quarta-feira, janeiro 03, 2007

 

A louca da casa (I)


Conheci Rosa Montero em maio de 2005, qdo ganhei da Cecília o livro A louca da casa, com a seguinte dedicatória:

Encantei-me com esta escritora espanhola!

orelha do livro:

Rosa Montero nasceu em Madri e estudou Jornalismo e Psicologia. Trabalhou nos principais veículos da imprensa espanhola e desde 1976 é colunista exclusiva do jornal El País. Em 1980 ganhou o Prêmio Nacional de Jornalismo espanhol na categoria Reportagens e Artigos Literários. Além dos romances Crónica del desamor (1979), La función Delta (1981), Te trataré como a uma reina (1983), Amado amo (1988), Temblor (1990), Bella e oscura (1993), La hija del caníbal (Prêmio Primavera 1997) e El corazón del tártaro (2001), também é autora de várias obras vinculadas ao jornalismo.

contracapa:

"A imaginação é a louca da casa." A frase de Santa Teresa de Jesus resume com perfeição o universo fascinante revelado neste livro indefinível que apresenta Rosa Montero ao leitor brasileiro. Mistura de romance, ensaio e autobiografia, a obra mais pessoal da escritora madrilena é um percurso pelas reviravoltas da fantasia, da criação artística e das lembranças mais secretas. É um baú de mágico do qual emergem objetos inesperados e assombrosos.

"A louca da casa se lê, do princípio ao fim, num puro movimento de prazer."
Mario Vargas Llosa, El País

dedicatória:

Para Martina, que é e não é.
E que, não sendo, muito me ensinou.

Post scriptum
Tudo o que conto neste livro sobre outros livros ou outras pessoas é verdade, quer dizer, responde a uma verdade oficial documentalmente verificável. Mas receio que não possa garantir o mesmo sobre o que se refere à minha própria vida. Porque toda autobiografia é ficcional e toda ficção, autobiográfica, como dizia Barthes.

Rosa Montero

trecho do primeiro capítulo:

(Obs.: Todas as notas de rodapé de glossário são minhas. Sou fanática por palavras e dicionários!)

Um

Estou acostumada a organizar as lembranças da minha vida em torno de um rol de namorados e de livros. Os diversos relacionamentos que tive e as obras que publiquei são as referências que marcam minha memória, transformando o ruído informe do tempo em uma coisa ordenada. "Ah, aquela viagem ao Japão deve ter sido na época em que eu estava com J., pouco depois de escrever Te tratarei como uma rainha", penso e imediatamente as reminiscências daquele período, as desgastadas migalhas do passado, parecem instituir-se em seu lugar. Todos os seres humanos recorrem a truques parecidos; sei de gente que conta sua vida pelas casas em que morou, ou pelos filhos, empregos e até mesmo pelos carros. Pode ser que a obsessão que certas pessoas têm de trocar todo ano de carro seja apenas uma estratégia desesperada para ter alguma coisa que recordar.

Meu primeiro livro, um volume horroroso de entrevistas repleto de erros, saiu quando eu tinha vinte e cinco anos; meu primeiro amor suficientemente sólido para marcar época deve ter sido em torno dos vinte anos. Isto quer dizer que minha adolescência e a infância estão mergulhadas no magma amorfo e movediço do tempo sem tempo, numa turbulenta confusão de cenas sem datar. Algumas vezes, lendo as autobiografias de certos escritores, fico pasma com a clareza cristalina com que lembram de suas infâncias nos menores detalhes. Principalmente os russos, tão rememorativos de uma meninice luminosa que parece ser sempre a mesma, cheia de samovares[1] cintilando na plácida penumbra dos salões e de esplêndidos jardins de folhas murmurantes sob o quieto sol estival[2]. São tão iguais essas paradisíacas infâncias russas que você é obrigado a supor que são mera recriação, um mito, um invento.

Coisa que acontece com todas as infâncias, aliás. Sempre pensei que a narrativa é a arte primordial dos seres humanos. Para ser, temos que nos narrar, e nessa conversa sobre nós mesmos há muitíssima conversa fiada: nós nos mentimos, nos imaginamos, nos enganamos. O que contamos hoje sobre a nossa infância não tem nada a ver com o que contaremos dentro de vinte anos. E o que você lembra da história comum familiar costuma ser completamente diferente daquilo que seus irmãos lembram. Às vezes troco algumas cenas do passado com a minha irmã Martina, como quem troca figurinhas: e o lar infantil desenhado por uma e pela outra quase não têm pontos em comum. Os pais dela se chamavam igualzinho aos meus e moravam numa rua com o mesmo nome, mas certamente eram outras pessoas.

De maneira que nós inventamos nossas lembranças, o que é o mesmo que dizer que inventamos a nós mesmos, porque nossa identidade reside na memória, no relato da nossa biografia. Portanto, poderíamos deduzir que os seres humanos são, acima de tudo, romancistas, autores de um romance único cuja escrita dura toda a existência e no qual assumimos o papel de protagonistas. É uma escrita, naturalmente, sem texto físico, mas qualquer narrador profissional sabe que se escreve sobretudo dentro da cabeça. É um runrum criativo que nos acompanha enquanto estamos dirigindo, ou levando o cachorro para passear, ou na cama tentando dormir. A gente escreve o tempo todo. (...)

Há muitos anos venho fazendo anotações em diversos caderninhos com a idéia de escrever um ensaio sobre o ofício de escrever. O que é uma espécie de mania obsessiva dos romancistas profissionais: quando não morrem prematuramente, todos eles padecem, mais cedo ou mais tarde, da imperiosa urgência de escrever sobre a escrita, de Henry James a Vargas Llosa, passando por Stephen Vicinczey, Montserrat Roig ou Vila-Matas, para citar alguns dos livros que mais me agradaram. Eu também senti a furiosa chamada dessa pulsão, ou desse vício, e dizia que vinha anotando idéias há um bom tempo quando fui percebendo, pouco a pouco, que não podia falar da literatura sem falar da vida; da imaginação sem falar dos sonhos cotidianos; da invenção narrativa sem levar em conta que a primeira mentira é o real. E, assim, o projeto do livro foi ficando cada vez mais impreciso e mais confuso, coisa por outro lado natural, ao ir-se misturando com a existência.

A comovedora e trágica Carson McCullers, autora de O coração é um caçador solitário, escreveu em seus diários: "Minha vida seguiu a pauta de sempre: trabalho e amor". Suponho que ela também devia contabilizar seus dias em livros e amantes, uma coincidência que não me surpreende em absoluto, porque a paixão amorosa e o ofício literário têm muitos pontos em comum. De fato, escrever romances é a coisa mais parecida com apaixonar-se que já encontrei (ou melhor, a única coisa parecida), com a apreciável vantagem de que na escrita não se precisa da colaboração de outra pessoa. Por exemplo: quando você está mergulhado numa paixão, vive obcecado pela pessoa amada a ponto de ficar o dia inteiro pensando nela; escova os dentes e vê seu rosto flutuando no espelho, está dirigindo e confunde a rua porque foi perturbado por essa lembrança, tenta dormir à noite e, em vez de deslizar até o interior do sono, você cai nos braços imaginários do seu amante. Pois bem, enquanto está escrevendo um romance você vive nesse mesmo estado de delicioso alheamento: seu pensamento é inteiramente ocupado pela obra, e toda vez que dispõe de um minuto, mergulha mentalmente nela. Também se engana de esquina no trânsito, porque, igualzinho ao apaixonado, sua alma está entregue e em outro lugar. (...)
__________

[1]samovar [Do russo samovar, 'que ferve por si mesmo']
S. m.
1. Espécie de caldeira portátil, de uso na Rússia, provida de um tubo central, onde se põem brasas a fim de ferver e manter quente a água para usos domésticos, especialmente para a feitura do chá.
2. Bras. Espécie de bule de metal nobre montado sobre uma armação provida de fogareiro, e que se usa para ferver e manter quente a água para o chá.

[2]estival [Do lat. aestivale]
Adj. 2 g.
1. Referente ao, ou próprio do estio; calmoso, estivo, estio.



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