; que não tem olhos cinzentos, e sim marrons e bem comuns; e que não é exatamente alta, mas um pouco baixa; aliás, muito baixinha. Tão exageradamente baixa, na verdade, que compra sua roupa no setor infantil das lojas de departamentos. Eu tinha passado quatro anos construindo esse personagem sem perceber que, mais uma vez, os anões haviam assumido o papel de protagonista. Isto pode dar uma idéia da impetuosidade dos fantasmas, do seu caráter tirânico e indomável. Eles fazem o que querem. Manipulam você.

No meu romance seguinte e por enquanto último, O coração do tártaro, decidi mencionar um anão conscientemente, amedrontada pela obstinação liliputiana, para ver se assim conjurava sua aparição sub-reptícia[3]. E então, no final do romance, citei Perry, um dos assassinos reais de A sangue frio, o maravilhoso livro de Truman Capote. Perry, que sofrera um acidente na adolescência, tinha pernas muito curtinhas: quando se sentava, elas ficavam penduradas no ar sem encostar no chão. Era uma espécie de anão, na verdade um sucedâneo traumático do nanismo.

E mais uma vez passei longos anos escrevendo o livro, mais uma vez corrigi provas, mais uma vez passei pela confusão de publicá-lo. Estava há um mês trabalhando na divulgação quando fui a um programa de rádio. "Já encontrei seu anão neste livro", espetou a jornalista Consuelo Berlanga, com quem eu tinha conversado sobre o assunto dos fantasmas no romance anterior. "Lógico", respondi; "eu mencionei Perry de maneira consciente e proposital". E então a lúcida Consuelo me deixou embasbacada: "De que Perry você está falando? Sua anã é Martillo". E tinha razão; Martillo é um personagem secundário, uma adolescente de subúrbio diminuta e raquítica que parecia uma menina, mas não é; vive na ilegalidade como se fosse adulta, mas ainda não cresceu. É uma anã perfeita e eu tampouco tive consciência da sua natureza.

No outono de 2000 visitei a cidade alemã de Colônia para participar de um festival literário. Certa noite, eu estava no meu quarto estreito e limpo (todos os hotéis econômicos da Alemanha têm quartos estreitos e limpos como celas de monge), deitada na cama toda vestida e zapeando chateada na televisão, porque não entendo uma palavra de alemão e todos os canais eram germânicos, quando me aconteceu uma coisa extraordinária. No canal dois passava um documentário; era um bom documentário, isto era evidente pelo impecável tratamento da imagem. Falava, foi o que me pareceu entender, dos circos na Alemanha durante os anos trinta, sob o nazismo. Maravilhosas seqüências em branco e preto e farto material fotográfico mostravam o ambiente circense, com mulheres barbudas, gigantes cabeçudos, anões vestidos de palhaços; seres muito distantes do terrível ideal físico da raça ariana e, portanto, todos eles, presumivelmente, carne de matadouro para Hider.

E de repente a vi.

Vi-me a mim mesma.

Era uma liliputiana perfeita, loura, muito coquete, a indubitável estrela do espetáculo, porque falavam muito dela e aparecia numa infinidade de fotos e de filmes, com sua cabeleira lisa e arrumada, sua coroa ou arco na cabeça, suas impecáveis roupinhas de amazona circense, o corpete de cetim bem apertado, a sainha curta e levantada aos lados, como um tutu de bailarina. Tinha uma estampa bem proporcionada, fina, quase de menina, e um rosto com traços regulares. Poderia passar por criança, exceto porque tinha qualquer coisa definitivamente deslocada no semblante, a idade sem idade do liliputiano, uma inquietante expressão de velha no rosto pueril, o sorriso sempre tenso demais, os olhos arregalados sob as sobrancelhas pretas de falsa loura. Tinha um aspecto tristíssimo com sua fantasia de festa. Dava um pouco de angústia. Dava um pouco de medo.

E essa anã era eu. O reconhecimento foi instantâneo, um raio de luz que me queimou os olhos. Tenho uma foto dos meus quatro ou cinco anos em que sou exatamente igual à liliputiana alemã. Foi uma breve época em que minha mãe (que amo muito, apesar disso) teve a idéia de: clarear meu cabelo e me deixar loura; de maneira que eu estava com um penteado igual ao da anã, o cabelo também esticado para trás ou de arco, e com as mesmas pupilas pretas e sobrancelhas escuras. Além do mais, usava uma roupinha curta, meia-arrastão e babados, tudo igual a ela. Porém o mais espetacular é a expressão, aquele sorriso forçado um tanto sinistro, aquela cara de velha oculta atrás do rosto infantil, aqueles olhos sombrios. Não sou eu, sou ela.

Sempre me espantou essa foto minha. "Mas você está muito bonitinha!", diz minha mãe (e por isso a amo tanto, entre outras razões: por esse cego amor indestrutível). Mas eu não entendia a estranha criança do retrato, não a reconhecia, não podia assumi-la. Suponho que no negror do meu olhar já despontava, sem ninguém saber, a doença: sofri de tuberculose dos cinco aos nove anos. Mas não era isso o que me angustiava na foto, era algo mais, algo indefinível, algo como o eco impreciso de um sofrimento que você sabe que padeceu e que não consegue lembrar. Mas agora que sei que é uma anã me reconciliei totalmente com a menina da foto. Até a botei, emoldurada, em cima da escrivaninha, aqui à minha frente. Tentei em vão localizar o documentário: queria uma foto dela, da outra, para botar ao lado da minha; e mandar traduzir o programa, para saber se diz o que aconteceu com aquela comovente liliputiana no inferno nazista; se ela acabou na câmara de gás, como tantas outras criaturas "não perfeitas", ou se a usaram para suas horríveis experiências médicas, possibilidade ainda mais apavorante que, por infortúnio, é perfeitamente possível. Não se sabe que tragédia viveu, vivemos. Afinal, a frase de Monterroso possui um significado literal: "Os anões têm uma espécie de sexto sentido que lhes permite se reconhecerem à primeira vista". É verdade. Ele tem razão. Comigo aconteceu exatamente isto num hotel em Colônia.
__________

[1] liliputiano [Do ingl. lilliputian]
Adj.
1. De Lilipute, país imaginário do romance Viagens de Gulliver, do escritor inglês Jonathan Swift (1667-1745), no qual os habitantes tinham apenas seis polegadas de altura.
2. P. ext. Muito pequeno.

S. m.
3. Habitante de Lilipute.

[2] dintel [Do esp. dintel sub-reptício [Do lat. subrepticiu]
Adj.
1. Obtido por meio de sub-repção, ilicitamente; fraudulento: depoimento sub-reptício.
2. Feito às ocultas; furtivo: tráfico sub-reptício de drogas. [Plural: sub-reptícios]


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