quinta-feira, junho 14, 2007

 

TÍTULOS



A Graziana comentou, outro dia, em seu blog, e eu vinha tendo a idéia de falar sobre isso, já há algum tempo, aqui também... Eu, como ela, vou muito pela capa, contracapa, orelhas e/ou título do livro, quando não tenho referência do autor (ou mesmo quando tenho).

Adoro títulos! De livros, contos, crônicas, poemas, filmes, músicas, blogs, posts, e-mails... E é sobre eles que Miguel Sanches Neto fala, em seu livro "Herdando uma Biblioteca" [2004, Editora Record]. Transcrevo o capítulo:

PEQUENO DICIONÁRIO DE TÍTULOS

Estava indo a uma das escolas da periferia onde lecionava, um livro diante dos olhos no trajeto feito por um ônibus intermunicipal. Embalado pela história, me distancio dos campos com casas de colonos italianos. Um riso insistente, ao fundo, quase não me incomoda. Mas súbito vira gargalhada, emitida por mais de uma pessoa. Levanto a cabeça e percebo que um grupo de jovens se diverte prestando atenção em mim. Não sei a razão. Fitando meus pés, vejo que não coloquei sapatos de cores diferentes. Volto à leitura, mas sinto uma mão tocando meu ombro.

_ O senhor dá licença?

Apenas olho para o rosto do jovem, que faz de tudo para manter a seriedade.

_ A gente queria saber se é fácil aprender a bordar.

Pergunto por quê. Ele aponta o livro, que está fechado em minhas mãos, o dedo indicador entre as páginas, marcando o ponto em que parei. Trata-se de um romance de Autran Dourado, O risco do bordado. Agora sou eu quem ri, dizendo ao rapaz que aquilo é literatura.

_ Não é para aprender a bordar? – ele fala alto, o grupo não agüenta e solta mais risos, meio contidos.

_ Não, é apenas uma história.

Com jeito de quem não acreditou, ele se retira e passa o trajeto todo acompanhando meus movimentos. Agora mal consigo me concentrar – desse jeito, eles devem estar pensando, nunca aprenderei a bordar.

Sempre fui fascinado por títulos, até de livros de que não gostei. Ao dar nome a meus livros, recordo este episódio, buscando títulos fortes, mas neutros, para que eles possam ser lidos sem constrangimentos em um ônibus ou em um avião.

Dentro do vasto campo das possibilidades, prefiro os nomes longos, as frases, de preferência versos completos ou pedaços, porque eles ficam gravados na lembrança do leitor pelo ritmo, participando de sua memória musical. Ao terminar meu primeiro romance, tinha uma vasta lista de títulos, mas fiquei com um verso de Octavio Paz – Chove sobre minha infância. O título longo não pode ser confuso e não deve ter palavra sobrando. No meu caso, se tivesse colocado o artigo a diante do possessivo, haveria uma quebra da unidade rítmica: chove sobre a minha infância. Outra coisa a evitar é o uso de palavras muito inusitadas, que dificultam a memorização. Li Ping, um amigo chinês, tradutor de vários autores de língua portuguesa, me anunciou um dia que estava lendo o romance Dom Cachorro, de Achado de Massis.

Embora ele seja um estrangeiro, mais propenso a tropeçar nas palavras, acho que sua dificuldade revela a natureza espinhenta de casmurro, vocábulo seco, meio insondável, que deve atrapalhar muitos leitores iniciantes.

O grande título de Machadinho é Memórias póstumas de Brás Cubas, que pode ser lido como um decassílabo, metro tão praticado no Parnasianismo, corrente da qual ele fez parte. Se tivesse colocado o artigo as no início, estragaria a perfeição escultural da frase. Este título extenso inquieta pela ironia de um livro que se assume escrito além-túmulo, num momento em que, não podendo mais sofrer a pressão social, o narrador escancara sua vida privada. A repetição dos as no fim de cada palavra e a sucessão de tônicas cria uma espécie de eco, que o ouvido mais atento identifica como fantasmagórico.

A ironia é também uma das marcas de Jamil Snege, cujo melhor título é uma verdadeira profissão de fé do escritor e publicitário que optou por imprimir os próprios livros, recusando-se a buscar editoras ou a padronizar sua linguagem: Como eu se fiz por si mesmo. São suas memórias cínicas, mas que podem ser lidas como romance. O narrador não ficou rico e não teve reconhecimento, por isso o erro gramatical do título.

Uma das qualidades do bom título é sua capacidade de estranhamento. Jamil consegue quebrar a seriedade típica das autobiografias, zombando de sua própria existência. Tal recurso tira do livro o caráter formador, apostando na trajetória torta contra a corrente do sucesso fácil que tende a gerar memórias edificadoras. O narrador conduziu sua vida como negação das expectativas burguesas, defendendo o erro como forma de anarquizar as relações marcadas pela busca do acerto. O erro é o que distingue o artista e funciona como seu elemento de identidade. O livro acaba com uma frase magistral: "Havia um reino, havia um rei. Eu me errei."

A curiosidade também pode nos conduzir a um livro. Assim aconteceu com Naquela época tínhamos um gato, de Nelson de Oliveira. É o início de uma frase, o que cria uma situação de expectativa, um clima de mistério. Ficam implícitas as reticências, suspensão de algo que passa a inquietar o leitor. Este clima é fortalecido pela figura do gato, animal ligado ao inconsciente, ao sobrenatural, ao imprevisível. Se fosse, por exemplo, substituído por cachorro, haveria um súbito esvaziamento de sentido. A história é anunciada no passado e há uma idéia de união familiar pelo uso da primeira pessoa do plural. O que teria acontecido? Tudo isso aguça o interesse do leitor.

O título pode também dispensar uma estrutura gramaticalmente mais rica, como em A cidade e as serras, de Eça de Queirós. Há uma exatidão no título que poderia ser tida como comum - dois substantivos, precedidos de artigos, unidos pela partícula e. O romance trata de uma oposição entre dois espaços, Paris e as montanhas do interior de Portugal. Ou seja, o título acaba sendo o cenário da história. Mas há uma unidade interna nele, conseguida principalmente pela repetição de sons (cidade/serras) e pela ordem em que as palavras aparecem. Se invertêssemos os termos (as serras e a cidade), o encanto seria desfeito, porque a disposição denuncia o sentido do próprio movimento de Jacinto, que se desloca física e sentimentalmente de Paris a uma região rústica. Assim, sem usar verbo, Eça de Queirós consegue representar o movimento de um personagem que deixa a metrópole, lugar marcado pelo tédio da riqueza material e social, para reencontrar definitivamente a variedade geográfica de suas serras pobres.

O título ainda pode ser mais convencional, desde que o escritor consiga introduzir sentidos novos, como o fez Domingos Pellegrini na coletânea de contos com que estreou: O homem vermelho. A composição é simples: artigo mais substantivo mais adjetivo. Apesar disso, o título é forte e inquietante, por causa de um uso aberto da palavra vermelho. Publicado em 1977, o volume vinha assinado por um jovem escritor que misturava os verbos escrever e combater. A figura do homem vermelho poderia ser confundida com a do comunista, pois alguns contos tratavam da participação política. Esta era a leitura mais imediata do livro publicado pela Civilização Brasileira. O conto-título da coletânea centra-se em um homem ruivo e misterioso que aparece numa fazenda no norte do Paraná, deixando os moradores sobressaltados. Mais do que a tentativa de definir um homem revolucionário, embora tenha havido esta intenção, Domingos queria dar espessura literária aos habitantes da terra vermelha. É esta ambigüidade que define a grandeza do título.

Se Pellegrini revitalizou uma estrutura gasta, Carlos Drummond de Andrade praticamente a implodiu, inventado uma palavra composta para batizar seus poemas memorialísticos: Boitempo. O uso de neologismo em títulos é um problema, pois pode parecer estranho ou funcionar como mero trocadilho. Mas o de Drummond soa tão bem que se incorpora ao leitor com facilidade. Ao justapor duas palavras comuns e fortes, ele consegue não um contraste, mas uma soma, dotando o novo vocábulo de raro valor evocativo.

Trata-se de um livro de recordações poéticas da infância, um momento em que o menino faz a passagem do mundo rural para o colégio interno e outros espaços urbanos. A roça está representada pelo boi, animal calmo, que rumina indefinidamente os alimentos – simbolizando também a própria condição memorialística deste eu que não termina nunca de digerir suas recordações. O boi é a encarnação de um tempo perdido e materializa uma idade campestre que continua viva na lenta trituração da linguagem lírica.

Mas a radicalização foi feita por Dalton Trevisan, que nomeou uma de suas últimas coletâneas apenas com números: 234. Tal título deve ser lido unidade por unidade e não como uma centena: dois, três, quatro. A cada novo livro, os contos de Trevisan estão mais próximos do fragmento, não trazem título e a estrutura interna do livro virou ruína.

Além desse sentido, há ainda outro presente na idéia de progressão que o recurso cria. Dalton não pára de acrescentar novas peças ao grande romance sobre a província que é sua obra. Antes, apenas os seus seres eram anônimos, os eternos joões e marias; agora, o próprio conto experimenta esta falta de identidade. Assim, o título numérico reproduz a essência de sua escrita.

Todo grande título, extenso ou breve, será sempre uma metáfora.

[extraído do livro “Herdando uma biblioteca”, de Miguel Sanches Neto, Editora Record, 2004, pp. 89-95]



Ana Miranda, em seu "Deus-dará", escreve sobre um livro que ganhou, cujo título lhe chamou a atenção. Segue sua delicada e tocante crônica:

O LADRÃO DO MEU CORAÇÃO

Um dia, um amigo meu me deu um livro chamado Da quieta substância dos dias. Gostei do título, comecei a leitura e fiquei encantada com as crônicas que ali se sucediam, aparentemente contando a história da cidade mineira de Poços de Caldas por meio de delicadas lembranças, a história da transformação de pequena estância mineral de repouso e cura, num "céu entre montanhas", em cidade "ativa, rumorosa e enervante". Mas na verdade o livro compunha o retrato de uma alma exemplar, indignada, generosa. Uma alma linda. A simplicidade dos temas - "Cabritos na horta", "Cai a noite", "Chiquinho Seleiro", "O homem sozinho", "Nos tempos de seu Joãozinho", "Uma rua tem muitos caminhos", "O coreto" evocava o despojamento da sabedoria de gente que sabe reconhecer o essencial da vida.

Comentei com meu amigo sobre o quanto apreciara a leitura do livro e ele me sugeriu que mandasse uma carta ao autor - Jurandir Ferreira -, o que fiz de pronto. Jurandir me respondeu com palavras modestas, deveras impressionado que alguém da cidade grande dispusesse de algum tempo para deitar os olhos tão longamente em um livro de um habitante de aldeia. Ele tinha 86 anos, eu cerca da metade, e logo nos tornamos amigos, como se fosse uma amizade desde sempre (quase todos os meus amigos têm mais de 70 anos, com raras exceções, parece às vezes que sou uma pessoa de alma muito velha, é com gente de cabelos brancos que me entendo melhor, adoro a sabedoria dos velhos, adoro ouvir as histórias que eles têm a contar, acho lindas as rugas e a ecmnésia). Algum tempo depois fui visitá-Io em Poços de Caldas.

Quando abri a porta do quarto de hotel em que me hospedava, deparei-me com uma surpresa que ele me preparara: flores, corbeilles e mais corbeilles de rosas, orquídeas, gerânios, calênduIas, gladíolos, farsítias, cravos, estrelítzias, gérberos, boninas, crisântemos (além de uma cestinha de doces e biscoitos mandados pelas pessoas do instituto que me haviam convidado). Fui à casa de Jurandir, tomamos sorvete de milho verde, ele me levou a seu escritório repleto de livros, me deu seus romances e livros de contos e poesias, conversamos durante toda uma longa tarde interiorana, quando o tempo parecia não existir. Jurandir Ferreira era da geração do Antônio Cândido; foram amigos desde a juventude, e me pareceu que, quando comentou ser um homem que havia ficado no interior enquanto seus amigos haviam se libertado e partido para o mundo, referia-se a esse companheiro tão venerável. Além de escritor e jornalista, Jurandir era farmacêutico, como Drummond. Nos velhos tempos em que trabalhava na farmácia Rosário, tinha mania de investigar a qualidade e a pureza dos medicamentos, perturbando os "bons negócios dos pobres-diabos que com eles traficavam". Não ganhava nada com isso, alertavam seus amigos, perdia dinheiro e tempo. Mas ele não podia esquecer sobre os balcões sua dignidade. Depois eu soube que, com sua mulher, ele criara uma instituição humanitária chamada Pingo de Leite, graças à qual não se viam absolutamente crianças abandonadas nas ruas da cidade.

Na estrada de volta a São Paulo, entre laranjais e bosques, viajei com a sensação de ter feito um retomo no tempo, de haver tocado um mundo quase em extinção, um mundo cavalheiresco, suave, de uma dimensão mais humana e profunda.

Anos depois eu era membro de um grupo que escolheria o vencedor para um prêmio literário, quando encontrei um belo romance chamado
Um ladrão de guarda-chuvas, assinado com um pseudônimo, e que por fim foi o escolhido. Ao abrir o envelope com o nome verdadeiro do autor, soube que era de Jurandir Ferreira. O livro era maravilhoso. A lenda do demônio que chega a uma aldeia. Uma guerra entre dois mundos, entre dois tempos. Um escritor vai a Poços de Caldas fazer uma conferência. O narrador da novela, um homem delicado, de princípios nobres, é encarregado de recebê-lo. Vestido com seu único terno preto e carregando um guarda-chuva, ele leva o visitante a conhecer a cidade, a comer em restaurantes, a casas de moradores, paga-lhe todas as despesas, compra-lhe presentes, desdobra-se para satisfazer o estranho, mesmo tendo de sair de sua rotina, endividar-se e afundar em divergências seu coração. Quando o escritor vai embora, o mundo já não é mais o mesmo. Um livro sobre a pessoa que deveria partir, mas fica, sobre o que deveria ser dito, mas não o é. Como escreveu Antônio Cândido, "Jurandir Ferreira é um mestre do meio,tom e do subentendido. Sob a clareza impecável do enunciado, há no seu livro uma camada de significados possíveis, para cujo discernimento ele parece convidar discretamente a perspicácia do leitor, preso o tempo todo por esse relato cheio de atrativos".

Há alguns dias, num triste domingo chuvoso, recebi um telefonema de Poços de Caldas. Jurandir Ferreira havia partido para o outro mundo, aos 92 anos de idade. Morrera em paz, dormindo, e tendo à sua cabeceira no hospital um livro meu. Chorei a tarde toda, com a sensação não de haver perdido um ser querido, apenas, mas de haver perdido um mundo inteiro.

[extraído do livro “Deus-dará”, Ana Miranda, Casa Amarela, 2003, pp. 52-56]

ecmnésia [De ec- + -mnésia; var. pros. de ecmnesia]
S. f. Psiquiatria
1. Distúrbio de memória no qual o indivíduo esquece de quanto se passou a partir de determinada época, mas se recorda de fatos anteriores a essa época.

Deixarei, aqui, alguns títulos que gosto e, quem quiser, coloque, nos comentários, os seus também...

O homem que colecionava manhãs [Liberato Vieira da Cunha, 2004, Objetiva]
Me alugo para sonhar [Título original: Me alquilo para soñar, Gabriel García Márques, 1995, Casa Jorge Editorial]
A tarde da sua ausência [Carlos Heitor Cony, 2003, Cia das Letras]
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios [Marçal Aquino, 2005, Cia das Letras]
Veia bailarina [Ignácio de Loyola Brandão, 1997, Global]
Um homem chamado Maria [Joaquim Ferreira dos Santos, 2006, Objetiva]

Estrela Solitária [Ruy Castro, 1995, Cia das Letras]
O prazer dos olhos – Escritos sobre cinema [Título original: Le plaisir des yeux (Écrits sur le cinéma), François Truffaut, 2000, Jorge Zahar Editor]
Coração, solitário caçador [Título original:
The heart is a lonely hunter, Carson McCullers, 1943, Publicações Europa-América]
O caçador de pipas [Título original: The Kite Runner, Khaled Hosseini, 2003, Editora Nova Fronteira]
Uma mente inquieta [Título original:
An unquiet mind
, Kay Redfield Jamison, 1996, Martins Fontes]
Mentes inquietas [Ana Beatriz Barbosa Silva, 2003, Editora Gente]
A arte de esquecer [Ivan Izquierdo, 2004, Vieira & Lent]
As pequenas memórias [José Saramago, 2006, Cia das Letras]
Quase Memória [Carlos Heitor Cony, 1995, Objetiva]
De perto ninguém é normal [Mirian Goldenberg, 2004, Record]
Um amor anarquista [Miguel Sanches Neto, 2005, Record]
Rua dos artistas e transversais [Aldir Blanc, 2006, Agir]
Da quieta substância dos dias [Jurandir Ferreira, 1991, Instituto Moreira Salles]



PS: Ficarei um tempo sem escrever, visitar ou comentar em meus blogs preferidos. Hoje é o dia da minha cirurgia no ombro. ‘Tô ansiosa e apreensiva. Ficarei, no mínimo, 1 mês de molho (com o braço direito imobilizado), sem poder dirigir, escrever, digitar, assinar, cortar (com faca ou tesoura), enfim, precisarei de ajuda! E depender dos outros, pra tarefas corriqueiras, nem sempre é algo que consigo assimilar bem...

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