sexta-feira, janeiro 26, 2007
Através do vidro
Para Ruy Castro,
Apenas dez anos depois
Folha de São Paulo
São Paulo, segunda-feira, 04 de junho de 2001
CARLOS HEITOR CONY
"Através do Vidro"
RIO DE JANEIRO - Novo livro de Heloisa Seixas que a editora Record está lançando na coleção "Amores Extremos". Uma história curta, mas de imensa densidade, a ação limitada pelo amor extremo de uma mulher talvez por ela própria, mas subordinada a um homem quase sem rosto, mais uma voz, um cheiro.
Acompanho a carreira de Heloisa com interesse, desde os primeiros contos de "Pente de Vênus" (1995), considerados uma revelação pela linguagem e pelo conteúdo, contos marcados pelo assombro, o território mítico que importa, que marca a diferença entre a literatura e o jornalismo, a vida interior e a realidade banal.
Em "Através do Vidro", ela dá um show de intimismo, tendo como cenário, por assim dizer único, o amor e o desejo, que deixam de ser a "cosa mentale" para se materializarem num corpo de mulher madura que busca e é buscada, cúmplice e vítima.
"Somos todos loucos quando sonhamos." Já se deve falar em um estilo à Heloisa Seixas. Até certo ponto, ela desdenha a ação, que foi absorvida pelos atuais textos que se destinam ao cinema ou a telenovelas. Usa apenas palavras, letras, literatura em si.
Um exemplo: "Em torno, a noite estava morta. Como um rouxinol que oferece o próprio sangue em sacrifício para fazer nascer uma rosa, a noite se desintegrara, engolindo-se a si mesma".
Nenhuma pincelada fora do chão que ela domina: a mulher cabeça, tronco e membros, a mulher presente no passado, o passado que anuncia o futuro e se fragmenta no presente.
Pode parecer complicado, mas o veio que Heloisa Seixas encontrou é dolorosamente sensual, mergulha na alma feminina com impudor sem fronteiras. Passarão o céu e terra, mas não passarão o amor e o desejo, nus, através do vidro que separa a loucura do sonho, o sonho da loucura.
ACHO QUE LI EÇA DE QUEIRÓS CEDO DEMAIS. E COME-
CEI LOGO COM O primo Basílio, QUE TANTO ESCÂNDA-
LO PROVOCOU EM SUA ÉPOCA. NÃO ERA UM LIVRO PARA
CRIANÇAS. TALVEZ POR ISSO - TERIA EU 11 ANOS, NO
MÁXIMO - ALGUMA COISA SE TRANSFORMOU, NO MUN-
DO E EM MIM, DEPOIS DAQUELA LEITURA.
Tudo começou num verão emburrado. Sendo de família baiana, meus verões de infância e adolescência se dividiam entre aqueles passados no Rio e os passados na Bahia - em Salvador, no sobrado de meus avós na avenida Sete, ou no interior, num sítio em Feira Velha (que depois passaria a se chamar Dias d’Ávila). Aquele era um verão baiano, mas, ao contrário dos anteriores, não era feliz. Era, repito, um verão emburrado.
As razões me são meio difusas. Alguma festa que na certa estava sendo programada entre as amigas cariocas (e que eu perderia), o fato de ter viajado sem meu irmão (que ficara "em segunda época", isto é, fora reprovado nas provas finais e teria uma segunda chance em janeiro), a ausência de meus primos Raulzito e Plininho (que estavam fora de Salvador por algum motivo). Tudo conspirava contra as minhas férias. E ainda por cima choveu.
Foi assim que, uma tarde, me vi sozinha na casa dos meus tios, no bairro da Graça, com os cotovelos fincados no parapeito de mármore da janela, olhando desolada para o campo de futebol que havia do outro lado da rua. Estava vazio e, em meio à chuva, sua grama rala e cheia de falhas era uma espécie de alegoria do fim de ano perdido. Definitivamente, eu estava no lugar errado, na hora errada.
E foi assim que, virando para trás com um suspiro, olhei para as paredes do gabinete de trabalho do meu tio, forradas de alto a baixo de volumes encadernados. Nunca tinha olhado direito para aqueles livros. Já gostava de ler - hábito que me foi incutido por meu pai e meus avós paternos desde que eu era muito pequena-, mas por algum motivo, provavelmente a austeridade de meu tio, achava que naquela biblioteca só havia livros técnicos, de direito ou contabilidade. Só agora, premida pela desolação, observava pela primeira vez com mais cuidado as lombadas coloridas. Cheguei mais perto. E, quase ao acaso, tirei de uma prateleira alta (tive de ficar na pontinha dos pés) O primo Basílio. Sentei numa poltrona e comecei a folheá-Io.
Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar.
Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
_ Tu não te vais vestir, Luísa?
_ Logo.
Ficara sentada à mesa, a ler o Diário de Notícias.
Roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras: com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações escarlates.
Num instante, ali estava, diante de mim como se de carne e osso, aquela mulher. Luísa. Era como se eu a visse. E, por alguma razão desconhecida (uma semelhança no nome, talvez?), senti-me instantaneamente próxima dela. Continuei a leitura:
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteira da alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo; fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
Pronto. Dera-se a mágica. Nem mais verão emburrado, nem Bahia, nem chuva ou casa dos meus tios - nada. Eu fora transportada. Estava lá, sentada naquela sala de um Portugal onírico, olhando a cena e sentindo seus cheiros. Que importância tinha não saber o que era esteirada, quebreira, bambinelas, cretone, chávenas? Nenhuma. Eu entendia tudo. Podia ouvir o zumbido das moscas. Eça estendera sua mão impalpável e me levara para o mundo de Luísa.
Agora preciso dizer que tenho uma característica: falo sozinha. Sempre falei. Crio personagens e converso com eles. Promovo diálogos acalorados, discussões, debates. Faço apostas. Perco. Às vezes ganho. E - sobretudo - conto histórias.
Faço isso o tempo todo, a vida toda. E, se esses interlocutores etéreos existem para mim até hoje, mais absoluta ainda era sua presença no meu tempo de criança, época em que, tradicionalmente, temos amigos imaginários. Pois foi assim que Luísa se tornou um deles. Luísa, a Luísa do Primo Basilio, foi minha amiga imaginária. Uma amiga muito chegada, de todas as horas, com quem eu conversava muito.
E se você acha meio esnobe uma menina de 11 anos, mal saída dos cueiros, ter como amiga imaginária uma personagem de Eça de Queirós, vou logo explicando que não é nada disso. Que ela me impressionou, sem dúvida. Mas a razão pela qual eu a chamei para junto de mim foi, digamos, muito menos nobre.
Ocorre que nessa época, quando eu estava entrando na adolescência, passava na televisão o seriado Jornada nas estrelas, aquele do dr. Spock, com suas orelhas pontudas. E eu me apaixonei pelo capitão Kirk, o comandante da nave Enterprise. Ele se tornou meu amigo imaginário. Ficamos íntimos. Quando eu ia, no banco de trás do fusca do meu pai, rumo a nosso sítio em Jacarepaguá, não via direito o caminho, nem sentia as curvas do Joá: estava sempre longe dali, conversando mentalmente com o capitão Kirk. E não era uma conversa fácil. Porque Kirk, vindo do futuro, me esnobava o tempo todo. Torcia o nariz para aquela coisa tosca que era o carro do meu pai, e para todos aqueles automóveis que subiam o Joá com o maior esforço, o motor se desfazendo em estrondos. Kirk ria de mim, dizendo que para ele, acostumado ao teletransporte, aquilo era uma barbaridade, coisa da Idade da Pedra. E eu ficava danada da vida.
Até que um dia resolvi me vingar. Descontar em cima de alguém. Para isso, precisava escolher uma personagem do passado, alguém a quem pudesse mostrar todas as maravilhas do mundo moderno, alguém a quem pudesse esnobar da mesma forma que o capitão Kirk fazia comigo. Claro, você adivinhou - eu escolhi Luísa.
Desse dia em diante, andávamos juntos, os três. Toda vez que Kirk me dizia uma pilhéria, eu me virava para Luísa e, com um sorrisinho maroto, mostrava alguma coisa para ela: você está vendo aquilo ali? É uma televisão. Um móvel com uma tela onde as imagens se movem. E sabe que imagens são essas? São das pessoas que estão representando num palco, a quilômetros daqui. Essas imagens entram por um fio e viajam até nossa sala. Você não acredita? Ah, tolinha, isso é porque você pertence a um outro tempo...
Misturar Eça de Queirós com Jornada nas estrelas dá bem a medida do quão menina eu era quando tudo isso aconteceu. Mas a verdade é que até hoje me pergunto: por que Luísa?
Poderia ter sido qualquer personagem do passado, até mesmo uma pessoa criada por mim. Mas foi ela. E o que havia naquela mulher loura, de olhos castanhos, com seus braços roliços e as mãos muito brancas onde se estriavam pequenas veias azuis? O que havia nela que a fez imprimir-se em mim com tanta força, a ponto de se tornar tão íntima, tão irmã daquela menina de 11 anos?
Acho que hoje eu sei. Luísa, sua sensualidade e seu horror, o cínico Basílio, a perversa Juliana, o doce Jorge, o leal Sebastião, até o conselheiro Acácio, que dispensa adjetivos, por já ser um - todos eles me pertencem. São meus, eternamente. Foram impressos dentro de mim de forma indelével, com a tinta perene de Eça. E me acompanham. Porque foram eles - não só Luísa, mas todos eles - que me fizeram refletir pela primeira vez sobre preconceitos, pressões sociais, culpa. E que, acima de tudo, me ensinaram o significado da palavra sedução.
Heloisa Seixas
[extraído das págs. 79-85, do livro “Dez livros que abalaram meu mundo”,
Organizadores: Martha Ribas & Julio Silveira, Casa da Palavra, RJ, 2006]
Folha de São Paulo
São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005
CARLOS HEITOR CONY
Obras-primas
RIO DE JANEIRO - A editora Record e a escritora Heloísa Seixas realizaram um dos meus sonhos: ver em livro alguns dos trabalhos publicados na revista "Manchete", durante cinco anos, de 1972 a 1977, sob o título, instigante é certo, mas errado, "As obras-primas que poucos leram".
Errado porque na relação aparecem livros mais do que lidos, como "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Os Maias", "O Sol também se Levanta" e outros. O título, dado por Justino Martins, é apelativo, apenas isso. A finalidade da série era divulgar alguns dos livros mais importantes da literatura universal.
Havia um esquema para cada artigo: a biografia do autor; a história contada ou o tema abordado em cada livro; um resumo crítico da obra. Foram mais de 200 artigos assinados por autores de peso: Antônio Houaiss, Paulo Mendes Campos, Ledo Ivo, Ruy Castro, R. Magalhães Jr., Josué Montello, Joel Silveira, José Lino Grunewald e, principalmente, Otto Maria Carpeaux, campeão absoluto da série.
Aliás, foram as últimas colaborações do grande ensaísta para a imprensa brasileira. Seus últimos artigos, escritos pouco antes de sua morte, foram de caráter autobiográfico, que tive a ousadia de exigir dele e a alegria de publicar.
A seleção feita por Heloísa é de apenas 70 obras, e a editora não teve acesso ao material iconográfico que acompanhava cada artigo. Uma pena. Sobretudo quando a obra em questão pertencia ao fosso dos "que poucos leram", como "Bubu de Montparnasse", de Charles-Louis Philippe, ou "Viagem ao Fim da Noite", de Louis-Ferdinand Céline.
Espero que a Record e Heloísa completem a série, dando preferência sobretudo aos livros que justificam o título dado pelo Justino, como "O Grande Meaulne", de Alain Fournier, "Os Ratos", de Dionélio Machado, e tantos outros. Mesmo assim, como está, cumpre um papel que transcende a divulgação do mundo das letras, mas é, em si mesmo, uma referência literária.
http://www.releituras.com/hseixas_menu.asp
http://www.desconcertos.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=85&Itemid=28
http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3327&bd=2&pg=1&lg=
http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-12-16/mat_24851.htm
Quanto a Jornadas.....ah, sou meio trekker, devo confessar.
Nunca os tive como amigos imaginarios, mas já tive um ou dois sonhos com o capitão Kirk...e foi muito legal..hahahh
Obrigada pela dica, beijão.
Tinha lido este texto da Heloisa, há algum tempo, e gostado muito. Agora, ao colocá-lo no blog, achei-o a sua cara, não sei porquê... Talvez, exatamente, por causa desta mistura. Quase dediquei o post a você.
A leitura de Através do vidro é deliciosa, envolvente! Vale, mesmo, conferir... (o Ruy estava certo, devo admitir, apesar de ser "suspeito"!)
bjãozão,
Clé
Que bom que vc notou que parece comigo, como a gente se entendeu rápido, Clélia!!!
beijão.
Eu me lembro que li este livro antes de você e não achei lá grande coisa. Aliás, eu fiquei meio puto com o finel, lembra-se?
Na verdade, eu gostei mesmo, mas odiei tanto o final, que fiquei com aquela sensação de que o livro era ruim. Não é.
Se eu tivesse deixado de ler a última página, se ele tivesse caído no mar, ou na banheira, ou no alto-forno de uma usina siderúrgica, antes de eu terminá-lo, eu teria ficado com a sensação de ter (quase) lido um livro excelente. Mas o final, a última página, a última palavra, derrubou todo o encanto que eu havia sentido.
Será que isso é possível?
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